Encerrando nossa viagem inicial para o Japão, nesta semana navegaremos pelas loucas águas tsunâmicas do mar chamado “Metempsychosis”, formado no cérebro de dois japoneses insanos conhecidos pelos nomes Stomu Yamashta e Masahiko Satoh.
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Stomu Yamashta |
A carreira do baterista Stomu Yamashta começou muito cedo. Nascido em 15 de março de 1947, aos 10 anos começou a desenvolver sua paixão pela percussão, levando-o posteriormente para a Universidade de Kyoto e lecionando na Juilliard School of Music e na Berklee College of Music (EUA). Logo, passou a compor e gravar álbuns, sendo seus três primeiros uma aula de mistura jazzística com música clássica: Percussion Recital; The World of Stomu Yamashta; e Uzu – The World of Stomu Yamashta 2; todos lançados em 1971.
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Masahiko Sato |
Já Masahiko Satoh nasceu em 1941, e, assim como Yamashta, começou desde cedo a desenvolver seu lado musical, mas ao piano. Graduado na Universidade de Keio, estudou posteriormente música, composição e arranjo na Berklee College of Music durante os anos de 1966 e 1968, voltando para o Japão e gravando seu primeiro álbum, Palladium, no ano de 1969, recebendo o prêmio de jazz do Japão da revista Swing Journal como melhor álbum de jazz daquele ano.
No ano seguinte, ganhou o prêmio de excelência do Festival de Arte Nacional do Japão com o álbum Four Jazz Compositions, após ter gravado sete álbuns em menos de dez meses, todos com fortes influências do free jazz. Satoh conheceu Yamashta durante sua estada em Berklee. A personalidade forte do jovem baterista contagiou Satoh, que decidiu compôr uma peça orquestral que misturasse o jazz e a orquestra da dupla com os novos sons que vinham do ocidente através do progressivo.
Assim, com a companhia da New Herd Orchestra, regida pelo maestro Miyama Toshiyuki e tendo como membros Masaaki Ito (baixo), Isao Yomoda (bateria), Isao Kimura (saxofone alto), Kazumi Oguro (saxofone alto), Shigeru Hirano (saxofone barítono), Mamoru Mori (saxofone tenor), Seiji Inoue (saxofone tenor), Masamichi Uetaka (trombone), Takahide Uchida (trombone), Takashi Hayakawa(trombone), Teruhiko Kataoka (trombone), Shin Kazuhara (trompete), Kazumi Takeda (trompete), Shuji Atsuta (trompete) e Yoshikazu Kishi (trompete), Satoh colocou para fora toda sua insanidade que estava guardada em algum canto de seu cérebro, em uma explosão musical enlouquecedora de mais de 35 minutos, batizada sutilmente de “Metempsychosis”, a qual é dividida em duas partes e foi registrada ao vivo nos estúdios da Columbia japonesa na data de 27 de janeiro de 1971, e que foi registrada no álbum Metempsychosis: Composition for Percussion and Jazz Orchestra.
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O herói japonês da percussão, Stomu Yamashta |
A canção começa com a orquestra fazendo a introdução, destacando os trompetes, em um tema muito sinistro, parecendo uma trilha de filme de horror. Lentamente, xilofone e baixo vão aparecendo, enquanto os metais continuam seu tema sombrio ao fundo, em um crescendo lento e arrepiante. O xilofone já assume sua posição, batendo notas repetidas, enquanto os metais fazem a viajante camada sonora permeada pelas notas soltas do baixo.
Essa densa e sombria introdução é uma pequena amostra do que virá pela frente. A entrada da percussão de Stomu imita janelas quebradas, e a aflição gerada por “Metempsychosis” é enorme, como que sufocando o ouvinte a cada segundo.
Os metais começam a se sobrepor, fazendo uma densa sonoridade que encobre xilofone e baixo, abrindo espaço para a entrada alucinante de Yamashta, solando ferozmente enquanto os metais soltam acordes soltos e doentios. A velocidade das batidas percussivas de Yamashta é mesclada com fúria e técnica inigualáveis, alterando os instrumentos em uma sequência fenomenal.
