Caravela Escarlate – Rascunho
Por Mairon Machado
* Imagens do facebook oficial da banda
Muitas vezes, quando recebemos um álbum para ouvir, olhando pela capa e pelo nome das canções criamos pré-conceitos que quase sempre tornam-se reais a partir do momento em que a música começa a sair das caixas de som.
Pois Rascunho, o primeiro álbum do grupo Caravela Escarlate, foi-me de tamanha surpresa em relação a capa que não consegui conceber nenhuma imagem musical a partir da mesma, e somente quando dei o play no CD da dupla Ronaldo Rodrigues (órgão, sintetizador e teclados) e David Paiva (baixo, craviola, guitarra, viola de 12, violão de aço e sintetizador) que o desbunde pegou geral.
Jamais imaginaria que um álbum sem bateria, baixo ou vocais, levado apenas por guitarras e teclados, causaria-me tanta sensação de nostalgia, com referências a nomes consagrados do rock progressivo, e com uma tamanha qualidade melódica exalada pela dupla.
O grupo foi formado em 1988, mas encerrou as atividades logo depois. No início da década atual, David uniu-se a Ronaldo e Tadeu (bateria), e retomou o Caravela, que ainda contou com Henrique Moreira na bateria, até passar por um hiato de alguns meses no final de 2015.
Foi então que Ronaldo e David decidiram retomar as gravações desse EP / CD, por conta da saída de Henrique. Desde então, a dupla passou a experimentar um novo formato, explorando possibilidades eletro-acústicas, diversidade de instrumentos, timbres e cruzamentos entre rock progressivo e MPB. O resultado foi lançado em julho desse ano, e não podia ser nada no mínimo Maravilhoso.
O dedilhado aflito do violão em “De Sol a Sol” nos apresenta uma faixa delirante, onde a guitarra de David possui uma distorção similar a de Sérgio Dias nos tempos de Tudo Foi Feito Sol (1974), e com a entrada de Ronaldo, rapidamente nos vimos viajando com a Caravela para a São Paulo do início da década de 70, quando o rock progressivo explorava instrumentos, harmonias, combinações melódicas e técnicas musicais com o mais puro perfeccionismo, levados por um delicado violão, que também abrilhanta a introdução de “Hipocampo”, faixa mais soturna, onde os efeitos dos teclados de Ronaldo nos lembram uma flauta, e fazem a Caravela voar para Minas Gerais no final da década de 70, e nos trazer a imagem de um Recordando o Vale das Maçãs preenchendo o ambiente, tendo como destaque o piano enigmático e sutil de Ronaldo.
Com “Metamorfose”, a Caravela volta no tempo, continuando em Minas, agora com claras referências ao Clube da Esquina, sendo impossível não sentir um cheiro de queijo e pinga com o moog avançando pelo seu cérebro na companhia de um vigoroso dedilhado de violão. Com “Circo Imaginário”, David traz o violão para a frente do aparelho de som, em um espetacular dedilhado clássico que apresenta uma viagem musical extraída por Ronaldo em seus sintetizadores, das quais as referências que a Caravela vai buscar é desde as profundas cavernas italianas de grupos como Le Orme e Formula 3, até a habilidade nacional de artistas como Turíbio Santos e Raphael Rabello.
A partir de “Cavalo de Fogo”, a Caravela passa a navegar nos mares britânicos, trazendo referências dos dois antológicos discos de Steve Howe (Beginnings – 1975, e The Steve Howe Album – 1979) seja no Maravilhoso emprego do mellotron, seja no fantástico timbre de guitarra que se assemelha e muito ao que o guitarrista do Yes fez nesses discos, trazendo uma aura clássica incomum na música atual. Retornamos para o Brasil em “Maino”, onde a viola é o centro das atenções junto a um sintetizador que emula sons do sertão nordestino e hipnotizam o corpo, colocando-o a dançar no meio da sala de maneira sem igual, sendo que o que Ronaldo faz com o moog, na linha da introdução de “Xanadu” (Rush), é simplesmente de chorar.
“Pedra do Sal” nos traz lembranças do pessoal do Clube da Esquina, mas dessa feita da turma de Beto Guedes, Toninho Horta, Danilo Caymmi e Novelli, só que com fortes pitadas Genesianas, e o álbum encerra-se com “Século XIV”, obra clássica de David ao violão regada por psicodélicos acordes de moog e sintetizador, onde novamente, as passagens no estilo “Xanadu”, mescladas com a guitarra com timbres a la Steve Howe são de emocionar.
