As pérolas aos porcos de Tom Rapp

As pérolas aos porcos de Tom Rapp

Por Marco Gaspari

A safra de LSD produzida e distribuída por Owsley Stanley em São Francisco naquele ano de 1967 devia ser das melhores, porque os freaks da cidade simplesmente alucinaram quando viram nas lojas aquele disco incomum, cuja capa mostrava um detalhe do quadro “O Jardim das Delícias” do pintor flamengo Hyeronimus Bosch.

O nome do disco era One Nation Underground, estréia da banda Pearls Before Swine, que na contracapa não fornecia nada mais além das letras de algumas músicas. Nada de ficha técnica, nada de foto da banda, um mistério que só serviu para alimentar as especulações da população hippie que já havia chapado com o último disco dos Beatles: Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band.

Como o som era algo que hoje podemos rotular de acid folk melódico, e os arranjos traziam exóticos instrumentos árabes e asiáticos sobre um farfisa garageiro, o cérebro fritado em banha ácida da comunidade hippie começou a viajar e boatos foram levantados de que aquele disco deveria ser uma não creditada parceria entre ninguém menos do que Bob Dylan e os Beatles.

Bom, as letras eram originais, poéticas, desarticuladas e longe do estilo dylanesco, o que não impediu que justificassem como letras de outra pessoa na voz de Mr. Zimmerman. E quanto aos arranjos sofisticados, eles até que tinham um pedigree que se encaixava na árvore genealógica dos rapazes de Liverpool, mas a viagem não acabava por aí. A alucinação bateu forte por causa do selo que lançou o disco: o novaiorquino ESP Records, com certeza o selo mais anticomercial daquela época, que já havia lançado dois discos da banda The Fugs e vários álbuns experimentais de free jazz. Se dois dos maiores expoentes da música jovem de então quisessem documentar uma parceria e escapar dos problemas contratuais com suas gravadoras, nada melhor do que um disco fantasma lançado pelo mais underground dos selos. Na cabeça de todo pirado que habitasse entre o distrito de Haigh-Ashbury, em São Francisco, e o bairro do SoHo, em Nova York,  tudo se encaixava e One Nation Underground vendeu na época cerca de 200 mil unidades. É até hoje o disco mais vendido da história da ESP Records.

No ano seguinte, um novo disco do Pearls Before Swine, tão bom quanto o primeiro, aterrissou nas lojas: Balaklava. Desta vez, o disco trazia na capa uma pintura do também pintor flamengo Pieter Bruegel (o velho) chamada “O Triunfo da Morte”; e não por acaso, Bruegel tinha Bosch como uma de suas principais influências. Aqui o PBS revela não apenas sua temática anti-war como também todo o seu mistério para aqueles que não se deram ao trabalho de ler resenhas sobre o primeiro disco nas revistas da época, já que traz uma foto da banda na contracapa e o nome de seus integrantes.

Para ser sincero, não sei se é correto chamar o PBS de banda. Estava mais para um projeto de um jovem e brilhante músico, autor de muitas das letras mais poéticas e surrealistas dos anos 60,  chamado Tom Rapp. Tom nasceu na cidade de Bottineau, Dakota do Norte, quase na fronteira com o Canadá, e cresceu em Minnesota, onde foi muito influenciado pelos músicos de country e folk locais. Seu estalo para a música, porém, aconteceu quando ouviu no rádio Peter, Paul and Mary tocando “Blowing In The Wind”. Resolveu aprender a tocar a música imediatamente e, quando soube que era de Bob Dylan, interessou-se pelo compositor e passou também a compor. Espécie de autodidata, Tom aprendeu tudo o que sabia sobre tocar um instrumento nas folhas de um song book de Joan Baez. Junto com três amigos da escola onde fazia o colegial em Melbourne, na Flórida, formou uma banda  (Wayne Harley no banjo e bandolin, Lane Lederer no baixo e guitarra e Roger Crissinger nos teclados) e gravou uma fita demo que foi enviada à ESP Records. Imediatamente foram convidados a gravar um álbum.

Essa tal de ESP Records foi a primeira gravadora dedicada quase que exclusivamente à música underground. Pertencia a um advogado do ramo musical de nome Bernard Stollman e foi fundada em 1963 na cidade de Nova York com o nome de Esperanto Disk, cuja especialidade era gravar LPs  nessa língua universal. Quando encurtou o nome da gravadora para ESP, Stollman passou a oferecer, podemos dizer, a única oportunidade para músicos de jazz de vanguarda, folk-rock boêmio e colagens experimentais gravarem um disco. Graças a esse espírito pouco convencional e alheio ao mainstrem, a ESP lançou discos de Sun Ra, Pharoah Sanders, Paul Blee, The Fugs e Holy Modal Rounders, entre outros alucinados. Também tinha parte de seu catálogo dedicado ao que hoje chamamos de World Music, com discos de música regional de vários países.

