Discografias Comentadas: Ratos de Porão – Parte I

Discografias Comentadas: Ratos de Porão – Parte I

Por Bruno Marise

Com mais de 30 anos de carreira, e 12 discos de estúdio, o grupo brasileiro Ratos de Porão se firmou como uma das melhores e mais importantes bandas de hardcore e crossover da América Latina e do mundo. Formada em 1980 por Jão (guitarra e vocal), seu primo Betinho (bateria), e Jabá (baixo), todos membros da recém criada cena punk de São Paulo, tocariam no lendário festival O Começo do Fim do Mundo em 1982.

No ano seguinte, com dificuldades para cantar e tocar ao mesmo tempo,  Jão decide ficar só nos vocais e convida Mingau (hoje no Ultraje a Rigor) para assumir as seis cordas. Assim gravam a coletânea SUB (1983), juntamente com Cólera, Psykoze e Fogo Cruzado (disputada à tapas por colecionadores, um registro histórico e raro do punk rock nacional).

Em 1983, com a saída de Betinho, Jão assumiria as baquetas, e João Gordo o vocal, para a gravação de seu disco de estreia, produzido e distribuído por Fabião, líder do Olho Seco e famoso lojista da época. O trabalho daria o pontapé para uma das carreiras mais fortes do cenário pesado, recheada de  clássicos.

Preparem-se que a hecatombe vai começar!

RDP em 1983: Mingau, Jão, Jabá e João Gordo.
Crucificados Pelo Sistema [1984]

O disco de estreia do Ratos de Porão é o primeiro registro full lenght de uma banda de punk/hardcore da América Latina. Gravado em apenas dezesseis canais, a precariedade dos equipamentos fica evidente na sonoridade do disco, bastante ruim. O repertório, longe de ser brilhante, é compensado por alguns bons momentos que se eternizariam, e são lembrados até hoje pela banda. É o caso de “Morrer“,  “Caos“, “Agressão/Repressão“, “Periferia“, “Pobreza“, “Obrigado a Obedecer” e a faixa título. Com as letras simples e diretas, desde já tratando de problemas sociais, mas claramente escritas pelas cabeças inocentes de jovens de classe baixa, o som não traz nada de novo além do punk rock cru tocado muito rápido para a época, que serviu para que o RDP fosse logo rotulado como um grupo de Hardcore, sem ainda se saber direito o que isso significava. O álbum saiu em um ano complicado para o movimento punk no Brasil, que se desfez completamente depois de uma reportagem sensacionalista exibida pelo Fantástico. Por isso, sequer houve um show de lançamento, e o álbum teve divulgação quase zero. João Gordo, cansado das brigas de gangues e da violência da decadente cena punk, passou a frequentar o circuito do metal e saiu da banda. Mingau também deixa o grupo para formar o 365. Assim, o Ratos se desfaz por um tempo. No geral, Crucificados Pelo Sistema mostra uma banda muito verde, ainda sem o pleno domínio de sua musicalidade, mas já com algumas boas composições e uma atitude que se sobressai em relação a dos grupos da época, e vale como um registro histórico e importantíssimo para o Punk/Hardcore brasileiro e mundial.


Descanse Em Paz [1986]
Em 1985, com a saída de Mingau e João Gordo, Jão remonta o Ratos como um trio, assumindo as guitarras e o vocal, com Jabá ainda no baixo e Betinho de volta pra bateria. Com essa formação, registraram um Split ao vivo com o Cólera, o Ao Vivo na Lira Paulistana (1985). A volta de Betinho durou pouco, e ele deixa o Ratos novamente. João Gordo retorna, dessa vez com a bagagem e as influências do Heavy Metal e o Crossover de bandas como D.R.I., Discharge e English Dogs, na época ainda chamadas de Punk Metal. Para as baquetas é convocado Spaghetti, antigo membro da cena punk de São Paulo. No ano seguinte, é gravado e lançado Descanse em Paz, pelo selo Baratos Afins, de Luiz Calanca. O que chama a atenção de cara é a capa, totalmente mórbida, com a foto de uma mulher morta a pancadas, retirada de um tablóide carioca. Ao pôr para tocar, o que se ouve é um verdadeiro caos sonoro, onde a banda mescla seu hardcore sujo do primeiro álbum com algumas influências (ainda tímidas) de metal e crossover. A produção é superior a de Crucificados Pelo Sistema (1984), mas ainda longe de ser ideal. A temática continua sendo de contestação social, mas as composições evoluíram, e já aparecem novos clássicos como “Cérebros Atômicos”, “Paranoia Nuclear” e “Velhus Decréptus” com seu riff marcante. Os fãs mais xiitas, entusiastas do hardcore puro do disco de estreia, não gostaram do flerte com o Heavy Metal, e o RDP virou alvo de críticas, com os integrantes sendo taxados de traidores. Por outro lado, o disco chamou a atenção dos headbangers para o grupo que ainda buscava seu humilde espaço, fazendo o que gosta, sem ligar para as opiniões alheias. Em suma, Descanse Em Paz mostra uma evolução tanto nas composições como na parte técnica, mas é um disco de transição de um grupo ainda em busca de sua sonoridade ideal.

