Discografias Comentadas: David Bowie [Parte II]

Discografias Comentadas: David Bowie [Parte II]

Por Marcello Zapelini

Seguimos nossa peregrinação destrinchando a discografia do Camaleão David Bowie. Após passar pelo período entre 1967 e 1973, destacando a essencial fase Ziggy Stardust, hoje apresentamos as fases Thin White Duck e Berlin, considerada por muitos fãs como a mais ambiciosa, e consequentemente, a melhor do britânico.


Diamond Dogs [1974]

Este álbum tende a ser menos badalado do que outros lançados por Bowie nos anos 70, mas é um dos que mais gosto dele nessa época. E é, como Ziggy, um disco que já esteve mais alto na minha lista, embora continue perto do topo. O álbum refletia a situação dele após ter matado Ziggy Stardust: em busca de uma direção. Parte das músicas derivou de um musical planejado em 1972 sobre Ziggy, parte de outro sobre o livro 1984 e o resto foi escrito especialmente para o disco. Tony Visconti reassumiu a cadeira de coprodutor, depois de quatro anos afastado, e Mick Ronson se mandou – o próprio Bowie gravou a maior parte das guitarras. Após a soturna “Future Legend”, um riff stoneano introduz a faixa-título e logo depois Bowie adota o barítono para cantar “Sweet Thing”, que tem “Candidate” ensanduichada entre suas duas partes. Mais um riff insistente de guitarra e temos a música mais conhecida do álbum, “Rebel Rebel”, encerrando um lado A perfeito. No velho lado B, “Rock’n’Roll With Me” deve ter feito os viúvos e viúvas de Ziggy Stardust chorarem de saudade, pois não faria feio nos discos anteriores. Mais uma música um tanto soturna, “We Are the Dead”, prepara o ouvinte para o auge do álbum com “1984”, “Big Brother” e “Chant of the Ever Circling Skeletal Family”, encerrando aquele que foi o primeiro disco que ouvi dele, ainda garoto. Bowie promoveu o álbum com uma extensa turnê em duas partes, que rendeu o mal falado David Live; particularmente, gosto do álbum (ainda que esteja aquém da capacidade dele em vários momentos), mas dois lançamentos posteriores, Cracked Actor (Live Los Angeles 1974) e I’m Only Dancing (The Soul Tour 74), são melhores. Bowie, o trovador folk-psicodélico, o alienígena bissexual, agora se tornava um soul man, e o resultado seria Young Americans – mas antes, haveria um álbum engavetado.


The Gouster”/”Young Americans [1975]

Após a segunda parte da turnê de Diamond Dogs, David Bowie voltou ao estúdio para gravar um álbum de soul music contemporânea, e o resultado foi The Gouster, que acabou engavetado e abria com uma nova versão de “John I’m Only Dancing”, com a qual o cantor vinha brincando desde 1972. Além dela, o álbum incluía “It’s Gonna be Me” e “Who Can I Be Now?”, que seriam deixadas de lado quando Bowie o regravou (outras três músicas, “Somebody Up There Like Me”, “Right” e “Can You Hear Me”, seriam remixadas ou regravadas e aparecem em Young Americans). The Gouster termina com a mesma versão de “Young Americans” que daria título ao LP efetivamente lançado em 75. O que levou o disco a ser deixado de lado, eu não sei, pois The Gouster é tão bom quanto o que saiu oficialmente – arrisco dizer que seria melhor se incluísse “Fame”, a famosa parceria com John Lennon, mas esta foi uma das últimas a serem gravadas. Quanto a Young Americans, dois colaboradores frequentes de Bowie estão presentes, os guitarristas Carlos Alomar e Earl Slick, além de Mike Garson e o saxofonista David Sanborn. Luther Vandross, que ficaria famoso na década de 80 como cantor de soul e R&B, aparece nos backing vocals, e é coautor de “Fascination”. John Lennon, que estava gravando seu álbum Rock’n’Roll, participa da cover de “Across the Universe” (que piorou a original que já era bem chatinha…) e de “Fame”. O álbum foi considerado pelo próprio Bowie como “plastic soul”, e é visto como um disco de transição entre o glam rock dos anos anteriores e a mistura de ritmos de Station to Station. Young Americans é um bom disco, que subiu muito de conceito na minha avaliação em anos recentes, mas Bowie faria ainda melhor num futuro bem próximo. E The Gouster poderia ter sido lançado sem problemas!