Aliás, isso explica a sonoridade medieval e os instrumentos exóticos do primeiro disco do PSB. Quando Tom Rapp e cia. entraram no estúdio da ESP em Nova York, encontraram vários instrumentos das bandas étnicas que gravavam por lá. Como a gravadora cedia apenas o estúdio, sem ter um produtor ou engenheiro de som, as bandas usavam seu tempo como queriam e o PSB se sentiu à vontade para tirar um som dos sarangis, ouds (espécie de balalaika) e osciladores que estavam dando sopa.

O sucesso de Balaklava, tanto de público quanto de crítica, acabou animando Bernard Stollman a oferecer uma compensação financeira a Tom Rapp, mas imagino que não deva ter sido muito boa pois já li algumas entrevistas do artista dizendo que ele não fez dinheiro algum com esses discos.

Balaklava também marca o final da carreira do Pearls Before Swine como grupo, pois os três amigos de Rapp debandaram logo após e ele continuou como artista solo, mas usando ainda o nome do PBS. Lançou 5 discos pela Warner/Reprise e 2 pela Blue Thumb até 1973.

Em 1976, finalmente caiu a ficha de que, apesar de ter gravado quase uma dezena de LPs, lançado vários compactos, feito vários shows e conquistado  um certo reconhecimento da crítica especializada, não valia mais a pena para um artista com tão pouco apelo comercial como ele viver quebrado financeiramente. Rapp então abandonou a música e voltou a estudar, formando-se em economia e advocacia.

Em 1995, após aceitar um convite do fanzine Ptolomaic Terrascope, apresentou-se ao vivo junto com seu filho David e pode constatar que sua música havia influenciado vários novos artistas. Muitos deles, inclusive, gravaram um CD tributo ao Perls Before Swine em 1997.

Vou finalizar com um trecho de uma entrevista de Rapp à Revista Goldmine de outubro de 1994: “Eles (Warner/Reprise) disseram que havia um público para o que eu estava fazendo, mas não tinham nenhuma idéia de onde ele estaria ou de como alcançá-lo, mas os discos estavam vendendo e havia difusão em todo o mundo. Realmente, uma vez eu recebi um cheque da BMI da Albania ou Paquistão no valor de $22.50, então as pessoas ainda estavam me ouvindo”. 

23 comentários sobre “As pérolas aos porcos de Tom Rapp

  1. Ótimo texto, pra variar!
    Pelo que eu percebo, vc é bem interessado nessa psicodelia underground ou ground dos EUA, certo, Siri? Não é o primeiro texto seu que leio a respeito.
    Muitos vão dizer que falar desses artistas obscuros é coisa de fã de progressivo que não tem vida social e bate punheta ao som de Eloy, mas enquanto forem artistas minimamente ousados, eu tô curtindo!
    Vc podia até fazer uma continuação, com o restante da carreira do Tom Rapp!

  2. Groucho
    Você acertou em tudo o que escreveu, menos no “bater punheta ao som do Eloy” porque essa banda definitivamente nunca me excitou o suficiente. Já confessei a você e ao Bueno que me sinto um anacronismo (ou um alienígena, se preferir) neste blog, repleto de pessoas mais jovens do que eu e com gostos tão mais contemporâneos do que os meus. Mas tenho aprendido muito com todos e já que o nome é consultoria do rock e eu escrevo a respeito de rock, vou em frente até que me expulsem. Não me animo a juntar letrinhas sobre bandas famosas, ser mais um a escrever a respeito de um assunto que outras pessoas melhores e mais bem informadas do que eu já esgotaram. Bandas obscuras não são necessariamente piores do que as mainstreams e merecem que alguém dedique seu tempo a tirá-las do limbo. Mas não me prendo apenas à psicodelia americana. Quem lia meus textos na poeiraZine sabe que eu, apesar de me prender a uma determinada época, atiro pra todo o lado. E que bom que você gostou do Pearls. Não falei de todos os Lps porque não iam acrescentar muito mais ao texto.

