Astor Piazzolla & Gerry Mulligan – Summit/Reunión de Cumbre [1974]: Tango-jazz Para Virar a Cabeça

Astor Piazzolla & Gerry Mulligan – Summit/Reunión de Cumbre [1974]: Tango-jazz Para Virar a Cabeça

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Por Eudes Baima

E lá vou eu de novo escrever sobre aquelas coisas obsessivas em nossas vidas de amantes da música. Conheci o LP Summit/Reunión de Cumbre nos anos de 1980, em casa de amigos. Nunca fui grande ouvinte de Piazzolla e de jazz, até então, salvo das derivações roqueiras deste último. Este disco é um daqueles que virou minha cabeça musical. Uma daquelas viradas produzidas, neste caso, em especial, pela canção “Years of Solitude”, a terceira faixa do álbum. Vamos a ele, então.

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Versão brasileira

O termo jazz fusion tem sido muitas vezes usado de maneira reducionista, para indicar músicos, bandas ou discos que ficam na fronteira entre as sonoridades do jazz e do rock. Mas o termo deve ser usado de maneira mais abrangente, para englobar a cornucópia de fusões sonoras que, aí sim, o espírito rock, que quebrou ortodoxias e fronteiras, permitiu realizar a partir dos anos 60: Jovem Guarda, Tropicália, Nueva Canción Cubana, Nuevo Tango, só para ficarmos na América Latina, tudo incorporou à tradição local guitarras elétricas e tonalidades eletro-eletrônicas em geral.

É já nesse cenário que se encontra a contundente obra de renovação do tango que Astor Piazzolla introduziu na música portenha a partir dos anos de 1950. Antes mesmo de um contato direto com músicos de jazz ou com a turma da “jovem guarda” argentina, Piazzolla já havia introduzido sonoridades alienígenas em sua renovação da ancestral (e com a mãe Àfrica em sua gênese) tradição do tango. Diga-se, para sermos mais precisos que o tango em si já vinha de uma existência internacional, uma vez que desde os tempos de Gardel o ritmo de origem platina já tinha invadido as cenas europeia e, em menor escala, norte-americana.

Piazzolla na França, cercado por inúmeros e jovens talentos
Piazzolla na França, cercado por inúmeros e jovens talentos

De sua parte, o jazz, em geral, e o personagem dessa nossa resenha, Gerry Mulligan, desde os anos de 1940 que flertavam com ritmos bárbaros, vindos do que o americano médio imaginava serem as selvas cubanas e brasileiras.

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Versão alemã

Nos anos de 1960 o mundo, então, plácido e indulgente do jazz foi estremecido pela sofisticação inesperada da bossa nova, uma música que os gringos adoraram mas que nem a pau conseguiam reproduzir, como mostra o famoso Getz-Gilberto, álbum em que o saxofonista americano confunde elegância com muzak e que é salvo pelo violão de João Gilberto e pela voz de Astrud Gilberto. Mas os jazzistas nunca deixaram de tentar entender o espírito da coisa. E entre os que mais tentaram está justamente nosso querido Mulligan.

Curiosamente, o jazz só respondeu à altura ao assédio estrangeiro com sua aproximação com o rock inaugurada por monstros sagrados do quilate de Miles Davis, Gil Evans e alguns outros. Ou seja, a colaboração entre Piazzolla e Mulligan, se não era inevitável, era pelo menos muito provável. A percepção de que o futuro da música estava justo na quebra das fronteiras, num internacionalismo multiétnico, era já comum a estes músicos de vanguarda, mas que, embora sofisticados, não eram estranhos aos ouvidos do consumidor médio. Ambos gozavam não só de prestígio, mas também de popularidade já na década de 1960. Até no Brasil Moacyr Franco invadiu as rádios com uma versão de Piazzolla, e Eduardo Ferrer, “Balada para um Louco (Balada Para un Loco)”.

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Versão americana

Summit, também conhecido em edições latino-americanas como Reunión de Cumbre, foi gravado em estúdios italianos (Milão) em sete dias, de 24 a 26 de setembro e entre um 1 e 4 de outubro de 1974, num ritmo, bem próprio das gravações de jazz, em que se tomaram poucos takes. Nesta mesma tradição, foram gastos antes várias semanas de ensaios e confecção dos arranjos. Alguém observou que a Itália era a casa de Piazzolla neste período e ele fez muitos registros no país.

