No início da década de 70, o mundo deleitava-se com o rock progressivo. Da Patagônia à Islândia, diversos jovens passaram a tocar o estilo, influenciados por bandas como Yes, Genesis e Pink Floyd. A Argentina, roqueira por essência, também estava envolvida nessa sonoridade, e lá um jovem garoto chamado Charly Garcia (teclados, voz) começava a despontar como uma promessa na música portenha. Sua primeira participação em discos foi no ano de 1972, com apenas 21 anos, tocando teclados no raríssimo Cristo Rock, de Raúl Porchetto.
Charly também formou uma das principais bandas argentinas de todos os tempos, a Sui Generis, ao lado do também importante Nito Mestre e contando com Carlos Piegari, Beto Rodriguez, Juan Belia e Alejandro Correa. O grupo fez enorme sucesso com o seu folk rock tradicional, lançando quatro aclamados álbuns entre 1972 e 1974 (
Vida, de 1972;
Confesiones de Invierno, de 1973;
Pequenãs Anécdotas Sobre las Instituciones e
Alto en la Torre, ambos de 1974), mas devido à censura imposta pela ditadura militar e também pela diferença sonora entre Charly e Nito, acabou sucumbindo em 1975, com o lançamento do maravilhoso álbum
Adios Sui Generis, gravado ao vivo para um público de quase 30.000 pessoas.
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O grande Charly Garcia no início da década de 70 |
Nito fundou a banda de folk rock Nito Mestre y los Desconocidos de Siempre (quem puder, ouça o primeiro álbum) enquanto Charly decidiu seguir com suas loucuras sonoras, formando um novo grupo, chamado La Máquina de Hacer Pájaros, em homenagem a uma tirinha de jornal local. Nesse novo projeto Charly levaria ao extremo o seu instrumento favorito, o teclado, já que a banda inovou, contando com dois tecladistas ao mesmo tempo.
No início, o La Máquina era um trio tipo Emerson, Lake & Palmer, formado por Charly e mais dois ex-integrantes da Crucis, Oscar Moro (bateria, que também tocou no Los Gatos Selvagens) e José Luis Fernández (baixo). Em seguida entraram Gustavo Bazterrica (guitarras, ex-Reino de Munt – banda de Porchetto) e Carlos Cutaia (teclados, ex-Pescado Rabioso), formando a espinha dorsal da música complexa e densa que Charly tanto sonhava.
Temos então cinco monstros do rock argentino unidos com a única intenção de tocar um som de ótima qualidade, com muitas viagens e longos temas instrumentais. Os primeiros shows começaram a acontecer no ano de 1976, para pouco mais de trezentas pessoas, lembrando que na época o progressivo já estava perdendo espaço para o punk e a disco music. Mesmo assim Charly conseguiu um contrato com a gravadora Microfón, e, no mesmo ano, lançou La Máquina de Hacer Pájaros.
Entre arranjos com forte influência jazzística (“
Bubulina“), sequências do Sui Generis (“Como Mata El Viento Norte” e “
Por Probar El Vino y El Agua Salada“), rocks dançantes (“Boletos, Pases y Abonos”) ou que lembram Genesis (“
No Puedo Verme Más” e “Rock and Roll”), o maior destaque vai para a mini-suíte que encerra
La Máquina de Hacer Pájaros, a maravilhosa “Ah, Te Vi Entre Las Luces”.
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La Máquina de Hacer Pájaros: José Luis Fernández, Oscar Moro e Gustavo Bazterrica (acima); Charly Garcia e Carlos Cutaia (abaixo) |
Com pouco mais de 11 minutos, a canção surge com os teclados viajantes de Cutaia que trazem os vocais de Charly acompanhados pelo piano. A banda entra com uma marcação precisa, e Charly rasga sua voz, seguido por duelos de teclados e clavinete. A canção fica somente nos teclados e no piano, com os vocais sussurrados de Charly acompanhados pela guitarra utilizando o dispositivo do volume. As notas tristes de piano e do violão nos levam aos solos.
Temos assim uma longa sessão instrumental, na qual primeiro o piano sola lentamente sobre camadas de teclados e o acompanhamento da guitarra com o pedal de volume. Guitarra e clavinete fazem o tema central, entre as diversas viradas de Moro, deixando os longos acordes de sintetizador acompanharem a escala de baixo, para começar um belo jazz-fusion, com solos de clavinete, órgão e guitarra, destacando as marcações sensacionais da bateria e do baixo.
