The Gil Evans Orchestra Plays the Music of Jimi Hendrix (1974)
Por Eudes Baima
Hendrix Goes Jazzy
Este disco não poderia entrar numa lista de Melhores de Todos os Tempos porque é um álbum de covers. Pois é! Mas ei-lo aqui, cortando caminho para passar com a sua glória.
Uma das perguntas clássicas de gente que escreve sobre, pensa a respeito, toca ou simplesmente ouve rock’n’roll é: que caminho Jimi Hendrix teria tomado se não tivesse sido visitado pela Maldita aos 27 anos? A pergunta é pertinente principalmente pela indomável inventividade e abertura musical do guitarrista. Sua parca obra editada em vida, três discos de estúdio com o Jimi Hendrix Experience, mais um álbum ao vivo com seu segundo power trio, Band of Gypsys (não incluímos, claro, o caudaloso cortejo de lançamentos póstumos, que vão de gravações efetivamente relevantes, mesmo geniais, até exercícios ilegítimos de necrofilia) já apontava em tantas direções e possibilidade que a questão se tornou obrigatória. As respostas, como não poderia deixar de ser, nunca foram conclusivas. Mesmo porque quem poderia responder efetivamente já repousava há sete palmos de profundidade.
A especulação, entretanto, sempre foi interessante e mesmo fecunda. Não faltam textos apostando em que direção Jimi teria ido, alguns tentando se fundamentar na própria obra deixada e nas vias que apontava, outros recheados de puro desejo e gosto pessoal de seus autores. Mas mesmo a especulação é um exercício difícil no caso de Hendrix, um músico que não apenas foi original musicalmente (da categoria dos Inventores, na classificação de Ezra Pound, ou seja, daqueles artistas que não apenas foram mestres em seu ofício, mas reinventaram o próprio ofício), mas alterou sob diversos pontos de vista o ato de fazer música, incluindo não só a técnica de composição e execução, mas também o uso dos meios técnicos e tecnológicos para fazê-lo. Isto quer dizer que especular sobre que tipo de música Hendrix faria se tivesse vivido mais implica especular acerca das revoluções que introduziria na técnica musical e nos meios mecânicos e eletrônicos. Afinal, estes diversos aspectos eram inseparáveis na arte de Jimi Hendrix.
Gil Evans, nos anos 70, já um monólito vivo do jazz, resolveu dar uma resposta prática à questão. Gravou e lançou em 1974 o disco The Gill Evans Orchestra Plays the Music of Jimi Hendrix. Por inesgotável, nenhum artista poderia apostar em todas as direções possível que a obra de Hendrix sugere, mas não resta dúvida que o horizonte que Evans adota neste disco encontra justificativa na obra do guitarrista.
A despeito disso, é fácil concordar que uma das características mais visíveis na obra hendrixiana é a amplitude de sua música, mais notável ainda porque, em vida, trabalhou quase sempre com pequenas formações, em particular o trio básico de guitarra, baixo e bateria. Sua música sempre foi polifônica e, se pode dizer, orquestral. O cubismo musical de Hendrix sempre o empurrou a tocar um sem número de progressões ao mesmo tempo, antecipando, num contexto muito mais difícil tecnicamente, as estripulias que depois o aparato dos estúdios, a técnica do overdube, a aparelhagem eletrônica, permitiram fazer. Isso faz com que Hendrix assombre praticamente toda a produção pop das últimas décadas, que incorporaram e naturalizaram o que nele era invenção e novidade.
A abordagem orquestral e jazzística que Evans escolhe para reler faixas clássicas de Hendrix, portanto, não é estranha à própria versão original da obra. Ela já era orquestral e profundamente vinculada à improvisação jazzística, embora de outro modo.
Por outro lado, Evans estava longe de ser um músico convencional de jazz. Pianista virtuoso e, conforme o critério “marcogaspariano” de qualidade, nascido no Canadá, Evans foi protagonista de várias viradas na história do jazz. Foi no seu pequeno apartamento, no andar de cima de uma lavanderia chinesa, em Nova York, que, nos anos 40 se tramou a pequena revolução musical chamada bebop. Pelo quarto e sala passaram gigantes como Charlie Parker e Gerry Mulligan.
