Nunca É O Bastante: A História do The Cure [2005]
Por Micael Machado
Resumir trinta anos da história de sucesso de uma banda famosa em apenas trezentas páginas deve ser um desafio enorme para qualquer escritor. Mas o jornalista australiano Jeff Apter (ex-editor da revista Rolling Stone na Austrália e colaborador de títulos como Vogue, GQ e Australian Hi-Fi) resolveu assumir esta bronca, e saiu-se muito bem ao redigir Never Enough: The Story of The Cure, livro que saiu lá fora em 2005, mas foi lançado no mercado brasileiro apenas em 2015, pela editora Edições Ideal (com o título, felizmente, traduzido em sua versão literal para o português, e não com “inventos aleatórios”, como muitas vezes se vê por aí). A espera acabou sendo, de certa forma, benéfica para o Brasil, pois permitiu o acréscimo de um epílogo escrito em 2008 que, além de aumentar um pouco o número total de páginas da obra (que ficou em 318, mais dez outras apenas com fotos), agrega alguns outros fatos importantes acontecidos com o grupo depois da edição da versão original. O bom resultado apresentado por Apter em seu livro se torna ainda mais surpreendente quando constatamos que o convite feito pelo vocalista, guitarrista e eterno líder do The Cure, Robert Smith, para que seu “fiel escudeiro” Simon Gallup (baixista e principal colaborador do cantor ao longo da história da banda) se juntasse ao grupo acontece apenas na página 116 da obra. A entrada de Gallup, no final de 1979, e a consequente gravação do segundo registro do The Cure (Seventeen Seconds, de 1980), marcam, de acordo com Smith, a verdadeira “estreia” do conjunto (devido a vários problemas com a gravadora surgidos antes, durante e depois do lançamento do primeiro disco, Three Imaginary Boys, de 1979), e é, de certa forma, o início da estrada que levaria o The Cure ao reconhecimento mundial alguns anos depois.
Uma das mais importantes formações do The Cure: Simon Gallup, Porl Tompson, Laurence Tolhurst, Boris Williams e (à frente) Robert Smith
Estes “conflitos” com a gravadora são bem explorados pelo autor em algumas das páginas anteriores à união de Smith com Gallup, mas o foco da obra, até então, está na infância e adolescência dos amigos Robert Smith e Laurence Tolhurst (que viria a deixar o grupo em 1989), os quais se conheceram na escola ainda muito jovens, e foram os criadores daquela que viria a ser uma das maiores bandas do mundo nas décadas seguintes. Os primeiros passos musicais dos dois artistas (em grupos embrionários como o The Obelisk e o Easy Cure), suas decepções e suas pequenas conquistas são bastante detalhadas por Apter, que deixa claro que o sucesso não vem por acaso, e que a convicção dos dois músicos em sua obra nunca esmoreceu, mesmo diante de desafios e transtornos (principalmente com a primeira gravadora do grupo, a alemã Hansa) que fariam muitos desistirem, como aconteceu, de certa forma, com o baixista original Michael Dempsey, que saiu (ou “foi saído”) do The Cure pouco depois do lançamento de seu primeiro registro completo.
A partir da união de Smith e Tolhurst com Gallup, e do lançamento do segundo disco, o The Cure começou uma trajetória que, entre altos e baixos, levou a banda, como já mencionei, a ser um dos maiores ícones do mundo da música, especialmente na década de 1980, quando seu nome era sinônimo de sucesso, muitas vezes por causa da associação ao termo “rock gótico” (rótulo que Smith sempre rejeitou, mas que, mesmo contra a vontade do cantor, ficaria associado para sempre a estes britânicos desde aqueles tempos). A estrada do grupo não foi feita apenas de momentos felizes, e as muitas mudanças de formação, os problemas de todos com as drogas (com abusos de diversas substâncias ilegais ao longo de muitos e muitos anos), as vidas pessoais atribuladas (principalmente a do líder Smith, que nunca lidou muito bem com o sucesso e o reconhecimento dos fãs invadindo sua privacidade), as dúvidas do líder Robert com relação ao futuro de seu grupo (que o levaram até mesmo a ser membro permanente de oura banda por um tempo, no caso o Siouxsie & the Banshees, e a montar um projeto paralelo de curta duração, intitulado The Glove) e as discussões artísticas com a gravadora Fiction (detentora da maior parte do catálogo do grupo) aparecem com destaque ao longo da obra, bem como comentários do autor para as composições registradas nos onze discos de estúdio lançados após Seventeen Seconds, bem como das circunstâncias de suas gravações e composições, e do “estado de espírito” do grupo quando das mesmas.
