Discografias Comentadas: Lou Reed – Parte II
Por Alisson Caetano
Lou deixou de maneira definitiva sua marca na história da música nos anos setenta. Seu visual transgressor regado à atitudes desregradas, drogas e uma vida autodestrutiva fizeram com que sua reputação nos anos 70 fosse sempre alvo de publicidade constante. Algo que marcou de maneira intensa esta segunda fase de sua carreira foi o início de um de seus relacionamentos mais duradouros.
Rachel entrou de maneira intensa na vida de Lou e fez com que sua vida pessoal fosse alvo de críticas e exposição constante. A relação entre ambos foi frutífera e influenciou diretamente Lou em alguns de seus discos mais aclamados. É de surpreender que um relacionamento tão incomum pudesse ter se transformado em um dos mais duradouros de sua vida. Rachel significou para Lou uma espécie de desprendimento com normas e também serviu muito bem para Lou como uma espécie de porto seguro, um lugar onde Lou sempre poderia encontrar segurança e alguém que servisse de ouvinte para seus problemas e inseguranças, já que Rachel sempre manteve uma distância segura das coisas que Reed considerava verdadeiramente importantes.
Além de sua vida pessoal fervilhante, Reed forneceu alguns de seus trabalhos mais significativos durante este período, divididos entre ótimas canções de sua verve mais “rock básico” até belos experimentos com seus antigos ideais experimentais dos tempos de Velvet Underground.
Coney Island Baby [1975]
Bem recebido pela crítica e preferido por muitos de seus fãs, Coney Island Baby, mesmo tendo vindo após a afronta comercial anterior, teve subsídios suficientes por parte da RCA e acabou sendo um dos desempenhos comerciais mais satisfatórios da carreira de Lou. As primeiras composições para o disco haviam sido trabalhadas no começo do ano de 1975, dentre elas, “Kicks”, a faixa título, “She’s My Best Friend” e alguns rascunhos para “Dirt”, que só veria a luz do dia no vindouro Street Hassle. Essas primeiras canções acabaram sendo engavetadas por serem consideradas “cruas e negativas demais”, segundo os executivos. Isso fez com que Lou retornasse à estrada e só voltasse a trabalhar em composições para o disco em outubro do mesmo ano. Vale a pena denunciar alguns detalhes da vida de Reed neste período. Após o fim definitivo de seu relacionamento tortuoso com Shelly Albin, Reed encontrou sua nova musa inspiradora na figura de Rachel, mulher transgênero que conheceu em suas andanças pelos submundos de Nova Iorque. Reed fazia questão de deixar claro suas opções bissexuais e assumir um relacionamento homossexual foi uma decisão deveras impactante para a época. Outro fator que repercutia pesadamente em suas atitudes era seu vício pesado em anfetamina. Vivia praticamente o dia todo chapado, sua saúde vivia debilitada e isso piorava ainda mais sua já dificuldade em manter relacionamentos pessoais, mesmo que uma simples amizade. Voltando ao disco em questão, mesmo que à época, a vida pessoal e a saúde de Reed andassem em frangalhos, sua capacidade em compôr canções pop de rápida assimilação e letras diretas ainda mantinham-se intactas — méritos de sua época como compositor compulsivo na Pickwick Records, durante os anos 60 –. A produção do disco, à cargo de Godfrey Diamond, acertou a mão em todos os tons para as canções. Guitarras bem timbradas, som volumoso e a voz de Reed com o destaque devido. O que torna Coney Island Baby tão bom não tem relação alguma com inovações artísticas nem nada do tipo. Este é um de seus trabalhos mais bem recebidos por conta de grande qualidade geral de suas canções, escritas em um momento de grande inspiração e de descobertas pessoais. Os ares de rock exuberante e sexual de Transformer estão de volta, mas o conteúdo passa longe de tentar repetir os méritos daquela época, já que grandes clássicos como “She’s My Best Friend” — composta em seus anos no VU junto de Doung Yule –, “A Gift” e a faixa título falam por si só. Esta é uma das portas de entrada mais seguras para o universo de Reed. Bem composto e dono de ótimas melodias, é um ótimo cartão de visitas para quem não sabe muito bem por onde começar.
