Por Micael Machado
Houve um tempo em que um dólar valia um real. Em que a inflação era realmente mínima mês após mês, e não “anunciada” como mínima pelo governo, enquanto os preços sobem. Onde saía mais barato comprar um CD importado do que um nacional, mesmo pagando frete, impostos e taxa de lucro do lojista. Nessa longínqua era pré-internet, a principal fonte de informações sobre música eram as revistas mensais, no meu caso, a Rock Brigade e a Bizz (depois Showbizz). Foi nas páginas desta última que li uma resenha sobre um box set contendo todos os discos de uma banda chamada Velvet Underground, mais uma pilha de gravações até então inéditas espalhadas ao longo de cinco CDs. Após exaltar as maravilhosas qualidades do lançamento, o autor da resenha terminava o texto com uma frase mais ou menos assim: “ouvir as gravações do Velvet reunidas em um só box é como seu time ganhar o campeonato com um gol no último minuto”.
Eu já tinha o primeiro álbum (o “disco da banana”), e era grande fã daquele som esquisito e diferente, mas não conhecia muito mais do grupo além disso. Mesmo assim, empolgado com a resenha, fui em uma loja de confiança e pedi para importar a caixa, pagando uma pequena fortuna para a época (e um dos preços mais caros que já paguei por discos), coisa da qual nunca me arrependi!
A história do Velvet Underground é bem conhecida (desculpe, se você não sabe nada sobre isso, não é aqui que vou explicar em detalhes…), por isso, vamos aos cinco discos que compõem esta coleção:
|
Visão dos CDs presentes no box set e suas capas |
O primeiro CD traz Lou Reed (vocais, guitarra), Sterling Morrison (guitarra, baixo) e John Cale (viola, baixo, vocais) gravando uma sessão de ensaios em 1965. Durante quase 80 minutos, os três interpretam “Venus In Furs”, “Heroin”, “I´m Waiting For The Man” e “All Tomorrow’s Parties”, além das nunca gravadas oficialmente “Prominent Men” e “Wrap Your Troubles In Dreams”. Todas são tocadas diversas vezes, naquele esquema “começa-erra-para-começa de novo” que todos aqueles que já tiveram uma banda sabem como acontece em um ensaio. Para os não iniciados, ouvir a mesma música vinte vezes em sequência, com alguns takes durando apenas segundos, é uma longa sessão de tortura. Para os convertidos, a chance de descobrir as origens de alguns clássicos, muitos em versões bem diferentes daquelas que seriam reveladas ao mundo. Se você não conhece a banda, não comece por este CD, mas não deixe de escutá-lo algum dia…
O segundo disco já apresenta a banda completa, com a adição da baterista Maureen “Mo” Tucker e da cantora e “performer” Nico. Apadrinhados pelo artista plástico Andy Warhol, os Velvets haviam excursionado muito como parte do espetáculo “Exploding Plastic Inevitable”, promovido por seu padrinho, e foram forçados a aceitar Nico entre eles, uma das “protegidas” de Warhol. O CD abre com a versão single de “All Tomorrow’s Parties”, o primeiro lançamento oficial da banda, datado de julho de 1966.
|
O primeiro disco do Velvet, único a contar com a cantora Nico |
Foi neste ano que o grupo gravou seu primeiro álbum, The Velvet Undeground And Nico Produced By Andy Warhol, cujas 11 músicas estão listadas nas faixas 2 a 12 da segunda bolachinha deste box. Tivesse este disco sido lançado quando gravado, e o mundo do rock poderia ter sido diferente, visto que nada registrado anteriormente se parece com ele. Mas, devido a diversos problemas (com a gravadora, a confecção da capa, os direitos da foto da contracapa, entre outros), o álbum seria lançado apenas em 1967, quando o mundo já era outro… Assim, a estreia do Velvet vendeu pouquíssimo, mas, diz a lenda, cada pessoa que a ouviu montou uma banda logo depois.