O volume dos acordes dos metais diminui, com Yamashta diminuindo a velocidade de seu solo, explodindo novamente em uma insana sessão, onde o saxofone surge acompanhado por piano, baixo e percussão em uma estonteante sessão de free jazz, com uma barulheira ensurdecedora dos metais, e com Hirano se esganiçando no saxofone. Satoh e Yamashta destroem piano e bateria ao mesmo tempo, enquanto Masaaki delira no baixo. As escalas rápidas são as únicas sanidades entre metais ácidos e percussão arrebatadora.
Então, Yamashta e Yomoda assumem o posto principal, com um solo percussivo fenomenal, onde ambos mandam ver em viradas, rolos, rufadas e acompanhamentos muito velozes. A sessão muda para uma indescritível sequência nos pratos, caixas e outros instrumentos de percussão, com Yamashta batendo em uma pequena caixeta em uma velocidade absurda enquanto Yomoda soca sua bateria para o interior da Terra. Ambos passam a travar uma batalha gigantesca com seus kits de percussão, onde um sobrepõe ao outro, chegando ao meio da insanidade e demência musical com batidas fortes e em ritmos desconcertantes.
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Yamashta |
Tudo acalma, com Yamashta mantendo o ritmo apenas com as baquetas tocando nas suas percussões, mas Yomota coloca novamente a casa para baixo em um ataque dinâmico e ensurdecedor aos pratos e ao bumbo. Fãs de Neil Peart, não se assutem, afinal, essa gigantesca monstruosidade percussiva está sendo feita por dois homens.
Depois de alguns segundos de puro silêncio, os metais surgem fazendo temas aleatórios, junto do piano, com marcações dos trompetes e saxofones que parecem ter saído de algum álbum psicodélico de Frank Zappa. A percussão vai invadindo as camadas de metais, que parece se abrir como uma flor para a bateria penetrar entre seus acordes e arrancar das entranhas o néctar necessário para a sequência da música.
Os agonizantes segundos dão lugar para batidas soltas da percussão, perdida em um espaço somente de Yamashta, alternando segundos de silêncio e segundos de batidas fortes e assustadoras, encerrando a primeira parte da canção.
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Yamashta |
Os metais entram novamente, como um tsunami no meio do oceano, e a percussão tenta se manter em pé com a força gerada pelas camadas e camadas de metais sobrepostos, de onde um saxofone aparece para fazer um breve tema, acompanhado pelos metais.
Com os metais fazendo um tema que mais lembra um enxame de abelhas, os saxofones saltam nas caixas de som, delirando com piano e percussão para atingir o êxtase das experimentações, repetindo a histeria anterior só que com os metais ainda mais ensurdecedores, onde Satoh faz um espetáculo a parte no piano. A onda tsunâmica vem com força, arrastando o que tiver pela frente, e praticamente é impossível decifrar o que está acontecendo no estúdio. Piano, percussão e metais formam uma densa sopa sonora, ensurdecedora, até parar repentinamente.
Achando que iremos respirar, Yamashta e Yomoda passam a bater novamente em seus kits percussivos, com o volume bem baixo, aumentando rápido sobre o ritmo constante das batidas. Dessa vez, a viagem individual de cada um dos japoneses está com pelo menos um dos pés no chão, e o ritmo criado é interessante.
Os metais então fazem um solo que cobre o ritmo percussivo, ganhando espaço entre as batidas mas sem muita loucura. O volume das batidas aumenta, assim como o dos metais, deixando Yamashta e Yomoda sozinhos, solando nos seus instrumentos e com palmas marcando o ritmo das batidas. Os metais aparecem novamente, fazendo seu solo, e o volume diminui, parecendo levar ao final da canção.
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Satoh |
Mas, ainda não é hora de isso acontecer. O grande final reserva o momento mais belo da canção. As percussões surgem em um volume muito baixo, com vozes sendo ouvidas. Batidas em latas, metais e outros materiais do gêneros são atiradas para o ouvinte, e um barulho muito estranho pode ser ouvido ao fundo, trazendo então os metais e o piano, largando acordes sinistros, que vão formando um elo sensacional, com a martelante batida percussiva acompanhado o belíssimo solo de saxofone, enquanto metais e piano fazem os acordes que marcam o tempo das batidas.
