A cobra vai fumar: Harvey “The Snake” Mandel
Por Marco Gaspari
Você pode não conhecer Harvey Mandel, mas com certeza já ouviu falar de Rolling Stones, Canned Heat, John Mayall, Don “Sugarcane” Harris, Love, The Ventures… Estes são apenas alguns dos nomes que ilustram o cartão de visitas deste incrível guitarrista americano, que foi sondado até mesmo por Mick Jagger e cia. para ocupar a vaga deixada por Mick Taylor, antes de baterem o martelo para o amigo Ron Wood. E é justamente por estar sempre ocupado ajudando outros músicos a fazer discos fantásticos, que Mandel nunca teve muita visibilidade junto ao grande público. Mas não se engane: apesar dele ter uma base um tanto fraturada de fãs, de seus discos serem instrumentais, de ziguezaguear pelos caminhos do blues, do jazz e do rock, e de só ter conhecido as mordomias do estrelato quando tocava no Canned Heat, desde que abriu seu pacotinho de bolachas em 1968 Harvey “The Snake” Mandel sempre foi um queridinho dos críticos e dos fanáticos por uma guitarra bem tocada.
Mandel nasceu em Detroit, no estado de Michigan, em 11 de março de 1945, mas cresceu em um subúrbio de Chicago, Illinois. No começo dos anos 60, lá pelos seus 16 anos, já tocava os rudimentos da guitarra que aprendeu sozinho ouvindo discos de sua banda preferida, The Ventures. Como outros garotos da cidade, Mike Bloonfield e Charlie Musselwhite, por exemplo, que em breve iriam transformar o blues negro em algo palatável para a juventude branca americana, Mandel deixou de lado o bom mocismo e se aventurava direto no lado barra pesada da cidade, onde proliferavam os clubes frequentados pelos deuses do blues.
Um dia conheceu sua fada madrinha: Sammy Fender, um negrão guitarrista cuja banda acompanhava todos os cobras que iam tocar nesses clubes dos lados sul e oeste de Chicago. Fender pegou aquele garoto interessado e ensinou a ele tudo sobre o verdadeiro blues. E uma vez sob suas asas, e sentindo seu progresso, permitiu que Mandel não apenas olhasse, mas passasse a tocar com a nata do blues clássico de Chicago: Buddy Guy, Otis Rush, Howlin’ Wolf, Albert King e Muddy Waters. Com uma escola dessas, não demorou muito para que Harvey fosse solicitado como session man para os discos do organista Barry Goldberg. Ambos, aliás, fizeram parte em 1966 das gravações de um dos marcos pioneiros do blues branco de Chicago, o disco de estreia do gaitista Charlie Musselwhite, Stand Back (Here Comes Charlie Musselwhite’s Southside Blues Band). Por algum motivo, esse disco começou a fazer sucesso na bay area de São Francisco, graças ao produtor e disc jockey Abe “Voco” Kash, que o tocava direto em seus programas na rádio KSAN. Logo Charlie Musselwhite e sua Soutside Blues Band estavam tocando no Fillmore de Bill Graham, abrindo para a Electric Flag de Mike Bloomfield e o próprio Cream. Foi por essa época que Harvey recebeu de Charlie (tem quem diz que foi de Barry Goldberg) o apelido de “The Snake”, provavelmente devido à extrema destreza com que seus dedos deslizavam de forma fluída pela guitarra.
Vivendo em São Francisco e empresariado agora por Abe Kash, assina com a Philips e grava seu primeiro LP, Cristo Redentor, também produzido por Kash. Quem esperava um disco preso ao blues, se surpreendeu com a versatilidade de Mandel neste disco indescritível, uma mistura sofisticada de psicodelia, jazz, country, funk e, claro, blues. Climas etéreos se intercalam com grooves funkiados e o som passeia pelas caixas em um efeito estéreo que chega a desnortear o ouvinte. Cristo Redentor é uma gema da psicodelia americana, pouco comentado por aí, mas indispensável na discoteca de qualquer colecionador sério.