  3. Marco
    Já te falei que aqui vc oode escrever sobre o que quiser que gente publica. Pode ser até receita de bolo…rs
    Eu gosto muito desses seus textos sobre bandas fora do mainstream…muitas vezes tive ótimas experiências.
    Não sei se esse post ficou do seu agrado, orincipalmente em relação à posição das fotos. Publiquei ele de madrugada depois de uma longa seção de progressivo italiano com uns amigos regada à muita Heineken gelada…rs…eu tava um pouco "alterado"…rs

  4. Tenho que confessar que sou bastante ressabiado em relação à psicodelia proveniente de San Francisco no final dos anos 70. O que já ouvi de lá não desceu muito bem, o que não quer dizer que certas coisas não possam vir a me interessar. Ademais, interessante o fato de que o primeiro álbum vendeu mais de 200 mil cópias. Acho que isso já é o suficiente para torná-lo nem tão obscuro assim.

  5. Eu penso da seguinte forma, Diogo: se você já ouviu discos de psicodelia da costa oeste e não gostou, provavelmente não vai gostar de nada, porque o som das bandas era muito característico. Quem se acostumou com a sonoridade mais rebuscada e virtuosa dos grupos de metal, por exemplo, sempre vai estranhar o (quase sempre) amadorismo das bandas californianas da época. O Pearls Before Swine gravava em Nova Iorque, mas se identificava com a costa oeste. Seu som estava mais para um folk ácido, baladeiro e refinado. Ouvir não é tão difícil assim já que esses dois discos estão quase completos no youtube. São músicas de 2 a 4 minutos, então basta escolher uma, ouvir e pronto: esta matéria já cumpriu seu objetivo.

  6. Corrigindo, me referia ao final dos anos 60, hehe.

    Jamais ousaria fazer essa comparação com grupos de heavy metal, afinal são coisas completamente diferentes. No entanto, curto bastante a psicodelia britânica, e esse é meu parâmetro.

  7. Hehehe…não foi você que ousou fazer a comparação com o heavy metal, Diogo. Fui eu. Eu tenho uma teoria (e só tomo porrada quando a defendo) de que as pessoas se acostumam com determinada sonoridade e se sentem confortáveis com ela, estranhando e muitas vezes repudiando as demais. Eu, por exemplo, sou cria do analógico e estranho muito a limpidez das mídias digitais (mesmo depois de tantos anos). Também fui formado ouvindo as guitarras moles da psicodelia (americana ou inglesa) e a sofisticação do progressivo. Então acho o metal (mesmo o prog metal) encorpado e agressivo aos meus ouvidos. Dentro dessa teoria, o vice versa funciona do mesmo jeito. Agora, quanto à psicodelia americana ou inglesa, gosto das duas. Mas a inglesa é mais surpreendente.

  8. Meu ouvido é acostumado a brega – Bartô Galeno, Amado Batista e afins -, pois quando criança eu ia pro bar com meu pai e era isso o que rolava. Também ouvia muito forró, que tocava sempre no rádio. Não posso deixar de considerar também o sertanejo, o pagode – principalmente o Molejão e o SPC – e nossa querida Axé Music! Por isso, hoje eu sou fã de Yes, Pink Floyd e Magma, e não dou nem bom dia pra quem não gosta dos mesmos!

  9. É como eu disse, Groucho: Bartô Galeno e Christian Vander, Amado Batista e Roger Waters… tudo farinha do mesmo saco. E se não quiser dar bom dia, ainda sobram duas opções: o boa tarde e o boa noite.

  10. Bandas psicodélicas americanas… há várias. Eu recomendaria Moby Grape, Greateful Dead, Love, The Byrds, Country Joe & the Fish, Fifty Foot Hose etc. Prefiro a psicodelia britânica.. nessa sim eu posso sugerir dezenas de bandas psicodélicas, psych folk, acid folk.

  11. Otimo texto. Sou fascinado pela psicodelia americana. Das bandas citadas pelo Victor, acrescento ainda Quicksilver Messenger Service, It's A Beautiful Day, Jefferson Airplane, Mamas & The Papas e por ai vai. Não tenho o prazer de conhecer os álbuns citados no texto, mas sendo indicação do Mister Master Gaspa com certeza deve ser bom.

    A psicodelia inglesa é um mundo bem mais pesado do que a americana. Creio que o LSD deles era mais alucinante e com "conservantes", já que os americanos se chapavam muito com cogumelos, talvez por isso da melodia mais suave na América, que desagrada a tantos.

    Parabéns!

  12. Sim, o Quicksilver Messenger Service, It's a beautiful day, Jefferson Airplane.. Mamas eu não acho tanto, para mim eles puxaram muito mais para o pop.

    Quanto ao PBS, eu escutei o 2º disco, não gostei muito, mas creio que seja por causa do seu ritmo e tal. Exatamente o que o Mairon Machado falou.

