As 101 cordas da guitarra de Jerry Cole
Por Marco Gaspari
Acredito que para a acachapante maioria dos roqueiros que frequenta este site, e só não digo que seja a absoluta maioria porque eu, que sou roqueiro e frequento este site, discordo, a música de elevador, ou “easy listening”, é como o campeonato de futebol da terceira divisão do estado de Rondônia: nem o Fernando Bueno, ilustre habitante local, dá a mínima importância. Mas vamos imaginar que naqueles campos de terrão onde é disputado tal campeonato, um time de muita tradição e várias conquistas na categoria tenha em sua história abrigado um centroavante que em determinado jogo, e nem precisou ter o status de decisão, incorporou Pelé e fez os 10 gols da homérica vitória por 10 a 0 sobre o maior rival.
Pois bem, trazendo para o contexto roqueiro da Consultoria do Rock, as músicas do disco Astro-Sounds From Beyond the Year 2000 da orquestra 101 Strings, famosa por seus arranjos mela-cuecas com cobertura de pompa e circunstância, dão de 10 a 0 em muito lançamento do campeonato psicodélico americano de 1968. E, para contrariar o desdém dos Fernando Bueno deste site, merece um lugar de destaque, nem que seja no banco de reservas, dos apreciadores do rock que fez a glória de Grateful Dead e companhia.
Podemos dizer que o 101 Strings foi uma franquia: durou 30 anos e lançou mais de uma centena de discos. Os três primeiros deles foram paridos em 1957 e o projeto nasceu da mente do produtor David L. Miller que, como fundador e dono do selo Essex Records, tem o pé metido até o tornozelo na história do rock’n’roll, já que foi quem gravou os primeiros discos de Bill Halley & His Comets.
Miller acabou sendo processado por Bill Halley por causa de disputa de royalts e a Essex faliu. Mas contrariando o ditado de que cachorro velho não aprende novos truques, Miller fundou a Somerset Records, apostando em discos baratos distribuídos em farmácias e supermercados. Com a chegada da gravação em stereo, o produtor colocou suas fichas no sistema e, como um Clovis Bornay da música Exótica, adornou suas produções com as plumas e os paetês de grandes orquestras europeias, entre elas a então obscura Orchester des Nordwestdeutchen Rundfunks Hamburg e a mais famosa London Philharmonic Orchestra. O truque era gravar na Europa músicas de domínio público, covers de sucessos populares ou trilhas de filmes em cartaz, usando músicos não submetidos aos sindicatos americanos para baixar os custos e, consequentemente, o preço final dos Lps.
O 101 Strings se tornou o suprassumo da “mood music” e, dependendo do repertório e dos arranjos, a orquestra era composta por 128 a 141 músicos, dos quais 30 eram primeiro violinos, 26 eram segundo violinos, mais 20 violas, 18 cellos e por aí vai. Não à toa seus lps eram assinados com o slogan “The Sound of Magnificence”.
Em 1964 Miller vendeu a Somerset para o bem sucedido distribuidor Al Sherman, permanecendo como seu sócio. Sherman mudou o nome do selo para Alshire, mas continuou de forma ainda mais agressiva a investir no conceito de discos baratos para ouvidos baratos, tendo a franquia 101 Strings como seu principal megafone. Em uma entrevista à Billboard, Sherman se gabava dos planos de lançar 150 álbuns por ano, ameaçando provocar indigestão sonora através do junkie food vinilico produzido com notas musicais de segunda. E não era pura megalomania não, já que existia todo um mercado faminto por esse tipo de guloseima.
Uma subsidiária da Alshire, por exemplo, a Budget Sound Inc, já trabalhava orientada por um esquema de corte de custos que chegou ao cúmulo de reciclar cinzeiros de plástico para transformá-los em LPs de vinil. O próprio David L. Miller afirmava que não estava no ramo de discos, mas de plásticos. E isso significava empurrar orelha abaixo hinos de igreja, tributo aos Beatles, cancões patrióticas e trilhas pornôs, grande parte disso sob o guarda-chuva 101 Strings. Em 1967 o catálogo de discos da franquia já havia atingido 107 álbuns.
Mas chega de papo e vamos ao que interessa. Está na hora de revelar o nome daquele centroavante hipotético ao qual me referi no começo deste texto: Jerry Cole.
Cole era guitarrista. Um excepcional guitarrista. Já ganhava um troco trabalhando para Phil Spector, mas foi como líder da banda Jerry Cole and His Spacemen que ele fez vários álbuns de surf music entrar na órbita de toda a geração surfista americana do começo dos anos 60. Como músico de estúdio, fazendo parte inclusive dos The Wrecking Crew, Cole se tornou um dos mais prolíficos guitarristas da música americana. Sua guitarra está lá na gravação de “Mr. Tambourine Man”, dos Byrds; está lá nos sulcos do Pet Sounds, dos Beach Boys; também estava com Nancy Sinatra na gravação de “These Boots Are Made For Walking”. Cole teve vários pseudônimos, fez dezenas de parcerias e era sempre o primeiro guitarrista a ser chamado para apoiar os shows de TV de Sonny & Cher, Dick Van Dyke, Andy Willians e outros.