Rock and Roll Heart [1976]
Finalmente livre de seu contrato com a RCA, Reed enxergou a oportunidade de, finalmente, compor o estilo de música que o fizesse confortável debaixo das asas da Arista Records, à época uma iniciante no ramo musical, comandada por Clive Davis, responsável por convidar Reed pessoalmente para integrar seu cast. Com a motivação nas alturas, Reed empolgou-se para o registro de seu sétimo disco, ainda embalado pelo enorme sucesso proporcionado por Coney Island Baby. Essa confiança de Reed no material tornou a composição e finalização do disco um processo rápido. Ao todo, foram gastos 27 dias entre composição, gravação e mixagem final. Aqui foi também a primeira vez que Lou sentiu-se suficientemente confiante para tocar guitarra em estúdio desde o fim do Velvet Underground. Em uma entrevista da época, Lou declarou:
“Em outros álbuns, permiti que as pessoas fizessem o que desejassem; desta vez, fui sério e toquei o que queria. Em todas as faixas. Há muitas canções idiotas de rock no álbum, mas eu gosto de rock idiota. É difícil encontrar um guitarrista idiota e um pianista idiota; todo mundo gosta tanto de combinar técnica. Eu cumpri esse papel, porque eu toco de maneira muito estúpida“.
Ouvindo o disco, não é muito exagerado essa declaração, pois muitas das faixas, mesmo abertamente mais exuberantes em suas instrumentações, ainda tem os tão característicos ataques abrasivos das guitarras de Lou, como é o caso da faixa título, onde as guitarras entram apenas para dar um certo ar roqueiro à uma faixa que é, em essência, menos rock n’ roll do que o título diz. A recepção da crítica ao disco, entretanto, foi na contramão desta empolgação desenvolvida por Reed nos estúdios. Nick Kent, antigo crítico da NME, disse: “Não preste atenção a este disco a menos que você seja o tipo de pessoa que se empolgue ao assistir a tinta secando. Pensando bem, Rock and Roll Heart seria a trilha sonora perfeita para isso”. Não sou tão drástico contra este disco, mas é definitivamente seu desempenho artístico mais fraco até a data. Toda a energia e espontaneidade inerentes em todos os seus discos recentes se perderam em prol de faixas polidas e esmeradas em estruturas jazzísticas sem qualquer inspiração. Há faixas que se destacam no meio do tracklist, caso da boa balada “You Wear It So Well” e da curta “Vicious Circle”, simpática faixa guiada pelo violão. Porém, é pouco perto daquilo que Reed foi e ainda seria capaz de produzir.
Street Hassle [1978]
Antes de Street Hassle, a carreira de Reed começou a sofrer uma queda constante de popularidade. Impulsionado pelo fracasso crítico e comercial de Rock and Roll Heart e intensificado pelo seu vício em drogas, muitos chegaram a duvidar que Reed viesse a apresentar material digno de seus melhores momentos. Porém, o tempo começou a fazer justiça e a ajudar a projetar seu nome novamente nas paradas. ’78 vivia a efervescência do movimento punk e, por consequência, o catálogo do Velvet Underground começava a ser redescoberto. Patti Smith, Buzzcocks, Sex Pistols e todos os maiores astros da época pagaram reverência à figura de Lou Reed, o que acabou ajudando sua imagem a fortalecer-se novamente. Em todo este contexto, Street Hassle é facilmente o seu disco mais punk, desde a gravação levemente mais intensa à pose glamourosa e carregada de couro de Reed na capa do disco. Gravado na Alemanha usando uma inovadora técnica de gravação biauricular, desenvolvida pelo engenheiro alemão Manfred Schunke (que trabalharia futuramente no disco de estréia do Accept). Resumidamente, a técnica consistia em um modelo preciso do crânio humano feito em computador, com os mínimos detalhes da estrutura óssea e canal auricular. Os engenheiros posicionavam microfones em cada ouvido, tudo para captar com exatidão aquilo que o ouvido humano captaria. Outro desafio maior para os produtores foi a mixagem das músicas, já que boa parte do que está aqui fora registrado de vários shows por cidades alemãs. Street Hassle destaca-se em sua discografia por ter uma de suas interpretações mais sinceras e viscerais desde seu tempo com o Velvet Underground. Mais experimental e mais despido de sua fase glitter, possui uma bela coleção de faixas para órfãos de seus tempos mais enlouquecidos musicalmente. Em “Gimmie Some Good Times” Reed faz piada em sua letra com seu personagem Rock n’ Roll Animal em uma faixa estranhamente motivacional e com as guitarras faiscantes conduzidas por Lou. “Real Good Time Together” é uma faixa perdida dos últimos anos de Lou no VU, enquanto “Dirt”, sobra das gravações de Coney Island Baby, é facilmente um dos pontos máximos do disco em uma faixa cínica e estupendamente conduzida pela banda em ritmo marcial. A faixa que vende o disco, contudo, é “Street Hassle”. Seus 11 minutos — divididos em 3 partes — escondem uma bela faixa de ritmo repetido e um de seus momentos mais celebrados. Como curiosidade, o spoken world no meio da faixa ficou a cargo de Bruce Springsteen, que gravava, em um estúdio próximo, Darkness on the Edge of Town. Este é, a meu ver, um de seus trabalhos mais arriscados, meu disco favorito e um de seus registros mais variados e sinceros, exatamente por relembrar, mesmo que levemente, aquele Lou Reed experimental e desbravador dos tempos de Syracuse e Velvet Underground.