Com sete das oito faixas de autoria de Astor Piazzolla (contra uma composta por Mulligan, “Aire de Buenos Aires”), que também se encarregou da direção musical e dos arranjos, o disco saiu mais com a cara do bandoneonista argentino, o que não quer dizer que a intervenção de Garry Mulligan não tenha sido decisiva para a sonoridade final da obra. Na verdade, Piazzolla escreveu os arranjos pensando no sax virtuoso do jazzista ianque.

Versão holandesa
Versão holandesa

Os músicos arregimentados foram todos egressos da cena jazz e jazz fusion italiana, alguns com colaboração com astros internacionais destes dois estilos. A instrumentação também revela uma opção pelas paisagens elétricas e eletrônicas como moldura para as composições.

Há uma banda para os arranjos de base, totalmente eletrificada (piano Fender Rhodes, órgão Hammond, duas guitarras elétricas, bateria e percussão), acrescida de um trio de madeiras (violino, viola e cello acústicos), além é claro dos dois solistas. É sobre esta base que Piazzolla vai propor suas melodias prenhes de estranhamento mas também de tradição tangueira e as duas estrelas do disco desenrolarão interpretações inesquecíveis.

Edição brasileira (vergonhosa) do final dos anos 80 em LP
Edição brasileira (vergonhosa) do final dos anos 80 em LP

Acompanhando a dupla, estão Angel ‘Pocho’ Gatti (piano, piano Fender Rhodes 73, orgão), Tullio De Piscopo (bateria e percussões), Giuseppe Prestipino (contra-baixo elétrico), Alberto Baldan e Gianni Ziloli (marimba), Filippo Daccò e Bruno De Filippi (guitarras elétricas), além de um trio de cordas, com Umberto Benedetti Michelangelo (violino), Renato Riccio (viola) e Enio Miori (cello).

O disco abre com um extraordinário tema chamado “Twenty Years Ago”. Soturno, lento e nostálgico. Mulligan sola sobre uma base mínima, seguido pela entrada altamente emotiva do bandaneon de Piazzolla, para em seguida, os dois instrumentos se alternarem na melodia principal, até a inesperada entrada de um piano acústico num desdobramento lindíssimo do tema central, tudo se encaminhando para uma combinação de solos em tom maior que traduz musicalmente o desespero da solidão urbana. Uma abertura chocante.

Piazzolla e Mulligan nos estúdios italianos
Piazzolla e Mulligan nos estúdios italianos

A seguir, “Close Your Eyes and Listen” é um tema tão suave quanto misterioso conduzido ao piano elétrico. O solo principal mais uma vez se alterna entre Piazzolla e Mulligan. Uma balada na tradição melódica do Antônio Carlos Jobim de discos como Matita Perê e Urubu.

Os dois temas iniciais, contudo, não nos preparam para o momento mais contundente do álbum, a melodia inalcançável de Years of Solitude! Provavelmente a faixa mais impactante do disco, uma melodia imortal, uma performance altamente emocional da banda no seu conjunto, e dos solistas em particular. Uma introdução mínima e percussiva prepara para a segunda parte, a melodia solada pelo sax de Mulligan com uma das harmonias ao órgão mais belas que já ouvi. Depois temos uma terceira parte, que acaba sendo a dominante na faixa, em que sax e bandeneon se alternam entre solo e harmonia, com um piano elétrico, vindo não sei de onde, mas que nos atinge direto no coração.

“Twenty Years After” tem uma ligação conceitual com a faixa de abertura e por isso é a entrada do lado B do LP original. Um tema mais duro, menos melódico, mas em compensação mais contundente. Uma marcação quase marcial com uso de timbales para marcar a “marcha”, sobre o que voa o sax de Mulligan.

Capa interna de Summit
Capa interna de Summit

Em “Aire of Buenos Aires”, Mulligan arma um desenho rítmico complexo, provê a base harmônica, e Piazzolla voa em solo de notas rápidas e sinistras, como se se aproximasse o clímax de uma trama policial. Ofegante!

Reminiscense é um tema jazzístico, de sabor fusion anos 70. Um tema melódico mas um tanto violento, de frases que parecem interrompidas. Urgência em forma de solos alternados de sax e bandaneon. A faixa confirma a ideia de que que o lado B do LP estava mais reservado a peças de maior teor jazzeiro, mesmo que a segunda parte introduza um melodia nostálgica e bela.