Entre 1965 e 1966, cheio de ideias na cabeça (e talvez alguns ácidos), Cole resolve juntar músicos amigos escolhidos a dedo nas sessões dos estúdios de Los Angeles e montar um novo projeto: The Id. Um caminhão de horas de estúdio depois, e após selecionar o que queria de um enorme material gravado, estava pronto o álbum The Inner Sound of The Id, com 10 faixas, lançado pela RCA em janeiro do ano mágico de 1967.
Difícil explicar a sonoridade do The Id sem começar a enfileirar clichês: guitarra distorcida, ragas orientais, certa aura mística, cadência hipnótica, algum groove a lá Booker T e poesia visionária. Todos ingredientes básicos da cozinha psicodélica americana da época. Como sempre, porém, o segredo está no modo de fazer e no talento do chef. E talento o Jerry Cole tinha de sobra, basta provar dessa iguaria com ouvidos de gourmand. Infelizmente, a digestão foi lenta e a azia das vendas insignificantes fez os músicos voltarem para o dinheiro seguro das sessões de gravação. The Id provou que não dá para viver só de ego.
Mas a história não acaba por aí. Existe um vilão: Paul Arnold, o produtor e empresário do The Id, um tipo malandro e trapalhão que fez a banda perder a carona de um single querendo subir na Billboard por insistir em um show de estreia em Chicago. Depois ainda entrou em litígio contra a RCA tentando faturar os royalts do fracasso. Não satisfeito, pegou todas as fitas com o material não aproveitado pela banda no disco e desapareceu. Mais tarde, sem o conhecimento de Cole, as vendeu para várias gravadoras.
E uma delas foi a Alshire, que assim volta à cena neste texto.
Acid rock era a palavra de ordem durante todo o ano de 1967, principalmente depois dos Beatles acrescentarem Pimenta ao tempero. Al Sherman e David L. Miller não podiam ficar indiferentes ao movimento e no começo de 1968 tiram da manga uma banda chamada The Animated Egg, embalada por uma capa que parece mais o chão de uma fábrica de velas depois do incêndio. No centro da capa a foto da banda (fake) e, na contracapa, apenas o nome das músicas, sem ficha técnica nenhuma. Adivinhou: eram as sobras das gravações feitas por Jerry Cole & The Id, que resultou em um disco ainda melhor que o anterior. Quando ficou sabendo da tramoia, Cole queria surrar Paul Arnold, mas quem disse que conseguiu achá-lo?
Apesar da maravilha sonora que era o The Animated Egg, suas vendas foram de desanimar a granja inteira. Principalmente se comparado ao que vendiam os álbuns da chancela 101 Strings.
Quem olhasse para a América em 1968 veria um turbilhão de acontecimentos: Vietnã, missões Apollo, rock bubblegum, Barbarella… ôps, alguém disse Barbarella?
Atentos ao sucesso da trilha sonora do filme de Roger Vadim, estrelado por Jane Fonda, Sherman e Miller enxergaram a oportunidade de reaver o que investiram no Ovo Animado . Prepararam um contrato e deram para Monty Kelly assinar. Kelly trabalhou como arranjador em vários discos do 101 Strings e ganhou de seus patrões, além dos masters das gravações de Jerry Cole & The Id usados no disco do The Animated Egg, permissão para contratar quem fosse preciso, e usar os efeitos e os arranjos de orquestra necessários, para transformar o material, cujo codinome inicial foi “Eggs and Strings”, no mais alienígena pastiche pop espacial que o orçamento da NASA poderia comprar.
E eis que no terceiro trimestre de 1968, qual Fenix renascida das cinzas, o mercado é contemplado com o novo disco do 101 Strings: Astro Sounds From Beyond the Year 2000, o The Animated Egg turbinado com efeitos de sintetizador e arranjos orquestrais. E isso em plena euforia sci-fi provocada pelo filme 2001, uma Odisseia no Espaço, obra-prima de Stanley Kubrick. Mr. Spock já tinha seu disco de cabeceira.
Está certo que foi trambique, mas quem se importa? Jamais um disco do 101 Strings, entre mais de uma centena de títulos, chegou perto da surpresa gerada por Astro-Sounds. As músicas de Jerry Cole não foram apenas anabolizadas, mas também rebatizadas com nomes para marciano nenhum botar defeito. A faixa de abertura, “Flameout”, conhecida em outra vida como “Sock It My Way”, ganhou tiques psicóticos. A “ Disappointing Love With A Desensitized Robot” , antes conhecida como “Tomorrow”, parece um engavetamento de órgãos em plena Autobahn. E “Trippin on Lunar 07” (quem quiser saber o nome antigo que ouça os discos no youtube) é guitarra flamboyant viajando no lado colorido da lua. Enfim, são 10 músicas que não deviam nada aos Iron Butterfly da vida, mas como foram creditadas ao 101 Strings, o disco confundiu o consumidor e isso pode ser considerado o principal fator pelo seu fracasso na época do lançamento, caindo no esquecimento até ser relançado com bônus nos anos 90, em pleno redescobrimento da música lounge.
