Discografias Comentadas: Lou Reed – Parte III
Por Alisson Caetano
Os anos 80 foram tumultuados criativamente para Lou. Sua situação financeira manteve-se estável pela primeira vez em toda sua vida. Dava-se ao luxo de manter uma vida com certo conforto ao lado de sua mulher em uma casa em Nova Iorque, cercada por aparatos tecnológicos e tudo o que de mais avançado houvesse com relação a aparelhos musicais.
Por outro lado, seu casamento ia de mau a pior. A necessidade de estabelecer-se como um rockstar “das antigas” e manter dentro do armário seu passado bissexual tomou contornos obsessivos e até mesmo bizarros. Esse período influenciou sua música, assim como aconteceu em toda sua trajetória, seja para bem ou para o mal. Este ainda é o período mais negligenciado por desbravadores de seu catálogo. Ainda que com certa justiça (já que boa parte dos discos que lançou nesta década sejam tratam-se de seus mais fracos), algumas de suas músicas mais interessantes e alguns de seus trabalhos mais soltos pertencem a este período. Não se esquive de explorar o trabalho de Reed nesta período e confira o saldo geral de Lou nos anos 80.
The Blue Mask [1982]
Todo trabalho considerado essencial de Reed possui uma figura de peso por trás, alguém que conseguiu compreender sua mente louca, não contrariando-o e também não brilhando mais que ele. John Cale e David Bowie haviam sido estas pessoas para Lou no passado, e mais um entraria para este seleto grupo de pessoas. Robert Wolfe Quine, apesar de desconhecido em ampla escala, já havia trabalhado em discos bastante interessantes, como o seminal Blank Generation, do Richard Hell and The Voidoids. Sua figura não o ligava de forma alguma à um rockstar, apenas seus dotes incontestáveis com uma guitarra. Convicto do desempenho muito abaixo da média que obteve em Growing Up in Public, Lou resolveu mudar completamente de ares. Com o incentivo de seu novo parceiro de 6 cordas, dispensou toda sua antiga banda, rescindiu seu contrato com a Arista e retornou à RCA (o que fez a RCA assinar um novo contrato com Reed ainda é um mistério). The Blue Mask foi concebido em um incomum clima brando e de grande camaradagem entre Lou e Quine. Ambos viviam trocando ideias por mensagens telefônicas e por fax diariamente. Não raro, passavam grandes tempos juntos na casa de Reed junto de Sylvia discutindo métodos de gravação e experimentando composições. Ainda que este nunca tenha sido o clima costumeiro para a composição de suas obras consideradas seminais, acabou funcionando magistralmente, já que este foi o respiro para a carreira de Lou, que passava por um longo processo de ostracismo criativo em uma sequência de dois dois seus discos mais equivocados. Gravado espontaneamente em pouco mais de dois takes em um enorme estúdio utilizado por orquestras sinfônicas em Nova Iorque, foi o primeiro disco que contou com Reed creditado nas mixagens desde Street Hassle. Logo de cara o caráter espontâneo e solto do registro se deixa observar. Suas canções esbanjam autenticidade, frescor e o mais importante de tudo, sepultam de vez o infame Animal Rock n’ Roll, personagem que Reed lutava a anos para se livrar (ainda que a reinterpretação da capa clássica de Transformer aponte o contrário). Encorajado e confiante em seu ofício de guitarrista, Lou nos proporciona alguns de seu desempenho mais sincero em anos. O aspecto geral é o de um disco bastante acessível e de clima brando, ainda que os recorrentes ataques abrasivos da guitarra de Reed deem o ar da graça em alguns ótimos momentos. Indo de músicas carismaticamente suaves e afáveis, como a bela “The Gun”, à rock viscerais brindados por duelos faiscantes entre Quine e Lou, como na clássica faixa título. Observando como um todo, The Blue Mask é seguramente o disco mais honesto e bem composto de Reed em muito tempo. Um de seus trabalhos mais equilibrados, bem executados e de extremo bom gosto, pode ser encarado como um renascimento para Lou e também como outra porta de entrada para o universo reediano.
