O Som Não Propaga Atrás da Cortina de Ferro
Por Marco Gaspari (Matéria originalmente publicada na revista poeiraZine)
A História do Plastic People of the Universe
Era uma vez uma primavera em Praga
Jovens cabeludos vestindo roupas coloridas, bandas de garagem abusando dos decibéis, o rock tocando nas rádios e alimentando matérias em revistas especializadas, um cheiro de cannabis no ar… Não, senhoras e senhores, não estamos falando de Londres ou São Francisco nos anos 60, mas sim de Praga, na Checoslováquia, em pleno regime comunista.
Os responsáveis: de um lado os Beatles, que espalharam a beatlemania não apenas no Reino Unido ou nos Estados Unidos, e do outro o poeta beat americano Alen Ginsberg, que em 1965 fora expulso da cidade depois de insultar o governo com seus poemas libertários entremeados de acusações contra a repressão e a política de exceção no país comandado por Antonin Novotny.
Ofendido além da conta, Novotny radicalizou tanto a sua ação contra essas novas idéias, que dois anos depois o partido comunista local resolveu substituir sua liderança pela de alguém que pudesse instituir as reformas necessárias no país sem ofender os senhores do Kremlin. E foi assim que surgiu a figura de Alexander Dubcek em janeiro de 1968.
Com Dubcek nascia a Primavera de Praga, um conjunto de ações que abrandava a linha dura na Checoslováquia, instituindo a democracia socialista e uma maior aproximação cultural com o Ocidente.
Para o jovem que viveu no país nessa época, foi uma espécie de versão comunista do Verão do Amor californiano, com direito a hippies, drogas, psicodelia e contra-cultura.
A resposta irada do Kremlin contra os excessos democráticos da Primavera de Praga de Dubcek não tardou a aparecer: na manhã de 21 de agosto de 1968, a cidade foi invadida por tanques soviéticos escoltados por 175 mil soldados do Pacto de Varsóvia. Depois de 3 dias, as tropas assumiram a situação e o sonho de liberdade acalantado a rock and roll acabou.
Na cidade ferida pelos tanques de aço surge o povo de plástico
Menos de um mês após a invasão e ainda inspirado pelos ideais libertários das reformas instituídas pela Primavera de Praga de Dubcek, o baixista Milan Hlavsa fundou o Plastic People of the Universe. O grande barato de Milan, juntamente com o diretor artístico e empresário Ivan Jirous, o guitarrista Josef Janicek e o mago da viola Jiri Kabes, era abusar da maquiagem e das luzes psicodélicas para criar verdadeiros happenings enquanto tocavam covers das músicas de seus heróis americanos: Velvet Underground, Fugs, Doors, Captain Beefheart e Frank Zappa, de quem os rapazes se aproveitaram da música Plastic People para batizar a banda.
Acontece que as coisas já não eram as mesmas. A mão de ferro do Kremlin caiu pesada sobre o cotidiano do país, substituindo Dubcek e instituindo uma pesada censura aos meios de comunicação e outras instituições. A cena roqueira ainda sobreviveu um pouco, mas logo foi atingida pelo programa de normalização do atual governo.
As bandas passaram a não mais poder cantar em inglês e precisariam mudar seus nomes para a língua local. Usar cabelos compridos e roupas extravagantes nem pensar. Os concertos e shows eram totalmente controlados pelo governo e, exagero dos exageros, cada músico ou grupo musical era forçado a se submeter a um exame anual perante uma comissão comunista. Apenas os que passavam nesse exame eram autorizados a levar sua arte ao público.
Numa clara demonstração de fidelidade às suas convicções, o Plastic People of the Universe, na época a banda psicodélica mais popular da Checoslováquia, não apenas se recusou a participar de tais exames, como resolveu também manter o nome original e cantar em inglês. Como represália, foram obrigados a cair na clandestinidade, sem licença para trabalhar e sem instrumentos, já que de acordo com o governo comunista tais instrumentos eram propriedade do estado.
It’s only rock’n’roll but they don’t like it
A partir daí, a banda teve que se virar para sobreviver enquanto procurava retomar sua licença de trabalho. Instrumentos usados foram conseguidos aqui e ali e Janicek, um mecânico de automóveis por formação, construiu amplificadores primitivos a partir de velhos transistores de rádio. Foi por esta época que Paul Wilson, um estudante canadense que aportou em Praga por volta de 1967 para estudar de perto o comunismo e foi ficando na cidade como professor de inglês, conheceu Ivan Jirous e começou a ensinar a banda a cantar as músicas dos grupos da costa oeste americana. A afinidade de Wilson com os músicos foi tanta que ele acabou virando o cantor da banda.
Segundo Wilson, no período em que ele participou do grupo, de 1970 a 1972, o Plastic People conseguiu se apresentar pouco mais que uma dezena de vezes em público, mas sempre boicotados ou interrompidos pela ação da polícia. No último desses shows, um concerto no centro de Praga, milicianos completamente bêbados passaram a agredir os fãs e o grupo foi obrigado a se retirar da cidade e a se isolar no interior.