Rascunho deve ser tratado não como o nome sugere, mas como uma obra definitiva, que irá ser exaltada nos anais do rock progressivo brasileiro pela sua capacidade de tocar a alma, o coração e a mente, de forma metódica e perfeitamente apaixonante.
Ele pode ser adquirido junto ao facebook oficial da banda, sendo que o lançamento oficial é complementado com um perfume tendo a marca da banda e uma camiseta. Ficamos nós, fãs imediatos da Caravela, no aguardo do lançamento em formato de LP, e que a Caravela continue sua viagem por águas límpidas e tranquilas como a música desse seu álbum de estreia.
Tracklist:
1. De Sol a Sol
2. Hipocampo
3. Metamorfose
4. Circo Imaginário
5. Cavalo de Fogo
6. Maino
7. Pedra do Sal
8. Século XIV
Fico imaginando se as pessoas por aqui já se deram conta do privilégio que é ter o Ronaldo como colega e “consultor”. Não só pelo que ele escreve, pois escrever é simplesmente combinar palavras, com maior ou menor coerência, com muita ou pouca convicção, com conhecimento ou sem nenhuma autoridade. Mas percebem como isso é pequeno comparado ao cara que combina notas para fazer arte, que não desperdiça talento e pega carona na sensibilidade para desbravar caminhos que nos revelam a beleza da alma? Dá uma inveja danada. Não ouvi esse EP do Caravela. Só a música que está disponível no Youtube. E depois de ler essa ótima resenha do Mairon, fiquei pensando se um leitor distraído, desses de primeira viagem aqui na CR, não concluiria que as influências apontadas pelo escriba nas diversas músicas do EP revelam um músico sem personalidade. E me senti no dever de acrescentar que um músico limitado copia seus ídolos, já o talentoso é inspirado por eles e, caso do Ronaldo, nunca faz igual. Algumas vezes comete o prodígio de fazer até melhor, como é prova os vários projetos desse tecladista fantástico. Parabéns ao Ronaldo e ao seu colega monstruoso David Paiva. E desejo bons ventos e muitos mares para a Caravela Escarlate.
Fiquei até sem ar com esse comentário…nem o mereço.
Abraço,
Caramba…pelas referências que o Mairon citou aos descrever as músicas eu já gostei sem nem ter ouvido. Precisava mesmo comprar um perfume…rs
Todos vocês também devem escutar o som do Arcpelago, tão bom quanto!
Baita disco também. A presença marcante do baixão de Jorge Carvalho aumenta ainda mais as qualidades dessa banda!
Em uma época em que tudo soa descartável e estúpido, no campo da música mainstream, é uma alívio ver que ainda há músicos de verdade mantendo acesa a chama do rock progressivo. É claro que vou embarcar nessa caravela!
Muito obrigado pelos comentários, pessoal, e obrigado ao Mairon por essa resenha, que muito nos orgulha!
Ontem mesmo estávamos em um ensaio, no qual voltamos a trabalhar no formato trio e estamos adaptando algumas músicas desse EP com intervenções de bateria e percussão, para shows que faremos em novembro e dezembro no Rio e em São Paulo.
O álbum foi lançado digitalmente pela plataforma CD Baby e está disponível em todos os principais serviços de streaming, podendo ser ouvindo na íntegra – Spotify, Itunes, Deezer, Tidal, etc.
Abraços,
Ronaldo Rodrigues
Ah, e gostaria de esclarecer porque o disco chama “Rascunho”. Nós tínhamos as músicas que seriam parte de nosso primeiro disco, em trio, que desde 2012 estamos lutando pra gravar e ainda não conseguimos. Até a arte do disco já está pronta e não conseguimos concluir as gravações e lançá-lo. Daí, um tanto desiludidos por mais uma tentativa frustrada com o baterista que estava conosco, no fim de 2015, resolvemos gravar outras músicas, trabalhar em novas composições, mesmo sem ter ainda um novo baterista. Para a capa deste trabalho, usamos o rascunho da arte da capa do trabalho que estávamos gravando (cujas gravações retomaremos em breve), daí o nome. Esta capa é o rascunho da capa do nosso próximo disco.