Legendary Hearts [1983]
Legendary Hearts pôs fim na parceria criativa entre Lou e o guitarrista Rob Quine de maneira definitiva. Os reviews da época, especialmente os que diziam respeito às apresentações da banda de Reed em turnê de divulgação do The Blue Mask, rasgavam elogios à figura de Quine e sua absurda qualidade técnica ao interpretar tanto as canções atuais quanto as canções clássicas de Lou. Isso deixou Reed em uma situação tão desconfortável — sendo mais direto, enciumado — que o mesmo fez de tudo para aparecer o quanto mais fosse possível em seu próximo registro. Para isto, Lou fez questão de ter participação ativa no processo de masterização e produção de Legendary Hearts, o vigésimo disco de sua carreira solo. Quando Quine recebeu a fita master do disco, a destruiu em frente a sua casa com um martelo em um acesso de fúria pelo que Reed fez com a produção final, fazendo-o prometer nunca mais trabalhar com ele em sua vida. Era a mesma história que já havia acontecido muitas vezes antes se repetindo: Lou sabotando parcerias e amizades frutíferas por pura loucura e ciume desvairado. Quine ainda voltaria para dar conta da turnê do disco seguinte, mas sentiu-se tão desconfortável na posição de tocar junto de seu sabotador que preferiu afastar-se em definitivo da vida de Lou. O que realmente acontece com Legendary Hearts é que as guitarras de Quine estão completamente bagunçadas no registro. O som de todos os instrumentos e em maior grau, a voz de Reed, saltam tanto nas faixas que acabam encobrindo muito do trabalho feito por Quine aqui. Analisando com atenção, é notável que a qualidade deste material é tão bom quanto The Blue Mask, com o pequeno contratempo da produção equivocada. É talvez um de seus discos mais ecléticos, onde abraça várias vertentes sonoras que Lou já trabalhou por toda sua carreira. A abertura com tons soft rock da faixa título já escancara o quão estranha é a produção. Não há um equilíbrio, até mesmo o som de baixo varia constantemente na mesma música. Mas para além da produção, o disco entrega ótimas canções para qualquer tipo de fã de Reed. Há ótimos rocks simples (“The Last Shot”, “Pow Wow”), baladas sutis com a interpretação perspicaz de Reed (“Rooftop Garden” e “Make Up Mind”) até faixas inclassificáveis, mas cativantes, caso de “Turn Out the Light”, minha favorita do disco por razões que desconheço, devo confessar. Alguns mais exigentes irão reclamar da produção, como deixei claro até aqui. Mas se você não se preocupar tanto com estes empecilhos técnicos, Legendary Hearts se mostrará uma gratificante experiência.
New Sensations [1984]
Há de se convir que os discos lançados por Reed nos anos 80 são seus menos interessantes. O clima dentro da banda — especialmente entre Lou e Rob — já havia se tornado quase insuportável. O relato de um amigo próximo à Rob diz um pouco sobre o período:
Quine odiou cada minuto que tocou com Lou após Legendary Hearts. Ele pensava que Lou estava perdendo a noção. O desentendimento deles tinha a ver com a megalomania de Lou, com o roubo de crédito. Lou gostava de humilhar Quine. A música tinha problemas reais. Embora ele adorasse Quine e o usasse, era óbvio que sentia inveja dele como guitarrista. Se Quine tivesse uma ótima ideia, Lou ficava com inveja.
Depois de foder com sua frutífera parceria com Rob Quine — mandaria-o embora de sua banda dois dias antes de iniciar as gravações para o disco seguinte –, Reed colocou nas prateleiras um disco que, no melhor dos elogios, pode ser chamado de medíocre. New Sensations parece um grande apanhado de canções new wave bobas embaladas por uma produção vigorosa, mas sem característica. É sempre interessante enaltecer o bom trabalho de baixo, uma das coisas que mais saltam aos ouvidos em praticamente todos os discos de Reed. Fora isso, Lou arrisca alguns fraseados de guitarra, mas pouco inspirados e sem um componente de peso para fazer o contraponto sempre necessário e presente em seus melhores momentos. O uso mais intenso de teclados é uma novidade, mas acabou deixando as músicas com aspecto datado para uma apreciação atual. Com alguma boa vontade e bom humor, você pode salvar algumas faixas alegres para embalar um dia mais animado, como as agitadas “Endlessly Jealous”, a funky “My Red Joystick” e a motivacional “Doin’ the Things that We Want To”. Fora isso, o disco passeia entre arremedos de Rolling Stones em sua fase funk (“Turn to Me”), new waves forçados e sem brilho (“I Love You, Suzanne”, single principal do disco) e composições apenas ruins (“New Sensations”).
Mistrial [1986]
Mistrial consegue a proeza de soar mais burocrático, previsível e irrelevante que New Sensations, que se salvava por algumas boas composições. O grande problema de parte do catálogo oitentista de Reed é que muitas destas músicas tornaram-se ultrapassadas muito rapidamente. Teclados cafonas que estão presentes em qualquer disco de synthpop/new wave “qualquer nota”, uma necessidade em criar ganchos melódicos fáceis e talvez o simples fato de Lou não estar em seus melhores momentos criativos contribuem para a completa falta de maiores atrativos neste que considero o pior disco que Reed compôs em sua carreira. A credibilidade de Reed perante a crítica também não era das melhores. Em algumas declarações pouco elogiosas, alguns diziam que Reed era “um ex-roqueiro acabado que não conseguiria encher nem a minha garagem com fãs pagantes”. Essa torrente de descaso deve-se pela carona pega por Reed em várias turnês musicais em prol de atos sociais, como a turnê de 25 anos da Anistia Internacional, o Farm Aid e o Sun City, o qual dividiu o palco com outros astros em voga na época, como o U2 e Sting, atitude que muitos viam como oportunismo para divulgar seus trabalhos pessoais. Como fato curioso, o videoclipe para o single “No Money Down” — uma música vergonhosa levada por batidas de bateria eletrônica e teclados ridículos — teve seu vídeo vetado pela MTv por ser considerado violento demais. À época, o disco foi recebido com total descaso pela crítica e foi um completo fiasco nas vendas. Na maior das boas vontades, recomendo para fãs de synthpop e rock eletrônico oitentista. Se não for seu caso, deixe Mistrial de lado sem muita culpa.