Logo após a saída de Wilson, um novo membro foi convidado a entrar para a banda: o saxofonista Vratislav Brabenec, músico oriundo de grupos de jazz e pelo menos 10 anos mais velho que a maioria dos outros integrantes. Brabenec, de longe o melhor músico da banda, impôs algumas condições para aceitar ser um novo Plastic People, entre elas tocarem apenas material composto pelo grupo e cantarem na sua própria língua, mudanças que radicalizaram totalmente o som do PPU, tornando-o mais experimental e sombrio, criando a atmosfera ideal para os solos brilhantes de Brabenec.
Apesar de relegada a uma condição totalmente amadora, praticamente refugiada no interior da região da Boêmia, a fama do grupo cresceu tanto que inspirou toda uma cena underground à sua volta. Mas suas apresentações durante muitos anos podem ser resumidas às festas de casamento dos amigos e a raros e disputados concertos escondidos no meio do mato, que eram divulgados no esquema boca-a-boca um ou dois dias antes de acontecerem, com os fãs tendo de parar seus carros na estrada e andar durante horas pela mata, em meio à chuva ou neve, para encontrarem uma fazenda onde, num palco improvisado, a banda iria tocar.
Um desses concertos, em março de 1974, ficou conhecido como o Massacre de Ceske Budovice, onde centenas de fãs foram recepcionados pela polícia e obrigados a andar por uma espécie de corredor polonês, sendo agredidos pelos policiais antes de serem enviados de volta a Praga. Pessoas foram fichadas, seis estudantes acabaram presos e dezenas foram até expulsos da escola.
A revolta do maluco.
Por essa época, Ivan Jirous, um misto de diretor artístico, empresário e agitador cultural da banda, achou por bem radicalizar ainda mais a postura subversiva do grupo. Ele acreditava que o Plastic People of the Universe poderia levantar a bandeira daquilo que ele chamava de Segunda Cultura, ou seja: um conjunto de ações e atitudes, artísticas e intelectuais, que se opunha totalmente à Primeira Cultura totalitária patrocinada pelo governo.
Feita a cabeça da banda, ele assumiu o apelido de Magor (ou maluco, em péssimo português) e organizou o primeiro Festival de Música da Segunda Cultura, na cidade de Postupice, em 1º de setembro de 1974, onde o Plastic People e outras bandas underground se apresentaram para centenas de fãs.
Um segundo festival, agora na cidade de Bojanovice, aconteceu em 21 de fevereiro de 1976. Mas este teve conseqüências, pois nem um mês depois a polícia secreta prendeu, entre músicos que participaram desse festival e seus amigos, todos os membros do Plastic People. Mais de 100 fãs foram interrogados, todos os instrumentos foram apreendidos e casas foram invadidas à procura de gravações, filmes e anotações suspeitas. Paul Wilson, o ex-cantor da banda, foi expulso do país e retornou para o Canadá.
Seis meses depois, os presos foram levados à julgamento. E de nada adiantaram as alegações da defesa em favor da liberdade de expressão artística e outros clichês da democracia. Ali era um tribunal comunista e eram os hippies e o rock and roll que estavam em questão, com suas letras vulgares e anti-sociais prejudicando a formação saudável da juventude checa. Os quatro membros do PPU foram finalmente condenados: Jirous pegou 18 meses, Kajicek 12, Karezec e Brabenec 6 meses cada, penas cumpridas na prisão de Praga.
O bolero libertário de Havel
Como toda ação implica uma reação, os artistas e intelectuais checos que acompanharam o julgamento resolveram se movimentar a favor desses jovens músicos hippies que ousaram enfrentar o regime comunista simplesmente por acreditarem que tinham o direito humano de manifestar seu pensamento do jeito que quisessem. Liderados pelo dramaturgo Vaclav Havel eles criaram o Charter 77, manifesto a favor dos direitos humanos que ficou mundialmente conhecido e que foi precursor da revolução nacional ocorrida 12 anos depois e que poria fim ao regime de exceção, conduzindo Havel à presidência do país.
Mas esta é uma outra história e nós vamos ficando por aqui. Para concluir, a banda continuou seu percurso marginal durante os anos 80, sofrendo novas prisões e sansões por parte do governo. Apenas com a subida ao poder de Vaclav Havel e a queda do regime comunista ela chegaria finalmente à legalidade.
