Discografias Comentadas: Jimi Hendrix
Por Ronaldo Rodrigues
Escrever sobre Jimi Hendrix não é fácil, pois ao longo de décadas uma tempestade de adjetivos já foi usada para descrever sua música, sua importância e seu legado para o rock de uma forma geral. Também não é fácil falar sobre “discografia” no caso dele, por conta de sua febre pela música, pelo ritmo com que produzia e gravava suas idéias e por ter sua trajetória tragicamente interrompida pelo abuso das drogas. Brotaram, anos afora, as mais diferentes compilações de material que não foi lançado no curto período de sua carreira como artista solo.
Por uma questão de facilidade, adoto o critério de escrever somente sobre os discos que foram lançados no período em que Hendrix esteve entre nós, excetuando-se algumas poucas coletâneas e lançamentos direcionados para alguns países. A obra como um todo de Hendrix possui mais de uma centena de canções, versões de músicas de outros compositores e dezenas de gravações ao vivo de seus concertos.
Jimi Hendrix e seu Experience (Noel Redding no baixo e Mitch Mitchell na bateria) surgem hecatômbicos já no disco de estreia. Nasceu pronto o ícone da guitarra lisérgica, rasgando depois de absorvê-las, todas as lições do blues, do folk, do soul e do próprio rock.
Revelado ao mundo por meio de Chas Chandler (ex-baixista do grupo Animals) e abastecido por um universo alucinógeno paralelo, Hendrix disparou uma série de canções altamente empolgantes e ao mesmo tempo inovadoras e experimentais. Não foi a descoberta do fogo ou a invenção da roda, mas canções como “Purple Haze”, “Foxy Lady”, “Fire” e “I Don’t Live Today” sintetizaram o espírito de época e catapultaram o rock para um novo patamar de liberdade criativa, especialmente em termos de instrumentação.
Além do seu próprio valor em si, Are you Experienced foi o catalisador para que o peso, o ecletismo e a improvisação fossem doenças quase irremediáveis para o rock a partir daquela época. Neste trabalho, temos rock psicodélico com valsa jazz em “Manic Depression”, referências soul em “Wind Cries Mary”, um passeio por escalas orientais na tocante “May this be Love”, explosões de sons e efeitos em “Love or Confusion” e na faixa título, e uma inusitada transa entre George Harrison e John Coltrane conversando sobre aliens em “Third Stone from the Sun”, uma canção que junto com várias outras do biênio 66-68 foi a linha evolutiva da chamada art-rock.
Menção mais que honrosa aos heróicos Redding e Mitchell, com atuações soberbas no disco. Desnecessário dizer quantos guitarristas foram influenciados por Are you Experienced.
The Jimi Hendrix Experience – Axis: Bold as Love (1967)
Após a explosão de Are you Experienced, era evidente que Jimi e sua trupe teriam uma rotina frenética de concertos, apresentações em redes de TV e rádio, ações de publicidade, sessões de fotos, entrevistas, etc e tal. Desta forma, e tendo em vista que apenas oito meses separaram um lançamento do outro, fica claro entender que Axis: Bold as Love não foi exatamente pensado como álbum.
Era um punhado de canções que iam sendo compostas em passagens de som, quartos de hotel, ou em estúdios pelo caminho que estivessem disponíveis. O ritmo do Experience era estafante, porém as idéias fervilhavam e iam aos poucos sendo aprimoradas. Também o processo de gravação era bastante fracionado, sendo encaixado no tempo que houvesse disponível, com Hendrix e a banda.
Curiosamente, este disco reflete Hendrix com um aparato de psicodelia menos robusto; Chas Chandler tinha uma forte visão de mercado e trabalhava para que o disco fosse o mais atrativo, comercialmente falando, quanto possível. Hendrix admitiu muitas de suas sugestões e em Axis Bold as Love temos a maioria das canções dentro de padrões radiofônicos – em torno dos três minutos ou menos.
Mas não alimentemos a ilusão de que houve algum recuo de musicalidade e inventividade, alguma concessão pop. Swing jazz aparece em “Up from the Skies”, Hendrix fazendo bases de piano (com acordes aprendidos de um improviso jazz do engenheiro Eddie Kramer) na tortuosa e pesada “Spanish Castle Magic”, ou então tocando flauta doce na parte final da psicodélica “If 6 was 9” e aproveitando para destilar baladas lindíssimas como a tocante “Little Wing”, “Castles Made of Sand” e seu entrelaçamento de guitarras invertidas e “Bold as Love”.
Axis: Bold as Love é um disco com produção sonora mais caprichada, canções mais acessíveis convivendo com experimentação e uma capa de bastante impacto visual. Foi o suficiente para lograr Jimi Hendrix ainda mais ao topo.
The Jimi Hendrix Experience – Eletric Ladyland (1968)
Eis aqui a maximização da sonoridade de Jimi Hendrix; libertando-se gradativamente das amarras de Chas Chandler e Mike Jeffrey, Hendrix pinçou em Eletric Ladyland o trabalho mais eclético de sua curta carreira, já marcada por passeios em territórios sonoros dos mais diversos.
Outra marca do disco foi a inclusão de convidados; Hendrix era um sujeito bastante agregador e tinha muitas amizades no meio musical, como muitos bootlegs de jams sessions com bambas da época revelam.