A fama de virtuoso da guitarra de Mandel só crescia, principalmente devido às suas jams no clube The Matrix, acompanhado por figuras de prestígio na cena da costa oeste como Jerry Garcia e Elvin Bishop. Graham Bond, que havia acabado com a sua Organization na Inglaterra e passou um breve período nos Estados Unidos, teve seu disco Mighty Grahame Bond (1969) produzido por Abe Kash e não titubeou quando este indicou seu protegido para ser o guitarrista. Ainda no mesmo ano, no intervalo de uma apresentação do Canned Heat no Fillmore, o guitarrista Henry Vestine teve uma desavença séria com o baixista Larry Taylor e saiu da banda. Diz a lenda que a banda procurou, num primeiro momento, o Mike Bloomfield, e este declinou do convite. Bob Hite, cantor do Canned Heat, soube então que Harvey Mandel estava na plateia e pediu para chamá-lo. Agora nas palavras de Mandel: “Eu conheci o Canned Heat na primeira vez que estive em Los Angeles e eles tocavam no Whisky a Go-Go. Haviam acabado de lançar seu disco de estreia e estavam apenas começando a ser realmente populares. Eles soavam muito bem. Passado um tempo, eu estava com amigos perambulando por aí numa noite qualquer e a gente acabou entrando no Fillmore. Eles estavam por lá e eu nem sabia disso. Foi uma coincidência. Só sei que uma garota se aproximou e disse nos meus ouvidos que o Bear (apelido do Bob Hite) queria me ver. Fui até o camarim e soube da briga entre o Taylor e o Vestine e que este havia abandonado a banda. Eles ainda tinham que voltar para o palco e eu fui convidado para segurar a onda. Eu topei e as coisas correram muito bem. Eles iriam ainda naquela noite para uma série de apresentações em Nova Iorque, das quais a segunda ou terceira iria ser em Woodstock. Eu fui com eles e pude participar da magia de Woodstock, o que foi ótimo.” Foi talvez o tempo máximo que Harvey Mandel se dedicou à uma banda específica, gravando dois álbuns: Future Blues e Canned Heat 70 Concert Live in Europe. E foram os tempos mais badalados que o guitarrista já conheceu, viajando com aquele bando de malucos de Topanga Canyon pela Europa, Austrália, Singapura e México.
Mandel também participou nessa virada dos 60 para os 70 das gravações da série de super sessions Music for Free Creek, onde músicos das mais variadas correntes se juntavam com amigos em estúdio para gravar apenas por divertimento. Jeff Beck teve sua sessão, Eric Clapton e Keith Emerson também. Na sessão de Harvey, registrada no disco duplo da série lançado em 73, ele registrou “Simpathy For The Devil”, “Earl’s Shuffle” e até a nossa “Garota de Ipanema”.
Outro que se encantou com Mandel foi John Mayall. Em 69 ele havia se mudado para os EUA e chegou a usar o Larry Taylor (o baixista do Canned Heat que brigou com o Henry Vestine) numa das faixas do seu LP Empty Room, o único disco de estúdio da sua fase Turning Point. Morando em Los Angeles e pressionado por sua gravadora a lançar um novo disco, convidou Larry Taylor e Harvey Mandel para retomar o Bluesbrakers, completado pelo violinista Don “Sugarcane” Harris. Foi o fim de Mandel no Canned Heat e o começo de uma associação com o Mayall que renderia dois discos: USA Union (1970) e o duplo Back to the Roots (1971), que ainda teria Eric Clapton e Mick Taylor dividindo as guitarras. Mas tocar com a lenda viva do blues inglês, um cara divertido e carismático, significava também certa obediência ao jeito do líder ver as coisas. Não demorou muito e Mandel saiu, levando Sugarcane com ele.
Vamos fazer um intervalo por aqui para atualizar a discografia solo de Harvey Mandel até este momento, pois ele sempre foi um artista muito produtivo, principalmente nesta época, para muitos o auge de sua produtividade e criatividade. Depois de lançar o genial Cristo Redentor em 68, Mandel deu continuidade às suas viagens psicodélicas no disco Righteous, de 69. Como guitarrista ele era tão poderoso quanto Jeff Beck, Santana ou Bloomfield e, como eles, também não tinha voz suficiente para se aventurar a cantar, por isso seus discos seguiam na linha instrumental. Em 1970, rendeu-se à voz do multi-instrumentista Russell Dashiel e o usou para lançar Games Guitars Play, um álbum que caminhava com desenvoltura pelas trilhas do blues e do soul, mas com uma preocupação mais comercial, o que baixou um pouco o nível se comparado aos seus dois lançamentos anteriores.
