Tralhas do porão: After Dinner
Por Marco Gaspari
No universo do rock cada ouvido é uma galáxia.
Isso talvez explique porque tantas bandas que amamos soam alienígenas aos ouvidos dos outros. E vice-versa. Mas como ninguém é dono da verdade e cada galáxia sonora é um espaço enorme para se aventurar, só existe um buraco negro: o do preconceito.
Eu, por exemplo, adoro bandas japonesas. Muita gente tem preconceito. Diz que japonês copia na cara dura. Suponhamos então que isso seja correto, que a japonesada faça tudo igual. Pois digo que eles copiam tão perfeito, um xerox de resolução tão alta, que chegam ao cúmulo de muitas vezes superar o original em qualidade.
Existem muitas bandas japonesas assim, desde o tempo do beat sessentista. Bandas psicodélicas, de hard, prog, jazz rock, difícil encontrar uma que você diga: “Nunca ouvi nada parecido”. Muito mais difícil, no entanto, é dizer que o som é ruim. Os de olhinhos puxados são bons demais.
Em 1981, porém, o mundo já estava preparado para uma banda japonesa que soasse como uma autêntica banda japonesa. E surgiu o After Dinner, que embalou em folhas de alga música japonesa tradicional, new wave, sonoridades contemporâneas e rock de vanguarda: um sushi que logo mais deixaria a Europa com água na boca (nos ouvidos, melhor dizendo).
O After Dinner foi o cartão de visitas da cantora, letrista e compositora HACO, uma espécie de gueixa pós-punk com uma doçura contagiante. Duvido que você hesitasse em apresenta-la à sua mãe durante uma cerimônia do chá. HACO também é descrita por aí como performer eletroacústica, multi-instrumentista, sound artist, produtora e engenheira de som. E se não bastasse tudo isso ainda é sumidade nessas coisas de tecnologia da gravação.
Lógico que o After Dinner não é só a HACO. Ela está secundada pelo genial Yasuchi Utsunomiya nos sintetizadores e amparada por músicos das mais diversas formações. O primeiro single da banda, “After Dinner / Cymbals at Dawn” brilhou no set list da rádio nacional da Alemanha. Foi aquela toalhinha quente que os restaurantes japoneses servem antes de trazer a comida, pois quando foi lançado o primeiro LP da banda no Japão, Glass Tube, de 1983, já havia uma boa dose de expectativa por parte dos europeus e americanos amantes da cena free music.
HACO e sua trupe foram logo identificadas com o movimento RIO (Rock in Opposition) e tiveram a honra de ver esse seu primeiro disco lançado para o mundo pelo selo Recommended Records, do exigente e seletivo Chris Cutler, ex-baterista do Henry Cow. Isso em 1984. Nas palavras do respeitado jornal inglês de música Sounds, o som do After Dinner era uma fusão única de música tradicional japonesa e eletrônica, com a deliciosa voz de HACO juntando tudo. Nesse mesmo ano fizeram seu primeiro tour europeu e participaram do France’s Mimi Festival.
Ouvir o disco Glass Tube hoje ou 30 anos atrás não faz a mínima diferença. Ele ainda tem frescor e surpreende a cada nota. Na primeira faixa HACO recepciona o ouvinte: “Olá, você é bem-vindo ao After Dinner”. Só que esse convite não tem nada de “Hey, hey, it´s The Monkees”. Cantado em japonês, parece mais o grito de guerra de um samurai transgênero. “Sepia-Ture“, a seguir, é toda embalada em notas de jazz, mas deixa escapar uma percussão do tipo bossa nova do japonês doido capaz de fazer Tom Jobim sair da tumba pra se sentar ao piano e pedir uma cerveja. “An Accelerating Etude“ parece mais uma tentativa de se prender notas rebeldes em um saco sem fundo: o que escapa sai ainda mais rebelde. Bom, eu posso ficar aqui buscando as palavras para descrever faixa por faixa. A conclusão que vamos chegar, você e eu, é que sua percepção será totalmente diferente da minha. Então vou deixar de lado este exercício inútil e esperar que até aqui você já esteja suficientemente curioso para ouvir o disco e se deliciar ou me odiar pelo resto do meu mau gosto.
Em minha defesa posso assegurar que os Ingleses ficaram muito impressionados com a performance do After Dinner no Institute of Contemporary Arts – ICA. Publicações como New Musical Express e Melody Maker cobriram a banda de elogios e chegaram a afirmar que HACO e seus camaradas estavam “ajudando a reverter a tendência japonesa de importação em massa dos mega-pops ocidentais”.
Em 1989 sai simultaneamente no Japão (pela Zero Records) e na Europa (pela Recommended Records) o álbum Paradise of Replica, descrito como “uma estimulante viagem às paisagens das sensações”. Um disco que eu considero menos radical que o primeiro, muito mais palatável e belíssimo a ponto de ofender, revelando que toda a sofisticação auditiva que acreditávamos ter até escutá-lo é, na comparação, de uma pobreza que beira a brutalidade.
O After Dinner ainda participou de vários festivais antes de debandar em 1991. Nesse mesmo ano a Recommended Records relançou o primeiro disco em CD complementado por mais nove faixas gravadas ao vivo entre 1986 e 1990. Faça uma homenagem a si mesmo: persiga, ache e compre-o.
Ouça:
Legal,Gaspari.Estou ouvindo e gostei bastante das primeiras impressões.Muito bom seu texto,Marco,é fascinante a estruturação textual que você usa em suas matérias.
Gaspari,eu queria fazer uma pergunta a você.Culturalmente e musicalmente falando,qual será,na sua opinião,o tipo de música feita neste planeta daqui a uns 131 anos?Será um estilo totalmente tecnológico?Será um experimentalismo sem precedentes?O que tu achas?
A pergunta pode parecer ‘meio nada haver’ com a matéria,mas tem tudo haver com o After Dinner,diretamente e indiretamente.
Obrigado pelo elogio, Erick e pelo fato de que leu a matéria e se dispôs a ouvir o After Dinner, coisa que aposto que muita gente desistiu só de ler (se é que leu). Vanguarda nunca é de fácil digestão. Quanto à música daqui a 131 anos, diria que será, criativa e musicalmente, algum tipo de revival disfarçado pelas novas sonoridades tecnológicas. E do lado do mau gosto comercial, temo que alguma bobagem cometida pela Mutante Quebra Barraco e que tais.
Marco e suas pautas curiosas e surpreendentes. O som me demandaria uma boa insistência pra apreciar. Mas de fato, quebra essa tendência dos japoneses de irem na esteira da criação e no perfeccionismo da emulação. Abraço!