Station to Station [1976]

Este é o melhor álbum que David Bowie gravou, na minha opinião. Não somente, o melhor álbum ao vivo dele saiu da turnê de divulgação (Live Nassau Coliseum ‘76). Aqui temos mais um personagem, o Thin White Duke (erroneamente interpretado como um nazista por causa de uma foto famosa em que Bowie parece estar fazendo a saudação a Hitler, quando estava acenando para um amigo), que desfila sua voz em seis músicas absolutamente indispensáveis. Da faixa-título (como podem dez minutos passarem tão rapidamente?) à versão da bela “Wild is the Wind”, o álbum mantém um alto nível do começo ao fim, com as funkeadas “Stay”, “Golden Years” e “TVC 15” fazendo companhia à linda balada “Word on a Wing”. O álbum tinha começado como uma trilha sonora para o filme The Man Who Fell on Earth, que Bowie estrelou, mas esse projeto não prosperou; a capa traz um fotograma do filme. Poucas músicas têm uma mudança de ritmo tão interessante quanto “Station to Station”, em torno dos 5’20”, e embora Earl Slick estraçalhe na guitarra, para mim o grande destaque instrumental é o piano de The Professor, Roy Bittan (fãs do Bruce Springsteen sabem do que estou falando). As guitarras de Slick e Alomar dão um show em “Stay”, que ainda tem o baixista George Murray numa linha absolutamente sensacional. A música mais fraca é “TVC 15”, mas apenas por não estar à altura do resto. Arte mortal: Bowie revelou que, ao final da gravação, pesava em torno de 40 kg, estava tomado de paranoia, brigara com a maioria dos amigos e sua dieta era à base de pimentões, leite e cocaína. Entretanto, este é o disco que recomendo para quem quer começar a ouvir Bowie e não quer uma coletânea.


Low [1977]

David Bowie já tinha dado umas guinadas violentas na sua carreira, mas ninguém esperava um álbum tão radicalmente diferente de tudo o que ele tinha feito até então. Low é o primeiro disco da chamada trilogia berlinense, ainda que só uma parte do disco tenha sido gravada na capital alemã, onde ele tinha ido se refugiar para fugir um pouco da fama e dos excessos, depois de consumir toneladas de cocaína. Bowie e Iggy Pop se juntaram para tentar se limpar, e Brian Eno apareceu na vida deles, mudando a carreira de David. O primeiro produto foi este disco sensacional, fundamental, fenomenal, quase perfeito, que só perde para Station to Station na discografia do Camaleão. Lançado em janeiro de 1977, contra a vontade da RCA e praticamente sem promoção, Low vendeu muito bem e chegou ao 2º lugar da parada britânica. O disco abre com a instrumental “Speed of Life”, que deve ter feito os fãs de Bowie acharem que tinham recebido o LP errado, de tão diferente que é das músicas anteriores dele. A curta “Breaking Glass” foi composta em parceria com George Murray e Dennis Davis, respectivamente baixista e baterista que acompanharam o cantor neste e em vários outros discos da época. “What in the World” traz Iggy Pop nos backing vocals, e teria sido feita para The Idiot, do Iguana, mas acabou saindo aqui. Em seguida, a fantástica “Sound and Vision”, quase inteiramente instrumental, e possivelmente a música mais conhecida do álbum. “Always Crashing in the Same Car” é outra composição inesperada, diferente, mas sobretudo fascinante. E, claro, há as músicas instrumentais – ou quase – como “Warszawa”, “A New Career in a New Town”, “Art Decade”, “Weeping Wall” e “Subterraneans”, que fizeram muita gente coçar a cabeça, tentando entender o que aconteceu com Bowie. Low e os discos imediatamente subsequentes influenciariam profundamente a música britânica nos anos 80.


“Heroes” [1977]

O único álbum da trilogia berlinense integralmente gravado em Berlim é muito bom e a maioria dos artistas mataria para ter um disco desses na sua discografia. O problema é que estamos falando de David Bowie, e ele fez coisas melhores. O disco abre com a animada “Beauty and the Beast”, com Bowie, Fripp e Eno mandando ver. “Joe the Lion”, em seguida, não é lá essas coisas, mas a faixa-título, uma de suas músicas mais famosas, aumenta bastante o nível; Robert Fripp comentou que não entendia de onde vinham os cheques que estava recebendo, até que seu empresário esclareceu que era o pagamento por sua participação em “’Heroes’”. A música também fez sucesso em francês (“Héroes”) e alemão “(“Helden”). O antigo lado A do LP encerra com mais duas boas músicas, “Sons of the Silent Age” e “Blackout”. “V-2 Schneider”, uma homenagem ao Florian Schneider do Kraftwerk, é a abertura do lado B, quase inteiramente instrumental; uma das minhas favoritas do disco e dessa fase da carreira de Bowie. A gélida “Sense of Doubt” contrasta profundamente com a faixa anterior, mas é maravilhosa. “Moss Garden” traz Bowie se aventurando no koto, um instrumento japonês que, se não estou errado, foi usado pela primeira vez numa música de rock pelo Queen no álbum “A Night at the Opera”. “Neuköln” não é tão bem-sucedida quanto as anteriores: embora a melodia seja bonita, os saxofones estrangulados de Bowie prejudicam. Por fim, “The Secret Life of Arabia” encerra o disco como a única música com letra no velho lado B, mas também não impressiona muito. No todo, “’Heroes’” está abaixo de “Low” – mas suas melhores músicas, como a faixa-título, “Sense of Doubt”, “Sons of the Silent Age” e “V-2 Schneider”, são excepcionais. Este álbum foi promovido pela turnê “Isolar II”, da qual foi extraído o duplo ao vivo “Stage”, muito superior ao anêmico David Live – mas que posteriormente ficaria melhor com as bônus na versão disponível na box set A New Career in a New Town. E Welcome to the Blackout, gravado em Londres, é ainda melhor, com uma performance superior de Bowie e a banda.