O menu da Eletric Lady nos oferece ultrapsicodelia soul em “Have you Ever Been (To Eletric Ladyland)?” funk-blues em “Crosstown Traffic” e “Rainny Day Dream Away” (com Buddy Miles na bateria e outros convidados), rock da pesada em “Come On Pt. 1” e “Voodoo Chile (Slight Return)” profetizando o hard rock dos anos 70, blues explosivo em “Voodoo Chile” (com o órgão Hammond transpirante de Steve Winwood e o baixo poderoso de Jack Cassidy) e um estilo inconfundível em “Gypsy Eyes”, “House Burning Down” e na versão metamorfose definitiva de “All Along the Wacthower” (essa contando com Dave Mason no violão e tendo o baixo tocado pelo próprio Hendrix, já que Redding por uma desavença não quis gravá-la).
Ah, sem contar mais uma tintura art-rock com “1983 (A Merman I Should Turn to Be)” que contou com a flauta de Chris Wood. Este é o melhor trabalho de sua carreira – todas as suas qualidades aqui estão em plenitude: seu imenso talento como compositor, arranjador e guitarrista.
Jimi Hendrix – Band of Gypsys (1970)
Apesar de ser um disco ao vivo, a compilação das faixas para Band of Gypsys incluiu apenas material inédito. A plateia de felizardos ali presente pode curtir o reveilon de 1969 atordoada com uma das melhores performances de Hendrix na guitarra.
Foram dois shows realizados no Filmore East, em Nova York, um no dia 31 de dezembro de 69 e outro no dia 01 de janeiro de 70. Se alguém coloca em xeque a supremacia de Hendrix na guitarra, este disco é uma excelente evidência.
Sem truques e nem retoques de estúdio, ele aparece bastante concentrado no instrumento e preparado para a gravação, já que o lançamento era previsto para cumprir uma obrigação contratual (Hendrix não lia os contratos que assinava e entrou em algumas enrascadas por causa disso).
A Band of Gypsys era composta por Billy Cox, baixista e amigo de Hendrix que encarnou todos seus projetos a partir de 69, e Buddy Miles, na época um emergente baterista e vocalista egresso do Electric Flag. Esses companheiros ajudaram Hendrix a fazer seu trabalho com as mais fortes referências funk-soul; uma explosão de grooves que culminava no totem elétrico da Fender Stratocaster de Jimi.
Se a comunidade negra americana implicitamente cobrava uma resposta de Hendrix, foi com todas as cores e sons que ele respondeu. Os vocais divididos com Miles em “Who Knows”, passando pela fotografia dos campos de sangue do Vietnã em “Machine Gun” , mais o balanço irresistível da composição de Miles, “Changes”, e a batida lancinante de “Power of Soul”, colocam nossa imaginação no poder e entregam um prato cheio de delírios para os ouvintes.
O maior gênio da guitarra de todos os tempos, o cara que mudou os rumos da música como a conhecemos! Nunca houve nem haverá alguém como ele!
Realmente o critério adotado para analisar os discos foi o adequado, senão teríamos discos para tratar pelo resto do ano. Mesmo os lançamentos supervisionados pela família dele ("South Saturn Delta", "Valleys Of Neptune", "First Rays Of The New Rising Sun") têm músicas repetidas (ainda que em versões inéditas), sendo coletâneas de sobras, que, como foram compostas e gravadas pelo "divino negão", acabam sendo melhor que muita coisa contemporânea que existe por aí!
Belo texto, Ronaldo! Que venham mais da mesma qualidade!
Texto sensacional! Apeasr de não ser um fã ardoroso de Hendrix, é inegavel sua importancia para o rock, e esses quatro LPs aí são essenciais em qualquer prateleira decente do estilo. Parabéns Ronaldo, e que venham muitos mais!
Valeu pelos comentários de boas vindas, meus caros! Fico feliz que tenham gostado do texto….e Micael, o critério foi exatamente esse, pra ser coerente, ou tentava falar de tudo (e aí haja papel pra tanto) ou ser economico e falar apenas do que Hendrix lançou enquanto estava vivo. Tem coletâneas excelentes, outras nem tanto e duzias de discos ao vivo!
Abraços,
Ronaldo
Concordo integralmente com a restrição feita a esses quatro álbuns ao cobrir a discografia de Hendrix. Se adicionássemos outros, estaríamos criando muitas brechas que tornariam a análise muito derivativa, pouco objetiva. Difícil é encontrar outro artista que, em tão pouco tempo e apenas quatro discos, conseguiu exercer uma influência tão grande quanto Hendrix, tanto em se tratando de execução quanto composição. Os quatro discos são excelentes, e, não à toa, dividem preferências, mas o meu favoritaço é "Axis: Bold as Love".
Muito bom! Ele tocava com os dedos da ALMA!
“Eletric Ladyland” é uma obra-prima. Hendrix extravasa toda a sua criatividade e técnica. Fico imaginando o que ele faria se tivesse a tecnologia que dispomos hoje. A única coisa que discordo em “Eletric Ladyland” foi a mudança da capa, trocando as damas nuas por uma imagem de Hendrix. A capa antiga era dotada de erotismo e sensualidade, elementos que estavam presentes no universo criativo do guitarrista.