Oguro sola sozinho no saxofone, com intervenções percussivas durante o mesmo, para Yamashta e Yomoda apresentarem seu último solo de percussão, em mais uma sequências de barulhos incomuns que explodem na piração final de metais, piano e percussão cuspindo raiva e fúria no momento de maior loucura de “Metempsychosis”, onde a conclusão final é que somente sendo muito louco para fazer algo desse nível.
Por fim, Yamashta encerra nossa maravilha com um solo nos tons, e os metais fazendo a estonteante sessão de barulhos que comprovam: a dose de sanidade mental faltou para os japoneses.
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O supergurpo Go: Michael Shrieve, Stomu Yamashta, Klaus Schulze e Steve Winwood |
“Metempsychosis” não é para principantes. Sua forte influência do free jazz pode acabar afastando o ouvinte após uma primeira audição. Porém, para os iniciados, “Metempsychosis” é uma das melhores peças já compostas na história da música, justamente pela sua influência jazzística. As camadas de metais e percussão, em um andamento que rola sobre uma dinâmica única, são as responsáveis pelo lado progressivo da canção, que seria posteriormente empregado por Yamashta ao lado de Stevie Winwood (Traffic), o tecladista Klaus Schulze (Tangerine Dream, Ash Ra Tempel), o percussionista Michael Shrieve (Santana) e o violonista/guitarrista Al di Meola, no super grupo Go, combinando rock progressivo, fusion e eletrônico em três discos excelentes: Go (1976), Live from Paris (1976) e Go Too (1977).
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Stomu Yamashta |
Metempsychosis: Composition for Percussion and Jazz Orchestra é um dos principais registros da gravadora Columbia nipônica, e também um dos mais cultuados LPs do cenário japonês, custando alguns quilos de picanha no mercado, não somente pela sua raridade, mas por causa da sua importância musical.
Antes de se juntar ao Go, Yamashta gravou Red Buddha, outro álbum experimental de extrema relevância no Japão, seguindo em paralelo à carreira solo uma carreira de compositor de peças musicais para teatro e filmes, destacando a trilha para “The Man Who Fell to Earth” (1976), estrelado por David Bowie.
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Masahiko Satoh |
Já Satoh voltou para sua carreira solo ligada ao jazz, lançado mais de 50 discos e tendo o auge do sucesso ao lado dos monstros Steve Gadd (bateria) e Eddie Gomez (baixo) no álbum Amorphism (1985), além de ter participado como convidado de álbuns de diversos artistas, como Art Farmer, Ambrosia, Ecco Trio e Charles Mingus.
Como é bom começar o dia surpreendido por uma matéria, no mínimo, incomum. Gosto muito do Yamashta e tenho alguns LPs a partir do Red Buddha. Para mim são clássicos. Essa fase abordada aqui eu não conheço e vou atrás com certeza. Muito legal, Mairon, mais uma vez. Cada vez me convenço mais de que somos meio que ouvidos gêmeos, hehe…
Pois eh Gaspa, a fase do Yamashta no inicio de carreira eh excelente. Por incrivel que pareca, eu nao consigo gostar tanto do Go quanto deveria ser. Mais um daqueles super grupos q nao funcionaram como os nomes prometiam.
O Red Buddha é essencial. Prfeito é pouco. Mas essa obra com o Satoh eh um atentado ao pudor de tao bom!
Os discos que tenho do Yamashta foram comprados nos anos 70 e comecinho dos 80. Eram sempre uma supresa, pois apesar de toda aquela aura de artefato oriental, o som dele flertava muito bem com os sons ocidentais. Gosto muito também do Come To The Edge, que lembra muito o Soft Machine (tanto que a formação do East Wind tinha Hugh Hopper, isso antes dele formar o Isotope).
Não comecei nem a engatinhar nas bandas japonesas, mas acho que esse foi o que mais atraiu minha atenção. Nem todo free jazz me desce, mas também pode ser meu ouvido que é pouco acostumado. E, porra, nunca tinha ouvido falar nesse Go, que time, hein?!
Parece ser interessantíssimo! não conheço, apenas algumas coisas do grupo Go.
Abraço!!
Ronaldo