Formação clássica do RDP em 1986: Jão, Gordo, Jabá e Spaghetti
Cada Dia Mais Sujo E Agressivo [1987]
Através de uma matéria do jornal Folha de Minas, de Belo Horizonte, em que o Sepultura dizia que o Ratos de Porão era a melhor banda do Brasil, João Gordo entra em contato com o grupo mineiro e vai até BH, onde o RDP faz alguns shows junto com a banda dos irmãos Cavalera. A Cogumelo Discos, selo do Sepultura, contrata o Ratos para o lançamento de seu terceiro disco, Cada Dia Mais Sujo e Agressivo. A relação entra as duas bandas influencia diretamente na sonoridade do novo álbum, ainda mais metal que o antecessor. Dessa vez com uma produção melhor, temos o primeiro grande clássico da discografia do Ratos de Porão. O petardo rola solto nas doze faixas, que continuam enfatizando o protesto social de forma sarcástica e agressiva. O destaque fica para a violentíssima “Plano Furado” (crítica ao fracasso do Plano Cruzado), a anti-bélica “Pensamentos de Trincheira”, a metálica “Sentir Ódio e Nada Mais”, “Morte e Desespero” com o solo feito por Andreas Kisser (Sepultura), e a ácida “Crise Geral” e seu ótimo riff. É nesse disco que o RDP começa a aperfeiçoar a mescla entre Hardcore e Thrash Metal que seria ainda mais explorada nos próximos quatro anos. O disco também recebeu uma versão em inglês, denominada Dirty And Aggressive, a qual não conta com “Plano Furado”, e que tem como curiosidade o inglês “macarrônico” de Gordo.


Brasil [1989]

Com a boa recepção de Cada Dia Mais Sujo e Agressivo (1987) no exterior, o Ratos chama a atenção da gravadora holandesa Roadrunner que contrata a banda para gravar o próximo disco na Alemanha, o qual, de novo, ganharia uma versão extra com letras em inglês. A produção fica por conta de Harris Johns, que já havia trabalhado com Sodom e Kreator, gigantes da cena Thrash alemã. A qualidade do som é anos luz superior aos discos anteriores, e a evolução técnica do grupo é evidente. As músicas estão muito mais velozes e pesadas, e Jão começa a mostrar solos mais bem trabalhados. Brasil é a obra-prima do RDP. Aqui a banda conseguiu desenvolver perfeitamente o Crossover praticado desde Descanse Em Paz (1986), dessa vez com embasamento técnico e composições de altíssima qualidade. O álbum explora todos os temas relacionados à terra tupiniquim, desde o desmatamento (“Amazônia Nunca Mais“) e os problemas sociais (“S.O.S. País Falido“) até a violência policial (“Porcos Sanguinários”) e a apatia da população (“Lei do Silêncio“). Daqui saíram um grande número de clássicos, que se tornaram obrigatórios nos shows até hoje, como os hinos destruidores “Aids, Pop, Repressão” e “Beber Até Morrer“, a hecatombe sonora “Vida Animal” e a ácida “Terra do Carnaval“. A arte gráfica feita pelo quadrinista underground Marcatti contribui ainda mais para tornar esse disco uma verdadeira obra de arte da música extrema mundial. Brasil rendeu uma turnê europeia de divulgação que fez aumentar ainda mais a popularidade e o respeito da banda no exterior.
Turnê européia de Brasil em 1989



Anarkophobia [1991]

Depois de uma bem sucedida turnê pela Europa, o RDP entra em estúdio para o lançamento de seu segundo disco pela Roadrunner, mais uma vez produzido por Harris Johns, gravado na Alemanha e com ilustrações de Marcatti. A mesma receita de Brasil. Mas esse álbum é muito mais próximo do metal que os anteriores. As canções são bem mais longas que de costume, com média de 4 minutos cada uma, e os riffs e solos são bastante influenciados pelo Thrash Metal. É talvez o melhor trabalho em estúdio de Jão, guitarrista muito subestimado infelizmente, que sem dúvida é um dos melhores e mais criativos da música extrema de todos os  tempos. O LP abre com a maravilhosa e devastadora trinca “Contando Os Mortos” (com uma introdução de quebrar o pescoço), “Morte Ao Rei” e “Sofrer” todas presenças constantes no set list do grupo até hoje. É possível colocar Anarkophobia (que também ganhou uma versão em inglês) no mesmo nível do disco anterior, apesar de alguns o rejeitarem justamente por se aproximar bastante do metal. Para os que acham que o hardcore e a velocidade foram deixados de lado, basta ouvir “Ascenção e Queda“, ou o petardo maravilhoso de “Igreja Universal“, uma das melhores letras de João Gordo. E, para agradar os mais conservadores, ainda tem um cover de “Commando“, dos Ramones. Após o lançamento do disco, o RDP excursionaria mais uma vez pela Europa, mas dessa vez a turnê iria resultar na saída do baterista Spaghetti, que não aguentou as provocações dos companheiros de banda por ter levado sua namorada na viagem. 
Em 1991, o Ratos de Porão já era um nome de respeito na música pesada internacional (principalmente na Europa), mas havia perdido o seu baterista em plena turnê de divulgação do disco Anarkophobia. Depois de uma grande aproximação com o metal nesse LP, a banda encerraria sua fase Crossover e tentaria buscar novos elementos para sua sonoridade, e é disso que falaremos na segunda parte. 