“Summit”, a faixa título de encerramento parece coletar num único tema as várias paisagens sonoras percorridas ao longo do disco. Sua introdução conserva o tom urgente das faixas do lado B, mas aqui o background rítmico e harmônico ríspido serve para emoldurar um lindo voo “saxofônico” que costura a faixa até o clímax da entrada do bandaneon de Piazzolla, ao qual se acrescenta alguns efeitos, digamos, psicodélicos. O fechamento dramático, como é próprio da alma do tango, faz jus ao passeio que os dois músicos vindos de mundos diferentes fazem pelas alamedas da música de meados do século XX: uma melodia arrebatadora!

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A dupla na Itália (Pizzola na esquerda, Mulligan na direita)

Summit/Reunión de Cumbre teve muitas edições em diferentes países, como comprovam as imagens que disponibilizei nesse texto, em vários formatos e com um enorme número de capas diferentes. O LP original saiu na Itália pelo selo Erre T.V., com o título Summit e as faixas com seus nomes em inglês.

Edição venezuelana
Edição venezuelana

O álbum também foi lançado em LP pelo selo holandês BASF, já com o encarte trazendo as faixas com seus títulos em espanhol. Curiosamente, a edição alemã, publicada pelo selo Atlantic, traz a lista de faixas em inglês, como na edição italiana, mas modifica o nome do álbum para Tango Nuevo. O selo Yare lançou o disco na Venezuela, também em formato LP com o título original traduzido para o espanhol, Reunión de Cumbre, enquanto o título Summit foi mantido na edição brasileira, saída pelo selo Pick Jazz. Todos os lançamentos em LP, com exceção da edição italiana original (1974) foram feitos em 1975.

Em CD, o disco foi reeditado, em diferentes países, inclusive no Brasil, em 1990 e, depois, em 2003 e 2004.

Track list

  1. 20 Years Ago
  2. Close Your Eyes and Listen
  3. Years of Solitude
  4. Deus Xango
  5. 20 Years After
  6. Aire de Buenos Aires
  7. Reminiscence
  8. Summit

16 comentários sobre “Astor Piazzolla & Gerry Mulligan – Summit/Reunión de Cumbre [1974]: Tango-jazz Para Virar a Cabeça

  1. Lembro que ouvi a versão nacional desse álbum, e apesar do exímio trabalho do Piazzolla, o disco em geral não me agradou. O estilo de tocar do Mulligan não bate nos meus ouvidos. O belo texto do EuDeus me fez ouvir de novo o disco, mas não consegui ficar encantado novamente. Lamento …

  2. Mas fica a pergunta, por que muitos lançamentos no Brasil não obedeceram o original americano/britânico. Bee Gees sofreu bastante com isso

        1. Que o Piazzolla ainda e minha preferência, só isso. Mas gostei muito do Rodolfo Mederos. Não conhecia

    1. Instigado pela sua indicação, cacei vídeos do Mederos, e notei que nos mais recentes, ele parece mais dedicado aos tangos e milongas tradicionais…mas ainda muito bom! Adorei sua versão de Adios Nonino, do Mestre.

      1. Em seus primeiros discos (os dois primeiros são divinos) Mederos ainda era discípulo confesso do Piazolla. Era sua maior influência, figura central de seu altar de sonoridades. Mais tarde ele passou a renegar seus primeiros trabalhos e, parece, achou sua praia.

  3. Sou um ignorante da música dos dois, juntos ou separados. Mas a fantástica caneta do Eudes está me oferecendo a oportunidade de mudar isso.
    Muito bom!
    Abraço,

  4. Gosto do pouquíssimo que conheço do Piazolla. Matéria interessantíssima. Valeu, Eudes!

  5. Pessoal, tem uma correção técnica no artigo. Na verdade, o disco conta com um trio de cordas (violino, viola e cello) , não com um trio de madeiras, como escrevi.

  6. Cara, o Piazzola foi o maior músico que as Américas produziram. Ponto final.

    Eu não conheço esse disco em particular, vou dar uma ouvida depois, mas o meu comentário ali em cima ainda se faz vigente mesmo que o disco seja ruim rs

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