Para compensar, o álbum Baby Batter, lançado em 1971, é uma apaixonante e pirotécnica viagem instrumental pelo blues-rock, mas com paradas obrigatórias para apreciar as mais belas paisagens jazzistas. Seu próximo disco, Get Off in Chicago, é uma espécie de dedicatória de amor à cidade que ele sentia ser seu lar. Considerado um Supper-Session (aquele projeto do Bloomfield com o Al Kooper) mais underground, Harvey reuniu aqui 16 músicos de jazz, rock e blues da cidade, todos no intervalo de suas sessões ou turnês e, em apenas três dias, fez uma jam fenomenal que resultou em nove músicas de tirarem o fôlego.
Em 1972, Mandel e Don “Sugarcane” Harris começam uma parceria que gerou cinco discos muito interessantes. Como banda eles formam o Pure Food & Drug Act e lançam um único álbum nesse mesmo ano, o Choice Cuts. Podemos dizer que o Sugarcane, famoso malucão, era responsável pelo Drug Act do nome da banda. Já Mandel, injustamente famoso nesse quesito (talvez mais por andar com Don Harris), pois gostava mesmo é de um matinho do bom, era o lado Pure Food. Mas bastou juntar os dois para que todos alucinassem num álbum repleto de fusion e com pitadas de blues e funk. Outros dois discos da parceria, Fidler on the Rock e Cup Full of Dreams são encarados mais como trabalhos solo de Sugarcane. Para completar e devolver o favor, Don Harris colaborou em dois ótimos álbuns solo de Harvey. O primeiro deles, The Snake, foi lançado também em 72 e traz uma novidade: a voz do guitarrista na faixa “Uno Ino”. Como em todos os seus discos, é impossível deixar de constatar o quanto ele estava à frente do seu tempo e como sua técnica era surpreendente. Neste álbum, Mandel presta uma emocionante homenagem a Alan “Blind Owl” Wilson, um dos fundadores do Canned Heat e que havia morrido recentemente, na faixa “Ode to the Owl”.
Em 1973, para coroar a colaboração do Sugarcane, Harvey lança o álbum Shangrenade. E que álbum! Em 85% dele, usou e abusou do 2-handed finger tapping, sendo um dos primeiros guitarristas do rock a usar essa técnica (Steve Hackett, por exemplo, já havia utilizado no Genesis), anos antes dela ser popularizada por Eddie Van Halen e Stanley Jordan. Ritchie Blackmore já afirmou em entrevistas que Harvey foi o primeiro guitarrista a utilizar o tapping que ele viu em ação, isso lá por 1968 no Whisky A Go-Go. Disse que os guitarristas ficavam por lá curtindo e batendo papo, mas que quando Harvey começava a tocar, todos se calavam e no máximo diziam: “Pô, como é que ele faz isso”. George Lynch, guitarrista do Dokken, também disse em entrevista que ele e Eddie Van Halen viram o tapping de Mandel no Starwood Club, em 1970.
Em 74, Harvey participou, como músico de estúdio, do último álbum oficial da banda Love, Reel to Reel, tocando na faixa “Which Witch is Which?”. Lançou duas coletâneas por essa época e fez algumas turnês. Em 1975, recebeu uma ligação de Mick Jagger no meio da noite, pedindo para ele comprar uma passagem e ir encontrar a banda em um estúdio em Munique, na Alemanha. Os Stones estavam às voltas com a gravação de seu novo LP, depois chamado de Black and Blue e lançado em 1976, e ao mesmo tempo testavam novos guitarristas para substituir Mick Taylor. Jagger conhecia Mandel de seus trabalhos com John Mayall e Canned Heat e gostava de pensar nele como um guitarrista com o temperamento de Mick Taylor, quietão e técnico lá no fundo do palco enquanto Jagger e Richards brilhavam nos holofotes. Mandel tocou em “Hot Stuff” e “Memory Motel” e nada leva a crer que ele não estaria na banda não fosse a amizade de Richards por Ron Wood. Olhando para trás, hoje ninguém ousaria dizer que não foi uma boa escolha. Em 1977, Mandel prestou tributo aos seus ídolos da adolescência, The Ventures, gravando para a banda em dois discos, Rock’n’Roll Forever e Live in Japan 77, tocando tanto a guitarra base quanto a solo.