O “disco da banana” é daqueles essenciais em qualquer coleção, um dos mais influentes da história e que parecia estar à frente do seu tempo. Se as quatro faixas cantadas por Nico (“
Sunday Morning”, “Femme Fatale”, “I’ll Be Your Mirror” e “
All Tomorrow’s Parties”) poderiam passar por baladinhas inofensivas – caso as letras assim o permitissem – “
I’m Waiting For The Man”, “Run Run Run” e “There She Goes Again” são punks antes dos Pistols, dos Ramones, dos Stooges e do MC5. “The Black Angel’s Death Song” e “European Son” são crias da mente doentia de Reed, mas é em “
Venus In Furs” e “
Heroin” que a banda mostra a que veio. São duas músicas em que a viola de Cale se destaca, na primeira, narrando os “prazeres” do sadomasoquismo, e na segunda uma descida ao fundo do poço das drogas. São pouco mais de 7 minutos onde, com dois acordes, mudanças de ritmo e uma letra enaltecendo o vício em heroína (
“é minha esposa, é minha vida”, canta Lou em certo ponto), os Velvets mostram uma nova forma de fazer música, que iria mudar a forma de pensar de muita gente que, anos depois, seria importante no mundo do rock.
O CD do box ainda traz uma versão ao vivo da inédita “Melody Laughter”, e duas faixas do álbum de estreia da carreira solo de Nico, “Chelsea Girls” e “It Was A Pleasure Then”, ambas com participação de Reed e Cale.
Quase ninguém entendeu toda aquela esquisitice na época e, como disse, o álbum não vendeu quase nada quando lançado. Sentindo-se “escanteada” pelos outros, Nico deixou a banda para seguir carreira solo. Com sua partida, Warhol também perdeu o interesse, e foi cada vez mais se afastando dos seus “protegidos”. Livres das influências externas, os quatro Velvets se trancaram no estúdio para gravar aquilo que realmente queriam: rock and roll alto, pesado e visceral. Daí nasceria o segundo álbum do grupo, White Light/White Heat, que compõe o terceiro CD da caixa…
|
Segundo lançamento do grupo |
Antes de chegarmos à luz e ao calor branco, o CD nos mostra algumas demos feitas ainda em 1967, e versões ao vivo de “Guess I’m Falling In Love” e da instrumental “Booker T.”. A partir da faixa 8, ouvimos o segundo disco da banda, lançado em 1968, e que já inicia com a clássica faixa título, anos depois coverizada com maestria por David Bowie. “The Gift” tem uma proposta inusitada até mesmo para a época: enquanto o grupo executa “Booket T” em um dos canais, Cale lê um poema no outro, dando ao ouvinte a opção de ouvir cada faixa separadamente (ao alternar os canais) ou à junção das duas. Nas demais faixas, o que se ouve é um Velvet muito mais barulhento do que aquele de um ano antes, chegando ao seu ápice na faixa de encerramento, “Sister Ray”. Novamente segundo a lenda, o engenheiro de som abandonou o estúdio no meio da performance (ao vivo) da banda, gritando “me avisem quando esta loucura acabar que eu venho desligar os botões”. Criada a partir de um improviso ainda na época do E.P.I., a música foi gravada em um único take, e a intenção era que cada um dos instrumentos (duas guitarras, órgão e bateria) soasse mais alto que os outros. Passar incólume por sua audição é assinar atestado de “falta de emocionalidade”, e se você não sentir ao menos raiva durante os 17 minutos e meio de “loucura organizada” promovida pelo grupo, pode largar o rock and roll e ir ouvir pagode…
O CD termina com três faixas gravadas em 1968, lançadas nas compilações
VU (1985) e
Another View (1986), das quais se destaca aquela que talvez seja a primeira das músicas da série “Says’ de Reed: “
Stephanie Says”. Faz falta “Sweet Sister Ray”, espécie de “intro” para “Sister Ray” quando esta era executada ao vivo e que, sozinha, podia chegar a 40 minutos(!).
Após o lançamento de White Light/White Heat (que também não teve sucesso nas vendas), John Cale, desiludido com a partida de sua amada Nico e com o crescente domínio exercido por Reed, pediu as contas e também saiu em carreira solo. A banda, abalada, chamou Doug Yule e seguiu em frente para gravar seu terceiro LP, intitulado apenas The Velvet Underground.
|
A estreia de Doug Yule |
O quarto disco desta caixa abre com uma versão ao vivo de “What Goes On”, para logo em seguida mergulhar no terceiro e mais intimista álbum da banda. Se White Light era o ápice do volume e da distorção, The Velvet Underground seguia o caminho contrário, com músicas calmas e “limpas”. “Candy Says”, “Pale Blue Eyes”, “Jesus”, “I’m Set Free” e “After Hours” (cantada por Mo) mostram um lado do Velvet até então desconhecido: calmo, leve, e muito belo. Traços do que a banda havia sido aparecem aqui e ali em “What Goes On”, “Some Kinda Love” e “Beginning To See The Light”, mas, no geral, este é um disco contido. Uma banda mais calma e sóbria que a anterior, mas nem por isso menos qualificada.