Pouco depois, Evans já estava em outra. Inaugurando um formato alternativo em bandas de jazz, o noneto, maior que a formação bebopeana padrão, o quinteto, mas sem chegar a ser uma big band, e introduzindo instrumentos esquecidos da origem do estilo, como a tuba, o pianista e band leader começava a moldar a próxima onda, o cool jazz, estilo baseado numa supervalorização das notas emitidas (ao contrário do cubismo do bebop, com seu Everest de notas por segundo) e voltado para a construção de climas (uma espécie de ambiente jazz). Para a empreitada antivirtuosística, Evans se juntou a Miles Davis, sua contraparte trompetista, desapegado de toda estabilidade e interessado em novas descobertas. Davis, como se sabe, acabou encarnando a voracidade experimental no jazz, tendo encabeçado as principais guinadas estilísticas que a velha música americana conheceu, do bebop ao jazz fusion e ao pop.
Evans se aventurou com Davis em parte desta trajetória, arranjando e conduzindo os grandes monumentos que o trompetista produziu nos anos 50. Depois, seguiram vias distintas, mas sempre, cada um a seu modo, persistindo na busca de novas feições para o estilo.
Assim, o interesse de Evans pela música de Hendrix não tem nada de estranho. É preciso ressalvar aqui que, diferentemente de Davis, o pianista não se interessava pelo que se pode qualificar de jazz fusion estrito. Não se tratava para ele de introduzir a energia e a eletricidade do rock na improvisação jazzística, mas, como se depreende da audição de The Gill Evans Orchestra Plays the Music of Jimi Hendrix, de ampliar o alcance da própria tradição jazzística. O que Evans ouvia em Hendrix era uma música de largo alcance, mas cujo encanto era ser produzida por uma formação (trio) que, em tese, limitava suas próprias possibilidades (o que, na prática, não acontecia, mercê da genialidade do guitarrista).
Ao ouvir o disco, a sensação que este ouvinte tem é a de que a intenção de Evans era fornecer a esta música “Larger Than Life” o ambiente, o espaço e os recursos para soar na grandiosidade adequada.
É fato conhecido que o próprio Jimi chegou a verbalizar a vontade de tocar com formações mais largas, com maiores possibilidades expressivas do que a banda de rock/blues. Alguns deduzem disso que Hendrix estaria caminhando para algo como o rock progressivo. Outros imaginavam que a riqueza rítmica de que lançava mão o conduziria para um terreno mais funky. O fato é que Evans via no jazz a possibilidade de oferecer todas estas possibilidades à música de Hendrix.
Mas no que quero bater pé aqui é na tese de que The Gill Evans Orchestra Plays the Music of Jimi Hendrix é um disco de jazz!
Desde 1969, se iniciaram as costumeiramente complicadas negociações para uma colaboração entre os dois músicos. Lembre-se de que estamos, aqui, na era em que as carreiras dos artistas estavam sob tutela de um emaranhado de gravadoras, editoras e diferentes distribuidoras, ainda mais em caso de carreiras internacionais. Finalmente, em meados de 1970, a coisa pareceu engrenar. Foram marcadas datas tanto para um encontro entre eles, como para algumas sessões preliminares com vistas, talvez a um disco, talvez a um show, ou a ambos.
O encontro foi rudemente cancelado em função da morte do guitarrista em Londres em setembro de 1970 (segundo Evans, “o encontro estava marcado para um domingo e ele morreu na sexta anterior”) e o projeto que envolvesse a execução da música de Hendrix por Evans pareceu destinado ao fundo das gavetas das coisas esquecidas.
Contudo, em 1974, Evans recrutou um naipe dos melhores músicos jovens e nem tão jovens do jazz, gente como David Sanborn (antes de fazer fortuna como astro muzak), Howard Johnson, Billy Harper e, claro, um guitarrista à altura da responsabilidade, John Abercrombie. A missão era mais modesta do que o projeto original, claro: rever as faixas mais blueseiras de Jimi num formato jazzy para formações de porte médio (19 membros). A concepção de Evans recusava a recriação melódica e se concentrava em tentar fazer a música de Hendrix soar de forma a mais ampla e espaçosa, mantendo a concentração genial do power trio, mas fazendo a sonoridade ecoar infinitamente.