Os temas marcados entre clavinete e guitarra nos levam para uma sessão mais viajante de guitarra, pratos, baixo e teclados, a qual dá sequência à parte mais bonita da canção, com a guitarra e o clavinete agonizando em notas tristes. Dessa pequena sessão, surgem um bonito tema do piano, para vocalizações entoarem o nome da canção entre muitos teclados e intervenções do moog ao fundo, além de Moro detonando em viradas monstruosas.
O pedal de volume volta a funcionar, abrindo espaço para o belo solo repleto de melodia feito por Gustavo, o qual mostra como os argentinos tinham talento para ser uma poderosa banda no cenário mundial, e levando ao solo de piano em um dramático tango, acompanhado pela cadência da cozinha e pelas variações de volume da guitarra, encerrando essa brilhante faixa de forma emocionante, com os longos acordes do sintetizador invadindo o ambiente junto com as batidas fortes de Moro, detonando os pratos.
La Máquina de Hacer Pájaros mostra todo o refinamento e a potência do grupo, bem como a ambição de fazer algo totalmente novo dentro do cenário rock portenho. Porém, fez pouco sucesso, já que o público argentino ainda preferia ver Charly nas canções acústicas do Sui Generis, o que não impediu o trabalho da banda de ser continuado.
Outro destaque, além das canções do LP, fica para sua capa, que ficou a cargo do autor da tira de jornal, Crist. Este elaborou uma pequena história onde o protagonista, García, apresentava a banda para um amigo, definindo-a como um “pássaro progressivo”. Dentro da capa havia outra, toda preta, contando com a foto dos cinco integrantes em um colorido todo especial. Todas as músicas foram compostas por Charly, mesmo contra a vontade dele, que pretendia ser somente mais um integrante do grupo.
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O derradeiro disco dos argentinos |
No ano seguinte foi lançado Películas, um disco diferente de seu antecessor, com canções mais trabalhadas, mas próximas ao jazz fusion do que o rock progressivo, destacando as instrumentais “Obertura 777” e “En Las Calles de Costa Rica”.
Charly fundou a Banda del Amor ao lado de Lebón, mas não durou muito, vindo para o Brasil em busca de novos ares, influenciado pelo pessoal do Clube da Esquina, e criando o projeto Serú Girán, contando com a participação de Moro, e que fez muito sucesso por aqui com as canções “Seminare” e “Eiti Leda”, gravando quatro marcantes álbuns: Serú Girán (1978), La Grasa de las Capitales (1979), Bicicleta (1980) e Peperina (1981).
Cutaia formou o Ce. Ce. Cutaia, ao lado de sua esposa, Carola, com quem gravou o álbum Rota Tierra Rota em 1979. Lançou então três álbuns solo (Ciudad de Tonos Lejanos em 1983, Carlos Cutaia Orquestra em 1985 e Sensación Melancólica em 2005) e dedicou-se à produção de bandas. Em 2005 recebeu o prêmio Carlos Gardel pelo seu trabalho no álbum Para la Guerra del Tango, no qual misturou o tango com o jazz.
Gustavo intregou um quarteto ao lado de Oscar Moro, Alejandro Lerner (teclados) e Rinaldo Rafanelli (baixo), seguindo como músico na banda de Luis Alberto Spinetta. Entre 1980 e 1984 fez parte do Los Abuelos de la Nada, e paralelamente participava do grupo que acompanhava Charly. Em 1987 lançou seu único disco solo, Joven Blando, que contava com a participação de Charly e Moro.
José Luis fez pequenas participações com a banda de Charly antes de ir morar nos Estados Unidos, onde trabalhou no seu álbum solo, Mira Hacia el Futuro, lançado em 1982. Participou de vários grupos na Europa e, em 2007, lançou o disco Piedra por Cristal. Por fim, Oscar Moro fundou a banda Riff, fez parte da Serú Girán, e em 1983 formou o Moro-Satragni ao lado de Beto Satragni, vindo a falecer em 2006.
Uma maravilhosa maravilha do mundo prog! sensacional músico, disco e banda!
Abraço!!
Ronaldo