Discografia do Plastic People of the Universe
- Muž bez uší (live recordings 1969-72)
- Vožralej jak slíva (live recordings 1973-75)
- Egon Bondy’s Happy Hearts Club Banned (1974)
- Ach to státu hanobení (live recordings 1976-77)
- Pašijové hry velikonoční (1978)
- Jak bude po smrti (1979)
- Co znamená vésti koně (1981)
- Kolejnice duní (1977-82)
- Hovězí porážka (1983-84)
- Půlnoční myš (1985-86)
- Bez ohňů je underground (1992-93)
- The Plastic People of the Universe (1997)
- For Kosovo (1997)
- 10 let Globusu aneb underground v kostce (2000)
- Milan Hlavsa – Než je dnes člověku 50 – poslední dekáda (2001)
- Líně s tebou spím – Lazy Love/ In Memoriam Mejla Hlavsa (2001)
- Pašijové hry/ Passion Play (with Agon Orchestra) (2004)
- Do lesíčka na čekanou (2007)
- Magor’s Shem (40 Year Anniversary Tour PPU 1968-2008) (2008)
- Maska za mascou (2009)
- Non Stop Opera (2011)
Egon Bondy’s Happy Hearts Club Band – O Sgt Pepper dos disco obscuros.
Egon Bondy foi um poeta checo com uma grande veia satírica. Entre 73 e 74, refugiados num castelo na Boêmia, os músicos do Plastic People of the Universe vestiram as palavras do poeta com uma ousada fusão de psicodelia, jazz rock e melodias clássicas européias. Nascia mais um dos vários tapes que a banda gravava e presenteava os amigos. Acontece que uma dessas fitas acabou sendo contrabandeada para o ocidente e lançada em disco pela Scopa Invisible Productions em 1978, na França, acompanhado de um rico encarte contando a história da banda, do rock na Checoslováquia e da situação política em que viviam os músicos no país. E detalhe: tudo isso sem o conhecimento da banda. O disco transpira Zappa por todos os sulcos e é um verdadeiro legado às gerações roqueiras. Gravado com o coração, a alma e a esperança de liberdade, Egon Bondy’s Happy Hearts Club Band é um clássico, talvez o maior disco obscuro da história do rock.
Obs: esta materia é uma compilação, adaptação e, algumas vezes, tradução literal de textos existentes na internet e no encarte do primeiro disco do Plastic People of the Universe lançado no ocidente. A história mais detalhada da banda a partir de 1977 está disponível na net.
Tem um problema no seu texto Marco!!!
Ele é muito curto!!!
Nessas horas eu queria que fosse o Mairon que tivesse escrevendo!!! hahahaha.
Interessante essa história aí misturando música, história e um pouco de cultura…
Gostei dessa passagem aqui: [i]”E de nada adiantaram as alegações da defesa em favor da liberdade de expressão artística e outros [b]clichês da democracia[/b]. Ali era um tribunal comunista e eram os hippies e o rock and roll que estavam em questão…”[/i]
Essas matérias escritas para a Poeira tinham limite de espaço. E foi isso o que coube. Eu também não quis aumentar a água do feijão de comida requentada. Interessante é que na matéria que fiz sobre Exotica, um colega me deu um pito dizendo que o texto estava longo demais. Você nunca estão contentes.
É assim mesmo Marco!!!
Mais um relato histórico incrível traduzido para o português pelo nosso Marcolino! Por sinal, vou atrás dos discos deles.
Porra André, já me chamaram dos nomes mais cabeludos, mas tradutor é a primeira vez.
Coincidência?
Hoje de manhã, eu estava dando uma olhada no Discogs e dei de cara com a discografia dessa banda, “The Plastic People of The Universe”.
No fim da manhã, abro a Consultoria e ó! Lá está a banda. Cortesia do Marco Gaspari.
Belo texto!!!
Simplesmente excelente! Ótimo texto e matéria! Yeah!!
Deveras interessante esta banda,na verdade,esta história!!Parabéns Marco pelo texto,que apesar de pequeno,foi magistral e,obviamente,fundamental!Em relação a obscuridade presente na música,só tenho a dizer que as vezes o obscuro manifesta-se com mais iluminação do que a “própria” “””iluminação”””.Mas fazer o que nean,That’s Life.
Parabéns pela excelente matéria Marco. A Cortina de Ferro, mesmo com toda sua repressão, ainda nos brinda com excelentes surpresas musicais.
Outro exemplo que posso dar é do músico tcheco Ota Petřina (do disco Super-Robot), que foi proibido de se apresentar ao vivo por quase 15 anos devido a sua recusa em cortas os cabelos!
Oi André… não sei quase nada a respeito da história do guitarrista, a não ser que esse disco ele lançou já com certa idade (provavelmente devido aos seus problemas com as autoridades). Mas isso que se passou com o Plastic People e o Ota, por outro lado, explica porque bandas como o Blues Effect trocaram de nome de forma abrupta logo após o primeiro disco: viraram Modry Efekt e depois M. Efekt. A gente pensa: pô, os caras assumiram o nome em sua própria língua, patriotismo exacerbado, consciência de suas origens e tal… Mas não, o governo comunista (que nem era centrado em seu prórpio país) foi lá e obrigou. E nem é preciso ir tão longe: a ditadura de direita aqui no Brasil também fez suas barbaridades, porque censura é censura, não importa sob qual ideologia.