Harvey Mandel está vivo e produtivo até hoje, mas vou parando este texto por aqui para não ser repetitivo na babação de ovo a este que pode ser considerado um dos maiores guitarristas já surgidos no rock. E se até aqui você não se sentiu motivado a conhecer sua obra, mesmo uma coisinha ou outra, só me resta encerrar esta matéria repetindo o jargão de outra lenda, mas esta do noticiário tupiniquim: “Desculpe a nossa falha”.
Algumas músicas:
Wade in Water (Cristo Redentor – 68)
Just a Hair More (Righteous – 69)
I’m her Man (Canned Heat live at Woodstock – 69)
Sugar Bee (Canned Heat’s Future Blues – 70)
El Stinger (Baby Batter – 70)
Nature’s Desappearing (John Mayall’s USA Union – 70)
I’m a Lonely Man (Get Off Chicago -71)
My Soul’s on Fire (Pure Food and Drug Act – 72)
Peruvian Flake (The Snake – 72)
Fish Walk (Shangrenade – 73)
Which Witch is Which (Love’s Reel to Reel – 74)
Hot Stuff (Rolling Stones’ Black and Blue – 76)
Agora você matou a paulada…
isso sim é raridade, nunca li uma matéria com essa riqueza de informações à respeito de Harvey “The Snake” Mandel…
muito talento e quase nenhum reconhecimento, como bem citado no texto, só teve alguma glória no Canned Heat, que cá entre nós, The Snake era bom demais pra essa banda rsrs
o Shangrenade é uma aula de como se tocar guitarra, uma mistureba maravilhosa, música instrumental de alto nível!!!
quem curte esse tipo de música não tem como não gostar!!!
sem sombra de dúvida, The Snake figura entre os maiores guitarristas desconhecidos da história!!!
parabéns pelo ótimo texto!!!
Obrigado, Carlos.
E acredite: saber que temos ouvidos irmãos para esse maravilhoso guitarrista já compensou toda a trabalheira que deu cavocar as informações e escrever esse texto.
Um abraço.
Que texto maravilhoso Marco, parabéns, Harvey Mandel é um dos grandes injustiçados da música. O fato da criação do tappig (ou de ter sido um dos primeiros) precisa ser destacado principalemnte para os que acham que depois de Eddie Van Halen é que o virtuosismo veio ao mundo. Na verdade Eddie Van Halen desenvolveu PERFORMANCE NO PALCO, e não as técnicas (um exagero da minha parte, admito, pois Eddie Van Halen toca muito e foi muito importante para o que veio posteriori, mas que as técnicas já existiam, já existiam). Musicalmente, da carreira solo conheço só Christo Redentor, um discaço com das músicas sensacionais e arrepiantes, "Wade in Water", com aquela estranha distorção, junto daquele maravilhoso solo de blues em um ritmo swingado, com as cordas fazendo intervenções, e as arrepiantes vocalizações da faixa titulo, junto daquelas cordas fantasmagóricas, que assustam na sombriedade da mesma. Aliás, são as cordas, misturadas com a guitarra, que dão o tempero principal para o disco.
E o fato de Mandel ter vindo de uma fonte blueseira reforça minha tese que não foi necessaria a invasão britânica para que bons músicos, boas bandas e pessoas influentes surgissem nos Estados Unidos. A costa oeste (assim como a costa nordeste) americana gerou bandas, pessoas e músicos tão superiores que Stones, Beatles e Claptons da vida, só que de maneira triste, na minha visão, ficaram marcados pela geração hippie, e hoje são tratados com desdém do Paz e Amor.
Enfim, esse já é um papo de bar.
Future Blues é um clássico, simples assim
Pô, nem sei por onde começar. De tudo o que foi comentado aqui eu só conheço o Black and Blue, o Steve Hackett e o Van Halen! RÇRÇRÇ
Então.. Acho que devo começar pelo Canned Heat, de quem conheço apenas uma música.
Agora, me tira uma dúvida: tem como conseguir essa super session de brincadeira do Mandel? Sou "colecionador" de covers dos Stones e fiquei babando por essa "Sympathy for the Devil".
Parabéns por mais um texto decentíssimo, pra dizer o mínimo!
Vlw, Gaspa, salvaguarda da cultura musical pop brasileira.