The Bells [1979]
Gravado novamente na Alemanha e fazendo uso das técnicas de processo biauricular usado em Street Hassle, The Bells foi o primeiro disco desde o Velvet Underground em que Lou compartilhou o processo de composição com outros membros de sua banda, chegando a dividir créditos de composição no encarte do álbum. À época, Lou vivia sob influência de vários artistas além do rock. Ornette Coleman e levadas jazzísticas marcam presença na parte instrumental, enquanto Edgard Alan Poe era uma espécie de espelho para Reed no processo de escrita. Essa abordagem mais avant-garde torna The Bells um disco polarizador. Por um lado, ele oferece muitas nuances e abordagens instrumentais dignas de atenção. Por outro lado, mostra faixas inconsistentes, enfadonhas e até mesmo confusas de se apreciar. A que abre o disco, “Stupid Man”, resume bem essa impressão geral. Os teclados ao fundo, as levadas cheias de quebras e uso de metais têm algo a dizer ao ouvinte, mesmo que a sensação geral seja de estranheza. Revezando entre músicas dançantes distorcidas (“Looking for Love”), experimentos falhos com nuances eletrônicas (“Disco Mystic”) e alguns experimentos jazzísticos interessantes (“The Bells”), The Bells é um disco esquisito e que pouco oferece de apreciável para ouvintes mais leigos de Reed. A recepção ao disco foi morna, gerando críticas até simpáticas ao conteúdo geral. Sugiro cautela na apreciação deste. Passa muito perto de ser um de seus discos mais fracos, mesmo que possua algumas passagens dignas de atenção redobrada.
Growing Up in Public [1980]
É preciso um saco enorme para aguentar os discos de seu período “moço comportado” de Reed. Recém-casado com a dançarina Sylvia Morales, Reed resolveu passar por uma mudança drástica em seu estilo de vida. Cortando todo tipo de substância minimamente tóxica de sua vida e renegando as atitudes homossexuais de seu passado com Rachel e o período de libertinagens na Factory, podemos concluir que Reed virou um “tiozão” na virada dos anos 70 para os anos 80. Infelizmente, sua música refletiu isso da pior maneira possível. Burocrático, sem carisma e sem qualquer música que possa ser pinçada como algum destaque, Growing Up in Public é um de seus discos mais infelizes, mesmo tendo um conteúdo lírico mais profundo e filosófico, onde divagava sobre seu momento pessoal e seu relacionamento amoroso. A fotografia da capa, retratando um Reed desinteressado e com aspecto abatido, é muito apropriada para o conteúdo musical registrado. Com muita boa vontade, você pode aproveitar as boas linhas de baixo registradas por Ellard Boles e alguns riffs interessantes em “Keep Away”. De resto, são canções enfadonhas onde Reed pareceu mais preocupado em construir uma imagem de bom moço e refletir sobre sua vida pessoal do que em compor boas composições.
O começo dos anos oitenta guardavam para Lou o início de sua estabilidade financeira. Seu casamento com Sylvia Morales foi o primeiro a trazer certa tranquilidade para a vida de Lou. Além de conselheira e ouvido para Reed, ela acabou se tornando sua empresária, gerenciando seus negócios e sua carreira. Na terceira parte de sua discografia comentada, alguns de seus discos mais celebrados.
Texto muito bom, Alisson!
Tem sido bacana ler essa discografia, me despertando algum interesse em dar novas chances à Lou Reed.