New York [1989]
Qualquer um mais incrédulo diria que a carreira de Reed já havia ido para o brejo em 1989. Apesar de ter começado a aproveitar a consagração de sua importância histórica na música, seus 3 últimos lançamentos eram qualquer coisa, menos relevantes. A crítica tinha consciência disso e não perdoou a chance de jogar a pá de cal na carreira de Lou. Glenn Branca, um dos mais importantes músicos da cena underground norte-americana nos anos 80, disparou contra Lou de maneira ácida:
Bon Jovi fez New Jersey e Lou Reed fez New York. Dá um tempo! Lou Reed está morto há, no mínimo, dez anos. Isso é um simulacro, não é uma pessoa real!
Dentre turnês com grandes astros da música pop e comerciais de motocicletas, Reed começou a preparar aquele trabalho que o traria de novo aos holofotes, e não com um disco qualquer, mas aquele que muitos consideram um de seus desempenhos mais sinceros desde os tempos de Velvet Underground. A superfície de seu conteúdo revela um disco rústico, simples e focado naquilo que Reed mais teve prazer em fazer durante toda sua vida: rock simples. Por trás dos instrumentos registrados, estão alguns músicos que merecem destaque. Mike Rathke comanda as seis cordas no intuito de emular as características mais desleixadas e viscerais de Lou. O baixista Rob Wasserman é a mão técnica que todo disco de Lou teve, enquanto Fred Maher e Moe Tucker revesam-se na bateria (Moe mais como uma percussionista de batidas primitivas). O maior atrativo de New York é a força de seu conteúdo lírico. Aqui ele faz valer seu lado de poeta das ruas em versos sobre a cidade que sempre fez questão de estampar seu orgulho em viver nela. Sua versatilidade como intérprete musical vem de longa data, mas é aqui que Lou investiu com força total em spoken words, preferindo simplesmente falar as letras do que as cantar. Para muitos, é um artifício cansativo e estranho de apreciar. O intuito por trás desta técnica é exatamente dar total foco no conteúdo lírico das letras, e com uma produção evidenciando ao máximo o trabalho vocal de Lou, sacramentam o intuito principal de New York: o de ser um álbum de poesia musicada. Sobre o processo de composição, Lou comentou:
Eu passei quase três meses escrevendo, e tentei cercar as palavras da maneira correta para conseguir que o ritmo delas trabalhasse do jeito certo contra a batida, e conseguir as nuances nos vocais para que os ouvintes pudessem escutá-las — essa foi a raison d’êntre desse disco. Essa é minha visão do que um álbum de rock pode ser. Vamos colocar assim: estou escrevendo para uma pessoa educada ou autodidata que alcançou certo nível. Não pretendo que New York atinja gente de 14 anos.
New York não apenas ajudou Lou a respirar dentro de sua carreira solo, como também o catapultou de volta às grandes mídias, fazendo-o aparecer em capas de revistas e chamando a atenção de críticos da grande mídia. Alguns poucos ainda guardavam suas ressalvas quanto ao trabalho, mas em sua grande maioria, não passavam de críticas infundadas ou pura implicância. Por trás da musicalidade rascante e simples de clássicos como “Dirty Blvd.”, “There Is no Time” (em uma rifferama de respeito) e a country “Sick of You”, revela-se um de seus discos mais ricos e de apreciação mais refrescante após anos de discos completamente dispensáveis. Certamente um disco de apreciação obrigatória para amantes de rock poético e para apreciadores de um rock n’ roll bem tocado.
Muito bom, Alisson. Lembro quando saiu New York. Foi bem isso que você descreveu.
Cara, que discografia extensa! Não imaginava que o Lou tivesse lançado tantos discos.
Lembro-me quando vi pela primeira vez o clipe “No money down” nos idos de 86 ou 87. Ele me apavorou. O clipe nunca esqueci. Mas a música…
Beleza!!
Ola. Achei que você falou pouco do New York….Disco perfeito, na minha opinião o melhor disco de Lou.