A Little Respect: Michel Petrucciani – The Power of Three [1986]
Por Mairon Machado
A década de 80 foi o início da decadência musical que assombrou o mundo durante a década de 90. Pouco ou quase nada surgiu de novo, com raríssimas exceções como a linha “metálica”, com bandas como Iron Maiden, Metallica, Slayer, Venom, … Porém, dinossauros como Yes, Jethro Tull, Stones, Black Sabbath, Deep Purple, Rush, entre outros, renderam-se em busca de uma sonoridade mais comercial, visando lucros ao invés de fãs, enquanto que outros gigantes como Led Zeppelin, Cream, The Who e Beatles já haviam acabado, sendo que os integrantes ou morreram ou partiram para uma carreira solo cheia de altos e baixos, como o Clapton.
No Jazz a coisa não foi muito diferente. Herbie Hancock, Chick Corea, John McLaughlin e até Buddy Rich acabaram participando de discos no mínimo “confusos” perto da grande obra que haviam construído no início de suas carreiras. Desta forma, é raro listar discos oitentistas entre os álbuns essenciais nas prateleiras e armários de um colecionador de música em geral.
Porém, Michel Petrucciani lançou, em 1986, aquela que é sua obra-prima. Ao lado do saxofonista Wayne Shorter e do guitarrista Jim Hall, Michel participou do famoso festival de Montreux, e o registro desse encontro está em The Power Of Three.
Nascido em 28 de dezembro de 1962, na cidade de Orange (França), era filho de Tony Petrucciani, um famoso guitarrista de jazz, e irmão de Louis Petrucciani, que também era um reconhecido baixista. Porém, Michel nasceu com uma grave doença genética, conhecida como osteogénese imperfeita, onde o paciente nasce sem a proteína responsável pela produção do colágeno, uma importante componente das estruturas ósseas. Desta forma, os ossos tornam-se quebradiços e sem conseguir evoluir.
Michel e sua esposa, Gilda Butta |
Michel teve uma infância muito complicada, com várias lesões que acarretaram com a má-formação de diversas partes de seu corpo. Pernas e braços contraíram-se, e era impossível para Michel caminhar, tendo que ser carregado para cima e para baixo por seu pai e seu irmão, tornando-o uma criança muito solitária, sem amigos e sem muito com que se divertir. Além disso, sofria com diversos problemas pulmonares.
Mas, se Deus existe, ele deu um dom a Michel, que foi a arte de tocar piano. A paixão de Michel pelo instrumento começou justamente quando estava na sua casa, ainda criança, e ouvia os discos de Duke Ellington que seu pai comprava. O sonho de poder tocar piano era algo constante na vida de Michel, então, o pai Tony, através de ajuda de médicos, começou a desenvolver as mãos e braços de Michel para permitir que o mesmo pudesse tocar o instrumento, ao mesmo tempo que prestava lições para o filho de partituras e composição.
Graças a uma medicina avançada, Michel aprendeu rapidamente a tocar piano, e logo, já estava compondo e aprendendo peças complicadas de Beethoven e Mozart. O primeiro concerto como profissional foi dado aos 13 anos, e, apesar da figura totalmente monstruosa do anão Michel, sua destreza e sentimento nas notas cauzaram aos que presenciaram o concerto uma impressão de que um anjo estava ao lado daquele pequeno e torto menino, que tocava os pedais do piano com ajuda de um dispositivo elétrico.
Com dezoito anos, Michel lançou seu primeiro álbum, Flash (1980), e participou de um álbum ao lado de Di Castri (baixo) e Romano (bateria), intitulado Michel Petrucciani Trio (1981). Lança ainda Date With Time (1981) e Michel Petrucciani (1981), demonstrando sempre uma incrível técnica e também sentimento. Porém, seus discos não eram muito divulgados, e , quando em turnê, em alguns hotéis Michel era escondido dentro de uma das malas dos músicos para poder economizar o dinheiro como qual pagava seu tratamento contra a doença!
Em 1982, mudou-se para os Estados Unidos, com a intenção de realizar uma operação para melhorar sua saúde. Porém, o nome de Michel já havia chegado na América, onde foi encorajado nada mais nada menos pelo saxofonista Charles Lloyd para continuar com sua carreira. Surge então uma grande amizade entre os dois, a qual pode ser conferida no emocionante filme One Night with Blue Note, onde Lloyd surge no palco carregando Petrucciani no colo, partindo para uma divina execução de “Tone Poem”, ao lado ainda de Cecil McBee (baixo) e Jack DeJohnette (bateria). Esse filme é essencial por natureza.
Petrucciani desenvolveu sua carreira, e foi convidado como um dos homens para abrir o dia 14 de julho do vigésimo Montreux Jazz Festival, em 1986. Naquela noite, nomes como o trio Freddie Hubbard, Joe Henderson e John Scotfield, mais Al di Meola e o quarteto de Wayne Shorter eram as atrações principais, porém, o público saiu do famoso cassino de Montreux com a visão de um dos mais aplaudidos shows de todos os eventos realizados naquele lugar.
Michel Petrucciani |
E esse show ficou registrado no álbum The Power Of Three. Escolhidos a dedo por Michel, Jim e Wayne comportaram-se como verdadeiros profissionais, cada um escolhendo um determinado tema e dividindo igualmente os espaços para solos. O disco abre com Wayne e Jim executando o tema principal de “Limbo”, de Wayne Shorter, acompanhados pelo piano de Michel, dando sequência para o solo inicial de Shorter, mandando ver em notas rápidas e também em outras mais curtas e inspiradíssimas. A seguir é a vez de Jim mostrar suas inspirações em Wes Montgomery, acompanhado somente pela levada de Michel. O som limpo da guitarra de Jim é simplesmente de chorar.