O CD termina com cinco músicas tiradas da coletânea VU e mais duas inéditas, as interessantes “It´s Just Too Much” (ao vivo) e “Countess From Hong Kong”, esta em versão demo.
The Velvet Underground, o disco, mais uma vez não vendeu quase nada, e a banda foi dispensada da gravadora MGM, indo parar na Cotillion, uma subsidiária da poderosa Atlantic. Maureen, grávida de seu primeiro filho, não pode participar das sessões de gravação do quarto álbum, sendo substituída temporariamente pelo baterista Billy Yule, irmão do baixista Doug.
|
O último disco com Lou Reed |
Seja pela presença de Billy (um baterista muito mais “convencional” em relação ao estilo totalmente pessoal adotado por Mo), seja por influência da gravadora, o certo é que Loaded é um álbum muito diferente dos anteriores. Lou afirma que “apesar de ter o nome da banda nele, Loaded não é um disco do Velvet Underground” e Maureen diz que “só tem dois Velvets ali – Lou e Sterling -, então não é um disco do Velvet”. O disco é imperdível, no mesmo nível do primeiro, apesar de soar totalmente diferente.
Se “
Who Loves The Sun” é a melhor música que Lennon e McCartney se esqueceram de compor, “
Sweet Jane” e “
Rock And Roll” são clássicos do rock do mesmo nível de “Starway To Heaven” e “Smoke On The Water” (ou deveriam ser). Se “
New Age”, “I Found A Reason” e (principalmente) “
Oh! Sweet Nuthin’” são tristes baladas, “Cool It Down”, “Head Held High”, “Train Round The Bend” e “Lonesome Cowboy Bill” são rocks da melhor estirpe, compondo um dos melhores discos já lançados no mundo do rock.
Lou Reed abandonaria a banda ainda antes do lançamento, e o quinto CD do box é completado com músicas que depois apareceriam na carreira solo do vocalista, como “Satellite Of Love”, “Sad Song”, “Ocean” (com a participação de John Cale na viola e órgão, em sua única gravação com a banda após sair dela) e “Oh Gin”. Com o background dos Velvets, estas versões iniciais soam mais “cruas” e “viscerais” do que as bem acabadas e bem arranjadas versões lançadas por Reed anos depois, tendo as letras modificadas e os arranjos ainda em fase de experimentação.
Ainda temos “Some Kinda Love” e “I’ll Be Your Mirror” gravadas ao vivo no Max’s Kansas City, sendo que a segunda faz parte do “bootleg oficial” Live At Max’s Kansas City, lançado em 1972, quando a banda já não mais existia!
|
O ao vivo Live At Max’s Kansas City |
Com a saída de Reed, Yule decidiu seguir com a banda, tendo a participação dos músicos Walter Powers no baixo e Willie Alexander nas guitarras e vocais. Mas, com as partidas de Sterling Morrison e Maureen Tucker, acabou ficando sozinho para gravar o derradeiro Squeeze (1973) (com participação de Ian Paice, do Deep Purple, na bateria), o qual não faz parte deste box set.
|
O famigerado e esquecido Squeeze |
Peel Slowly And See ainda tem um belo livreto com a história da banda e muitas fotos, diversas delas inéditas até então.
|
Box, livreto e CDs |
O Velvet Underground original se reuniria em 1993 para uma única excursão, da qual sairia o ao vivo Live MCMXCIII e o vídeo Velvet Redux: Live MCMXCIII. Mas, novamente, o choque entre os egos de Reed e Cale impediu o prosseguimento das atividades do grupo, algo que, com a morte de Sterling em 1995, se tornou definitivamente inviável.