Lodger [1979]

Bowie já não estava mais ligado em Berlim, mas este é considerado o terceiro volume da trilogia berlinense. Uma parte do álbum foi gravada durante a turnê “Isolar II” (o que faz com que vários músicos que acompanharam David nessa turnê, como Adrian Belew, Simon House, Roger Powell e Sean Mayes, apareçam no álbum), e outra parte logo após o seu término, em estúdios na Suíça e nos EUA. Lodger começa bem, com a boa “Fantastic Voyage”, mas, infelizmente, o que vem a seguir não mantém o padrão: “African Night Flight” é sem sentido a ponto de se tornar irritante, “Yassassin” é um estranho – e mal-sucedido – reggae turco (!), e as outras músicas “Move On” e “Red Sails” simplesmente não dizem a que vieram, ainda que sejam melhores do que as duas anteriores. As coisas melhoram no lado B do LP, com a razoável “D.J.”, e as boas “Look Back in Anger” e “Boys Keep Swinging”. Por outro lado, “Repetition” é bem fraca, e “Red Money” é razoável, fazendo com que, no todo, Lodger esteja muito abaixo dos outros álbuns da trilogia e seja um ponto fora da curva numa discografia que no meu ponto de vista vinha sendo impecável desde Diamond Dogs. A box set A New Career in a New Town traz uma versão remixada deste álbum, feita por Tony Visconti, mas não muda muita coisa – ouvi os discos em sequência e no fone de ouvido, e não vi tanta diferença assim. Os anos 70 estavam no final, e Bowie parecia estar meio perdido. Felizmente, o álbum seguinte recolocaria o mestre, ainda que temporariamente, nos trilhos.


Scary Monsters (And Super Creeps) [1980]

Após a trilogia berlinense, Bowie se despediu da década de 70 com um bom disco, o último a contar com a participação de Tony Visconti na produção por muito tempo, e, a rigor, o último por três anos. No começo dos anos 80, ele se aventuraria pelo teatro (participando das montagens teatrais de O Homem Elefante e Baal, para a qual gravou um EP de versões de músicas de Brecht para a trilha sonora) e pelo cinema, deixando a música em segundo plano, tanto que ficou cinco anos longe das apresentações ao vivo. Scary Monsters … começa e termina com “It’s No Game”, que não se diferencia muito das músicas de Lodger – mas é muito melhor que elas. Se “Up the Hill Backwards”, a segunda faixa, não chega a impressionar muito, a terceira – a faixa-título – é digna do melhor que Bowie gravou, e tendo na sequência “Ashes to Ashes” e “Fashion”, o nível do álbum vai nas alturas; o clip de “Ashes to Ashes” é considerado esteticamente revolucionário, e inclusive foi incluído na primeira edição da box set “Sound and Vision”, que trazia um CD com vídeos. Além disso, a música esclarece por que o major Tom saiu de sua espaçonave (We know Major Tom is a junkie…)! A bela “Teenage Wildlife” traz várias guitarras se entrelaçando, mas dá destaque também para o bom piano de Roy Bittan. O que vem imediatamente a seguir não consegue manter o mesmo nível, com a versão de “Kingdom Come” soando inferior à original de Tom Verlaine, e somente na quarta faixa do antigo lado B se tem uma música de alto nível, “Because You’re Young”, antes de encerrar com a “Part 2” de “It’s No Game” (da qual gosto mais do que da primeira, aliás). No todo, com cinco músicas muito boas (ou seis, se considerarmos as duas partes de “It’s No Game”), Scary Monsters (And Super Creeps) fica no meio do caminho: ele se tornaria o padrão pelo qual os discos seguintes de Bowie seriam avaliados, e embora muito melhor do que Lodger, não é de todo bem-sucedido.

Mês que vem adentraremos os anos 80, com as grandes turnês (que trouxe Bowie ao Brasil pela primeira vez) e muitas reviravoltas na carreira de Bowie

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