As gravações do álbum foram precedidas de uma histórica apresentação no templo da música americana, o Carnegie Hall, em Nova York, sessão que se tornou lendária também por causa da cobertura feita pela Rolling Stone num clima “evento musical do século”. Nesta matéria, podemos ler a declaração de Evans acerca da empreitada: “pare um pouco para pensar no trabalho de Hendrix com as guitarras, sobre como era e é difícil tocar guitarra daquele jeito – o uso, o uso correto da eletrônica. Mas também sobre como para ele era um jeito natural de tocar. O que eu tento fazer é ter o jeito de Jimi tocar em mente ao fazer arranjos para suas músicas”.
Quer dizer, o disco que sucedeu ao concerto do Carnegie Hall é uma tentativa de produzir a sonoridade típica e pessoal de Hendrix, se ele fosse um músico de jazz. Por isso o resultado não deixa de ser desconcertante. Não se houve a música de Hendrix arranjada para orquestra de jazz, mas uma especulação prática de como Jimi soaria, com todas as suas idiossincrasias e pessoalidade, num contexto jazz.
Como na boa tradição do jazz, não houve enrolação no registro em disco. Bastaram três dias de sessões, de 11 a 13 de junho, nos estúdios da Columbia, para se cozinhar a obra, com tudo escrito em partituras, mas deixando bastante espaço para os solistas improvisarem. Muito mais tempo foi gasto por Evans na concepção dos arranjos, testados no concerto do Carnegie Hall e retomados nas gravações.
A obra é inteiriça. Não se trata de descreve-la faixa a faixa, mas podemos remeter o leitor/ouvinte a momentos decisivos que já começam na faixa de abertura, com uma execução suave mas intensa de uma rara balada do repertório de Hendrix, Angel. Se o ouvinte tiver chegado a pouco de outra galáxia e não conhecer a versão original, a tomará tranquilamente por um standard do jazz.
Em “Crosstown Traffic/ Little Miss Lover”, Evans une os dois elementos que se depreende dos originais de Hendrix, o lado jazzy e o jeito funky, compondo um momento empolgante, dançante até, com performances vocais e guitarrísticas que fazem jus ao homenageado.
A evanescente fusão de “Castles Made of Sand” e “Foxey Lady” faz gato e sapato do ouvinte, jogando de um lado para o outro, com suas paisagens tranquilas e com uma intensidade acachapante, mas que parecem dois lados feitos um para o outro.
Em “Up From the Skies”, a coisa “jazza” completamente, num arranjo que lembra os trabalhos de Evans com Miles Davis nos anos 50, principalmente algumas passagens de sua leitura para Porgy and Bess. Provavelmente a faixa que ouvidos roqueiros mais estranharão. Mas se você é um fã de Hendrix não pode se horrorizar com a levada sacudida e a conversão do psicodelismo original em quase uma peça de dança de salão. Enquanto, andando ao inverso, “1983 – A Merman I Should Turn to Be” leva o jazz para uma abordagem psicodélica.
Sem dúvida nenhuma, Jimi teria adorado a versão para “Voodoo Chile”. Evans pega pesado, numa fusão infernal do naipe de sopros e guitarras elétricas, temperada por um arranjo que não economiza no experimentalismo e nos joga na cara a total familiaridade da famosa faixa com o arranjo para tuba que percorre a execução, lotada de ruídos e apontando para um aparente caos. Recomendo ao roqueiro menos afeito ao jazz que comece por essa, que o disco será mais assimilável. Para uma versão ainda mais livre, tente achar Gil Evans Live 1986 – Unissued.
Mas, enfim, este guisadinho descritivo aí em de longe é capaz de dizer o que se sente ouvindo o disco. Vá a ele!