Finalmente, Michel começa seu solo, acompanhado por intervenções de Jim (no canal esquerdo) e Wayne (no canal direito). É impossível não visualizar o pequeno Michel mordendo o lábio, ou colocando a língua bem próximo ao nariz, enquanto faz caretas engraçadíssimas para um Jim Hall com as costas arqueadas e um Wayne Shorter com seu tradicional sorriso tímido na face. O solo é simples, sem muita virtuose, levando ao tema principal e ao encerramento dos oito minutos mais rápidos que você já ouviu em sua vida.
Wayne Shorter |
A seguir, temos a esplêndida “Careful”, de Jim Hall e somente com ele e Michel. O começo é somente com o guitarrista fazendo os acordes da canção. Michel entra acompanhando o embalo de Jim, que começa o seu solo com variações em cima da mesma escala, com um crescendo espetacular. A seguir é a vez de Michel destruir o piano com notas variando entre graves e agudos, com uma agilidade fora do normal. As rápidas viradas de escala no piano são impressionantes, mostrando que mesmo com a sua deficiência, era possível ser um mestre na arte de tocar o instrumento, terminando novamente com o tema inicial.
O lado A encerra com a linda “Morning Blues”, do próprio Michel, e com o mesmo sozinho na introdução, trazendo Shorter acompanhando as notas do tema principal e finalmente Jim, com as mesmas notas. Apague as velas, acenda um charuto e beba um copo de uísque, pois o clima dessa canção é simplesmente fora do comum. Shorter começa seu solo regado de sentimento, com o acompanhamento igualmente emotivo de Michel. Segue então o solo de Jim, também com muito sentimento e investindo em poucas notas, apenas deixando seus dedos deslizar pela guitarra enquanto Michel executa seus acordes que lhe deram a inevitável comparação à Bill Evans, apesar de eu particularmente achar ele uma mescla de Keith Jarret e Bill Evans, principalmente pela facilidade em improvisar.
O solo de Michel mostra essa capacidade de improviso, tocando notas rápidas e viajantes, as quais chegam a ser repetidas em diversas vezes, com seu braço direito, enquanto o braço esquerdo mantém os acordes precisos e lentos da canção. A canção encerra-se com o tema principal, e novamente você olha no relógio e não acredita que já se passaram 9 minutos. Simplesmente o lado A já vale a grana investida, mas ainda tem mais.
Jim Hall |
A re-criação de “In A Sentimental Mood”, do mestre Duke Ellington, abre o lado B com Michel ao piano. Para quem conhece a versão por exemplo com Coltrane e Ellington, não existe praticamente nenhuma semelhança. Jim entra com o tema principal quase que despercebido pela esplêndida construção criada por Michel, fazendo também um fantástico solo. Michel entra no seu solo, mostrando todas as características citadas anteriormente. Apenas ouça e deixe a emoção correr por suas veias. O público do Cassino não aguenta e aplaude fervorosamente a sequência onde Jim e Michel duelam, não querendo sobressair um sobre o outro, e sim encaixando notas sobre notas de uma forma impecável. Jim retoma o tema principal, encerrando com uma linda peça sozinho à guitarra e o público ovacionando a dupla em pé (no DVD que registra este show, isso é realmente emocionante). Olhe para o relógio e surpreenda-se mais uma vez, já que doze minutos foram investidos como se fossem apenas um.
O disco encerra com a mágica “Bimini”, de Jim Hall e com o mesmo executando os estranhos acordes iniciais, seguido por intervenções de Shorter que abrem espaço para Michel executar o tema principal. A seguir, é a vez de Michel marcar o tempo, para Jim e Shorter executarem o tema principal. A levada quase caribenha de Jim e Michel acompanham o solo de Shorter, onde ele exorciza o seu passado no Weather Report, tocando de uma forma moderna e diferente do habitual, grifando notas e principalmente, se contagiando pela atmosfera em que está envolvido.
Michel começa a solar em uma pequena brecha de Shorter, com uma habilidade incrível na variação dos acordes. As intervenções de Shorter, solando ao fundo em um volume bem mais baixo que Michel, mostra o respeito entre o trio. Jim sola sozinho, apenas fazendo variações de acordes sobre o embalo criado por ele mesmo, na melhor linha Montgomery. Shorter retorna, trazendo Michel e o tema principal, para um encerramento espetacular, com novamente o público aplaudindo o trio em pé.
Túmulo de Petrucciani |
A versão em CD saiu com o show completo, que conta ainda com “Waltz New” e “Beautiful Love”, ambas somente com Jim e Michel, bem como o lançamento obrigatório do VHS (depois DVD) em 1990 e que vale a pena ser investido.
A carreira de Petrucciani encerrou-se em 6 de janeiro de 1999, dias após comemorar seu trigésimo sexto aniversário, falecendo devido a uma infecção pulmonar. O corpo de Michel foi enterrado no cemitério Le Père Lachaise, de Paris, mas sua obra está à solta pelos mais diversificados sebos do mundo, pronta para ser descoberta, e tendo The Power Of Three como um dos alicerces principais desse fantástico e (com o perdão do trocadilho) monstruoso pianista.
Track list
1. Limbo
2. Careful
3. Morning Blues
4. Waltz New *
5. Beautiful Love *
6. In a Sentimental Mood
7. Bimini
* Só em CD