6 comentários sobre “Discografias Comentadas: Ratos de Porão – Parte I

  1. Essa fase é com certeza a melhor do RDP, uma banda muito mais conhecida e respeitada lá fora do que no nosso "Brasil Varonil", onde muitos apenas à associam com a imagem de João Gordo, que virou "multimídia respeitado" depois de entrar para a MTV, sendo que antes era um "punk detestável e nojento" na opinião da maioria dos formadores de opinião. Mas o que importa para nós é a maravilhosa música da banda onde ele "canta" (entre aspas, pois a participação de Gordo pode ser muitas coisas, menos canto), o que a torna uma das mais importantes bandas crossover do mundo, e a principal do país!

    No aguardo da segunda parte!

  2. O Descanse em Paz, é muito bom, e também um álbum injustiçado, tanto, que nem a própria banda o considera um bom disco. A produção pode ser "tosca" e mal gravada, mas as músicas são ótimas. Olha o que um álbum ruim, como define Gordo tem: Cérebros Atômicos", "Sofrimento Real", "No Junk", "Aviso Final". Já o V.C.D.M.S.A.(o terceiro álbum), tem uma produção de primeira. O técnico de som, lá de Belo Horizonte onde o álbum foi gravado, entendiaa de som pesado, e fez a guitarra soar pesada e bem agressiva.

  3. O melhor de todos é o Anarkophobia. É o álbum mais Thrash, mais trabalhado do Ratos. Foi uma pena, que depois desse disco, a banda meio que perdeu a essência do som, lançando álbuns apenas razoáveis. Se bem que o Just Another Crime In Massacreland, com o figuraça Walter Bart, no baixo é muito bom, mas também o álbum mais desprezado pelos fãs e pela própria banda. Foi o único disco que Walter gravou, visto que esse não era tão porra louca quanto os outros integrantes, e por isso mesmo, era alvo de deboche e "Bullyng". O cara não aguentava ser zoado o tempo todo por Boca(o baterista), e Gordo. O Bart antes de se juntar ao Ratos, foi baixista da banda "Não Religião", do Tatola, que foi diretor da rádio Brasil 2000 em São Paulo,e locutor da pseudo rádio rock(que de rock não tinha nada) a 89FM. Depois do Massacreland, eles lançaram o álbum de covers Feijoada Acidente. Um só com bandas punks naconais,e outro só com bandas internacionais. Voltando ao Anarkophobia, os Ratos, sempre disseram que nesse disco, eles deram um salto maior que a perna. Completamente influenciados pelo Sepultura, os caras resolveram apostar em músicas mais trabalhadas, com várias passagens instrumentais, introduções longas. Eu acho o contrário, teria sido ótimo se tivessem continuado a lançarem álbuns assim.

  4. Ótimo post! É interessante observar que a banda tem vários discos subestimados até pela própria banda, como é o caso do Descanse Em Paz e Anarkophobia.

    Não acho que depois do Anarkophobia eles tenham lançado álbuns razoáveis, mas aí é questão de gosto. Acho que se eles tivessem continuado na linha do Cada Dia Mais Sujo e Agressivo a banda seria foda, mas atualmente eles ainda lançam coisas bem destruidoras. Veja o Carniceria Tropical, brutalíssimo, o Onisciente Coletivo que é violência pura e o Homem Inimigo do Homem, que tem umas letras fantásticas. É a melhor fase dos caras, sem drogas, concentrados apenas no trabalho.

    Vida longa ao RDP!!!

  5. “Com as letras simples e diretas, desde já tratando de problemas sociais, mas claramente escritas pelas cabeças inocentes de jovens de classe baixa, o som não traz nada de novo além do punk rock cru tocado muito rápido para a época”. Discordo completamente! O som do Ratos era o mais extremo que existia no cenário hardcore daquela época, nenhuma banda até então tinha conseguido criar um som tão brutal e extremo como no Crucificados pelo Sistema. A gravação é muito ruim, porém essas músicas ganharam vida nova no dvd de comemoração dos 30 anos desse disco, com a formação original do álbum. O som do Ratos lembrava hardcore sueco, finlandês e um pouco o americano.

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