Abraço,
Valeu Ronaldo, continue lendo, ainda tem história pra caramba pra contar hahaha
Meu caro Alisson, conte-nos um pouco mais sobre esse relacionamento do Reed com o Rachel. Como se conheceram, o que ele era (o Rachel), etc etc. Não conheço nada do Reed pós-MMM (a não ser o Lulu), e suas resenhas estão me motivando a conhecer. Vlw
Existem poucas informações quanto a Rachel antes e até mesmo depois que Reed chutou ela da vida dele. O pouco que se sabe é que ambos se conheceram por noitadas em Nova Iorque, sendo ela uma frequentadora assídua de bares e boates da localidade. Não lembro se ela era prostituta ou coisa do tipo, tenho que averiguar isso quando chegar em casa.
Lou afirmou em alguma ocasião que o que chamou a atenção dele por Rachel foi “o completo desinteresse dela pelo que eu era e pelo que eu fazia”. Ela raramente se intrometia nos assuntos profissionais de Lou e sequer esboçava alguma expressão perante as músicas de Lou. Dizem algumas fontes que ela morreu durante os anos 90, mas isso também é uma incógnita.
Agora se quiser saber tudo sobre a vida do Lou Reed, recomendo que leia “Transformer, A História Completa de Lou Reed”, do escritor Victor Bockris, com edição nacional da Editora Aleph com um acabamento ótimo. Lá o escritor passeia por toda a vida dele, desde a adolescência, o VU até as gravações do Lulu e sua morte.
Blz, vlw
Eu sou suspeito! Mas gosto muito do “The Blue Mask” (1882), o melhor disco de antes de “New York”
Blue Mask é o primeiro da parceria com o subestimado Rob Quine. Não vou dizer o que acho agora pra não soltar spoiler.
A ideia de introduzir frases nos textos ficou bem legal, Alisson
Muito boa sua DC sobre o Reed, Alisson. Informativa e agradável de ler. E útil também, porque não é fácil se aventurar na compra de seus discos. Um é ótimo, outro é bom e os outros três são de difícil audição. E assim vai. Se não houver uma orientação, a cabeçada é certa. Outra coisa: nessa fase Reed mostra o que é ter atitude rock’n’roll, se enchendo de drogas e assumindo uma relação homossexual. Basta comparar com o que veio depois: cuecas de couro, cabelos cacheados, cara e bocas…
Depois disso ele acabou sossegando. Já tava com a vida ganha, reputação musical pavimentada e tudo mais. Chegou até a fazer comercial de motocicleta durante os anos 80.
Hehe… estava me referindo aos artistas anos 80 em geral. Muito som bacana, mas atitudes de atores de novela global. Salvo exceções, claro.
Oba!! Gostei muito!! Novamente meus parabéns!! Abs
“podemos concluir que Reed virou um “tiozão” na virada dos anos 70 para os anos 80. “Não só ele né. Plant, Gillan, Ian Anderson, Robert Fripp, John Wetton, Greg Lake, …, a lista é enorme
MUITO OBRIGADO, ALISSON CAETANO, POR ME FAZER OUVIR “Disco Mystic”. Que sonzeira desgraçadas de boa. Esse saxofone é de matar! Ouvindo o The Bells aqui, e por enquanto, um dos melhores discos de Lou Reed que já ouvi!! Depois comento mais sobre ele. É que me empolguei tanto com essa faixa que não podia deixar de dizer aqui. Que baita música!
Curti bastante o The Bells. A faixa-título é o suprassumo das mais altas qualidades que poderiam terminar MMM. Muito surpreendente. Entrou para minha lista de “Discos à comprar”. Valeu Alisson.
Mairon não cansa de ter gostos estranhos…
Para, que baita disco!!
“Disco, Disco Mystic”!! kkkk E pensar que eu tinhas todos esses discos em Lp… kkk
Puxa, eu acho Growing Up In Public muito legal!!!
A faixa que mais gosto de Growing é “Standing On Ceremony”
Que que tu fez com os LPs?
Vendi!! Naqueles acesso impulsivos em meados dos anos 90! Se arrependimento matasse…
Sou retardatário em termos de Reed. Primeira vez que ouvi falar dele foi numa entrevista do ator Ricardo Blat, lá pelo meio dos anos setenta, em que nomeava Lou como seu cantor predileto. A matéria (numa Comtigo destas da vida) falava que o ator gostava do “desconhecido cantor Lou Reed”.
Só vim ter um disco dele muito depois.
A grande maioria dos discos de Lou Reed dos anos 70 saiu no Brasil à época de seus lançamentos. Apenas Transformer, Berlin, MMM e Take No Prisoners e não foram lançados por aqui.
Era desinformação da minha parte mesmo, Zé.