The Gil Evans Orchestra Plays the Music of Jimi Hendrix teve um grande número de reedições e pelo menos duas capas diferentes. O disco original saiu no Brasil no próprio ano de 1974. A primeira versão em CD foi editada nos EUA em 1988 pelo selo Bluebird da RCA (atual BMG), com o título reduzido para Gil Evans Plays Jimi Hendrix. Novas versões saíram em 1991, 1998, 2002, 2006 e uma recentíssima, em 2016, com faixas bônus, incluindo takes não aproveitados no lançamento original. Também o título original foi recuperado nestas últimas edições.
Track list
- Angel
- Crosstown Traffic/Little Miss Lover
- Castles Made of Sand/Foxey Lady
- Up from the Skies [Take 1 – Fita master original]
- 1983… (A Merman I Should Turn to Be)
- Voodoo Chile
- Gypsy Eyes
- Little Wing (Faixa bônus na reedição em CD)
- Up from the Skies [Take 2 – Alternativo] (Faixa bônus na reedição em CD)
Gravadas no Estúdio B da RCA, em Nova York em 11 de junho (faixas 4 & 9), em 12 de junho (faixas 2, 6 & 7) e em 13 de junho (faixas 1, 3 & 5) de 1974. Em 14, 25 & 28 de abril de 1975 foram realizadas as sessões para a gravação da faixa 8.
Músicos:
Gil Evans – piano, piano elétrico, arranjos e regência.
Hannibal Marvin Peterson – trompete, vocais.
Lew Soloff – trompete, flugelhorn, trompete piccolo.
Peter Gordon – Corne francês.
Pete Levin – corne francês e sintetizadores.
Tom Malone – trombone, trombone baixo, flauta, sintetizadores e arranjos.
Howard Johnson – tuba, clarinete baixo, contrabaixo e arranjos.
David Sanborn – sax alto, sax soprano e flauta.
Billy Harper – sax tenor e flauta.
Trevor Koehler – sax tenor, sax alto, fluata, sax barítono e sax soprano e arranjos.
John Abercrombie, Ryo Kawasaki – guitarrra elétrica.
Keith Loving – violão.
Don Pate – baixo acústico.
Michael Moore – baixo acústico e elétrico.
Bruce Ditmas – bateria.
Warren Smith – vibrafone, marimba, carrilhão, percussão latina.
Sue Evans – bateria, congas, percussão.
Caramba Eudes…
Texto fantástico. Vou até ler e novo. Uma mistura de análise, opinião contextualização e descrição.
Fiquei com vergonha dos que eu apresento aqui pro site. E o pior que o próximo é um meu!!!
Mais um texto para ser lido com prazer…
Quando Hendrix morreu, a guitarra se transformou na viúva mais cobiçada do rock. E não faltaram pretendentes. Desde o borra-botas Jeff Cooper, que em 71 gravou seu Tribute to Jimi Hendrix, um pretensioso mas interessante caça-níquel produzido pelo mesmo David Miller que já havia sacaneado Jerry Cole (escrevi a respeito semanas atrás), até o janota do Robin Trower, este sim um talento à beira da genialidade. Mas coube ao gentleman Gil Evans tratar a viúva com o devido respeito, pelo simples fato de que não tentou seduzi-la, mas sim tratar o defunto com as honras que ele merecia, ampliando seu legado ao invés de tentar toma-lo para si. Este “Plays” de Evans é talvez a melhor homenagem póstuma a Hendrix (digo talvez porque não conheço todas). E a matéria do Eudes, como sempre, é um tributo às letras roqueiras do Ceará.
Aproveitando a deixa do Marco, fica a pergunta: Robin Trower, chamado de “fantasma de Hendrix”, Stevie Ray Vaughan ou Uli Jon Roth, qual deles emulou melhor o Deus Negro da guitarra?
Pra mim, o melhor foi o Frank Marino. Considero que foi o que compôs as melhores canções nesse estilo hendrixiano, ainda que sua banda de apoio pudesse ser um bocado melhor.
Parabéns Eudes! Texto de alto nivel!
Superb!
Texto irretocável!