    Agora, para complementar (bem atrasado, eu sei) tem muita coisa mais underground que foi da década de 60 que é psicodélica e é muito boa. Eu por exemplo curto tanto a psicodelia americana e britânica dessas bandas mais desconhecidas, já das mais conhecidas, fico com a Britânica, óbvio! Bandas como Grapefruit, Rainbow Ffolly, Dr Strangely Strange, Skip Bifferty, Fresh Maggots, Strawberry Alarm Clock, Ultimate Spinach, The Left Banke (todas essas voltadas ao acid folk ou ao psicodélico, que creio que há algum tipo de ligação) e tantas outras que deveriam ter feito muito sucesso caíram na escuridão praticamente e acabaram gravando um ou dois cd's. Muito triste isso.

    Eu sei que eu falei um monte de coisa sem nexo, mas é quase um desabafo, não há necessidade de nexo auhsusahuhas.

    Seria legal se vocês postassem mais coisas sobre a música psicodélica (tipo esse post e o do Small Faces)… minha corrente musical favorita.

    1. Fresh Maggots é uma coisa maravilhosa! “Rosemary Hill” é uma das coisas mais lindas que estes meus velhos ouvidos já escutaram…

  13. Victor
    Saber se tal banda a qual vamos escrever agrada ao leitor ou não é muito relativo. Não me sinto na obrigação de escrever sobre uma banda específica porque sei que ela vai agradar. Fosse assim, só ficava nas óbvias. Interessa-me muito mais o contexto de cada grupo e se ele tem uma história curiosa para contar, como foi o caso do PBS. E é claro que eu gosto muito desse som. Vivi parte da minha adolescência nos anos 60 e aprendi a gostar de rock através das bandas psicodélicos. Tenho um carinho todo especial por elas e conheço muitas, inglesas, americanas, sul americanas, canadenses, da cortina de ferro, da França, Espanha, Alemanha, Itália, Holanda, Escandinávia, Ásia, enfim… Escrevi muito sobre várias bandas para a revista poeiraZine e sempre com o mesmo critério que adoto aqui. Fique atento que aos poucos vou postando mais, agrade ou não. A propósito, o país cuja psicodelia me fascina mais é a Turquia.

  14. Hehe. Calma rapaz. Só estou falando, não estou mandando nada não. Nossa, não estou entendendo porque estão achando que eu estou obrigando vocês a escreverem sobre as bandas que eu quero. Não falei isso em momento algum. Só foi um comentário sobre as bandas que eu gosto que são desconhecidas (um desabafo, praticamente, como eu mesmo falei) e uma sugestão (mas parece que ninguém quer, sem problemas). Não me interprete a mal. Quem disse que o post não me agradou? Só por que eu não gosto muito da banda? (eu escutei ontem o One Nation Underground, achei melhor que o Balaklava). Também não entendi esse de bandas óbvias, creio que eu não falei nada disso (até porque não são elas que mais me agradam). É, você sabe muito de psicodelia, como me falaram. Eu ia até procurar a revista rs.

  15. Calma os dois. Nem o Victor quer "mandar" no blog, nem acho que o Gaspari tenha entendido isso. Aguardemos então o próximo post do Gaspari sobre a psicodelia da Macedônia. Pra completar meu papel de Abbes da Consultoria: Vamos em frente! xD

  16. Victor
    Fiz uma coisa muito feia que é ficar me achando. Me perdoe. Claro que você tem todo o direito de gostar ou não das bandas que eu índico. De gostar mais ou menos. Eu, na realidade, já gostei de você logo de cara. Uma pessoa que aprecia psicodelia e que escreve o nome das bandas que você escreveu só pode ser gente boa. Eu é que estou ficando gagá e entendi mal parte do seu comentário lá em cima (que parece nem era dirigido a mim, mas sobre essa coisa de americanos x ingleses). Não seja severo comigo nem me leve a mal. O simples fato de você ter lido o que escrevi já me deixa feliz. Temos muitas bandas em comum, Victor. O mesmo fascínio para esses artefatos perdidos no tempo. Ainda vamos dar muita risada e trocar figurinhas sonoras.
    Paz!

  17. Pô, cara, claro que eu não falei nada com você! É ótimo ver que eu não sou o único que curte psicodelia! E mais interessante ainda é poder ler um texto de alguém que vivenciou a época!! Mesmo que eu não goste da banda, eu gostei do texto e baixei até o One Nation para ver se eu gosto mais da banda, e lhe digo, gostei sim! Claro que não levo a mal, foi um mal entendido, acontece. Sim, sim, iremos!!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.