O The Cure com Martin Judd nos teclados. Sua rápida passagem pela banda é esclarecida no livro.
A partir da leitura da obra, não é difícil perceber o porquê de tantas mudanças musicais (e pessoais) ao longo da história do The Cure. Do rock lento e depressivo da trilogia Seventeen Seconds, Faith e Pornography ao pop deslavado dos singles Let’s Go To Bed, The Walk e The Lovecats, do reconhecimento das rádios aos álbuns The Head On The Door e Kiss Me Kiss Me Kiss Me ao retorno à depressão com os registros Disintegration e Bloodflowers, de lançamentos de sucesso como Wish a títulos equivocados como Wild Mood Swings, a trajetória de Smith e seus asseclas percorreu muitos caminhos diferentes, que pareceriam esquizofrênicos a um ouvinte casual. Mas, graças a Never Enough, se consegue perceber os motivos que levaram a banda por tantos caminhos tortuosos, criando uma legião de fãs que lhes apoiaram em todas as suas aventuras, e continuam a lhes dar suporte ainda hoje. A grande variedade de músicos e formações que o The Cure apresentou nos trinta anos compreendidos pela obra também acaba sendo explicada, de uma forma que demonstra que, ainda que se tenha a percepção de que Smith seja uma pessoa difícil de lidar, a realidade não é tão simplista assim (neste quesito, é primorosa a explicação do autor para a rápida passagem do tecladista Martin Judd pelo grupo em 1986, fato que até o lançamento do livro causava muita controvérsia entre os fãs mais fiéis da banda). A obra também não se furta de dar o crédito de boa parte do sucesso da banda aos seus elaborados vídeo clipes, especialmente aqueles que tiveram como responsável o diretor Tim Pope, em uma duradoura associação que obteve um sucesso enorme enquanto perdurou.
Como disse, o fato de Apter conseguir contar toda esta conturbada jornada em pouco mais de cento e oitenta páginas (a partir daquele encontro registrado acima) é surpreendente, ainda mais quando se leva em conta que, ao contrário do que acontece em outras biografias, o autor não “apressa” os fatos, evitando “pular” aqueles que julga menos importantes e “resumir” os que mais se destacam, como já li em muitas outras biografias. Indo em direção contrária a vários de seus colegas de profissão, o autor “dá espaço” ao seu relato, em um texto que valoriza as histórias que conta, lhes dando o tamanho necessário e merecido, em uma edição que resulta muto fácil e agradável de ler, ajudada pela competente tradução para o português, a cargo de Ligia Fonseca, que presta um trabalho primoroso, demonstrando um bom conhecimento não apenas da língua inglesa, mas também do assunto abordado (fato que frequentemente é deixado de lado quando as editoras selecionam tradutores para suas obras).
Contracapa de Nunca É O Bastante: A História do The Cure
Com tudo isto, e apesar da trajetória do The Cure continuar ainda hoje, com outros fatos que também mereciam estar registrados em uma biografia, Never Enough: The Story of The Cure se torna ainda mais recomendável, especialmente para quem, como eu, tem o grupo britânico como um dos pilares de sua formação musical (ou apenas aprecia a obra de Smith e companhia, sem o fanatismo exacerbado de alguns fãs). Mesmo que você não goste tanto assim da banda, mas tenha algum interesse pela música e o universo pop das duas últimas décadas do século passado, deveria dar uma “olhada” neste primoroso livro. Garanto a você que não irá desperdiçar seu tempo. Pode acreditar!
Boas noites!
Falo vos de Portugal e gostaria de adquirir a bio da banda, visto que em Portugal esta n está disponível, será possivel?
Mt obrigado!