Daí sim, qual o Major Tom de Bowie que volta à Terra depois de 20 anos perdido no espaço, aterrissou para a merecida glória.
The Inner Sound of The Id (completo)
The Animated Egg – Sock it my way
The Animated Egg – Tomorrow
Astro-sounds From Beyond the Year 2000 (completo)
Belo texto, Mr. Gaspari. O curioso é que, na história do rock e do pop, a malandragem corria solta. Mas, entre um trambique e outro, saíam algumas coisas bem interessantes. É o caso do disco em questão. Já que tocaram no assunto, que tal um “cinco discos para conhecer o bubblegum rock”? Archies, Ohio Express, 1910 Fruitgum Company, Tommy Roe, Tommy James & The Shondells, se não são uma maravilha, influenciaram gente como os Ramones, por exemplo. Mais uma coisa: quando vier em Rondônia, não perca a oportunidade de ver um clássico do futebol do Norte: Genus e Ji-Paraná. A torcida Genocídio lhe aguarda!
Ensaio um disco sobre o bubblegum faz tempo. Sou fã e 1910 Fruitgum Co. é banda de cabeceira. O disco Hard Ride deles deveria ser conhecido por este bando de picaretas consultores. Na PZ cheguei a escrever sobre bubblegum indiretamente em um pequeno artigo sobre a música Neanderthal Man, dos Hotlegs, já que os futuros 10CC eram fornecedores dos produtores Kazenetz e Katz e o estúdio deles sobreviveu disso (lá na Inglaterra) por um bom tempo. E pode me inscrever como sócio emérito da Genocídio.
Escrevi disco, mas quis dizer matéria, hehe…
Só torça para não chover…
De fato. Se chover… kkk
Creio que o bubblegum (e o sunshine pop também) merece um espaço aqui na Consultoria. Se houve discografia comentada do Abba, por que não as bandas fabricadas por Kasenetz e Katz? rerere… A torcida Genocídio o aguarda!
Que trambicagem da grossa, ahaha!
Muito bom o texto, principalmente as metáforas e comparações, ahaha! “Com a chegada da gravação em stereo, o produtor colocou suas fichas no sistema e, como um Clovis Bornay da música Exótica, adornou suas produções com as plumas e os paetês de grandes orquestras europeias”, ahahah Gênio!
Matéria simplesmente genial! Mais uma vez,meus parabéns, Siri
Grande matéria, Marco. Fico pensando em quem coleciona o 101 Strings, deve ficar louco atrás do “disco 43” ou do “97º vinil original”.
Por sinal, ouvi um pouco do Astro-Sounds que linkou e é bem a sua cara!
Colecionar 101 Strings é que nem discurso de deputado brasileiro em sessão de impeachment: é por Deus e pela família.
Um dos textos mais engraçados de Mr. Gaspari!
Animated Egg é bem maneiro, não fazia ideia dessa história toda.
“orquestra 101 Strings, famosa por seus arranjos mela-cuecas com cobertura de pompa e circunstância, dão de 10 a 0 em muito lançamento do campeonato psicodélico americano de 1968. E, para contrariar o desdém dos Fernando Bueno deste site, merece um lugar de destaque, nem que seja no banco de reservas, dos apreciadores do rock que fez a glória de Grateful Dead e companhia.” G-Ê-N-I-O
Mas que trambicagem!
Pelo menos os nomes das músicas desse Astro Sounds são sensacionais, com um destaque especial para a ‘Disappointed love with a desensitized robot’, haha.
Mas que trambicagem! Pelo menos os nomes das músicas desse Astro Sounds são hilários, com destaque especial para a ‘Disappointed love with a desensitized robot’, haha.
Obrigado por citar meu nome em uma matéria sua Marco. Fico honrado de ter meu nome no meio das letrinhas frequentemente tão bem agrupadas por você. Nem a primeira divisão daqui eu acompanho. Não digo que não dou a mínima já que até fui ao estádio dia desses. No mais o easy listening não é minha praia mesmo.
A matéria diz o seguinte: um disco de rock surrupiado por uma franquia conhecida do nicho easy listening. Esse disco do 101 Strings não é EL, é rock. Assim como tem disco do Devo que homenageia o EL, só que é rock também. Abram a mente, meus amiguinhos: música de elevador são os dedilhados do Malmsteen e cia, que sobem e descem sem jamais parar em andar algum.
MAs eu fiquei mais interessado nesse Astro-Sounds. Se eu não estivesse ouvindo rádio o dia todo para saber da repercussão do impeachment eu ouviria agora…
Caralho, deixa o impeachment de lado um minuto, Fernando: o disco do Astro-Sounds é do 101 Strings. Ou eu não fui claro?
Foi claro sim….Eu que me expressei mal. Sei lá…