|
As duas versões de Live MCMXCIII |
Também não estão na caixa várias faixas e takes que depois apareceriam em Fully Loaded Edition (1997), edição dupla com o quarto álbum mais diversos outtakes, bem como as faixas ao vivo de Live 1969 (1974) e do citado Live At Max’s Kansas City. Algumas faixas das coletâneas VU e Another View, compostas de sobras de estúdio e versões demo, também não estão presentes, acabando um pouco com aquela versão de “tudo já lançado” da resenha da Bizz. Mas isso não importa muito, afinal, ouvir esta caixa não é como “seu time ganhar o campeonato com um gol no último minuto”. É como “seu time ganhar o campeonato com um gol no último minuto da prorrogação, de mão e em impedimento”. Insuperável!
|
As coletâneas VU e Another View e o segundo volume do ao vivo Live 1969 |
Para terminar, “descasque lentamente e veja” a banana da capa. Surgirá uma banana rosa por trás, parecida com aquela revelada ao descascarmos a capa do primeiro disco da banda, conforme a concepção original de Andy Warhol.
|
O que há sob a banana? |
Track List:
Disco Um
1. “Venus in Furs” (demo)
2. “Prominent Men” (demo)
3. “Heroin” (demo)
4. “I’m Waiting for the Man” (demo)
5. “Wrap Your Troubles in Dreams” (demo)
6. “All Tomorrow’s Parties” (demo)
Disco Dois
1. “All Tomorrow’s Parties” (single version)
2. “Sunday Morning”
3. “I’m Waiting for the Man”
4. “Femme Fatale”
5. “Venus in Furs”
6. “Run Run Run”
7. “All Tomorrow’s Parties”
8. “Heroin”
9. “There She Goes Again”
10. “I’ll Be Your Mirror”
11. “The Black Angel’s Death Song”
12. “European Son”
13. “Melody Laughter” (live edit)
14. “It Was a Pleasure Then”
15. “Chelsea Girls”
Disco Três
1. “There Is No Reason” (demo)
2. “Sheltered Life” (demo)
3. “It’s All Right (the Way That You Live)” (demo)
4. “I’m Not Too Sorry (Now That You’re Gone)” (demo)
5. “Here She Comes Now” (demo)
6. “Guess I’m Falling in Love” (live)
7. “Booker T.” (live)
8. “White Light/White Heat”
9. “The Gift”
10. “Lady Godiva’s Operation”
11. “Here She Comes Now”
12. “I Heard Her Call My Name”
13. “Sister Ray”
14. “Stephanie Says”
15. “Temptation Inside Your Heart”
16. “Hey Mr. Rain” (version one)
Disco Quatro
1. “What Goes On” (live)
2. “Candy Says” (closet mix)
3. “What Goes On” (closet mix)
4. “Some Kinda Love” (closet mix)
5. “Pale Blue Eyes” (closet mix)
6. “Jesus” (closet mix)
7. “Beginning to See the Light” (closet mix)
8. “I’m Set Free” (closet mix)
9. “That’s the Story of My Life” (closet mix)
10. “The Murder Mystery” (closet mix)
11. “After Hours” (closet mix)
12. “Foggy Notion”
13. “I Can’t Stand It”
14. “I’m Sticking with You”
15. “One of These Days”
16. “Lisa Says”
17. “It’s Just Too Much” (live)
18. “Countess from Hong Kong” (demo)
Disco Cinco
1. “Who Loves the Sun”
2. “Sweet Jane” (full-length version)
3. “Rock & Roll”
4. “Cool It Down”
5. “New Age” (long version)
6. “Head Held High”
7. “Lonesome Cowboy Bill”
8. “I Found a Reason”
9. “Train Round the Bend”
10. “Oh! Sweet Nuthin'”
11. “Satellite of Love”
12. “Walk and Talk”
13. “Oh Gin”
14. “Sad Song”
15. “Ocean”
16. “Ride into the Sun”
17. “Some Kinda Love” (live)
18. “I’ll Be Your Mirror” (live)
19. “I Love You”
Ouvi muito o "disco da banana" na época em que eu tava conhecendo Lou Reed, Iggy Pop e coisas parecidas. Hoje não tenho muita vontade de retomar essa fase…rs Sei lá…perdi um pouco o interesse. É um tipo de som que vc tem que estar meio calejado para apreciar….
Excelente texto! Tenho essa caixa e é realmente muito boa!