Tralhas do porão: Three Man Army
Na pequena cidade de Ilford, em Essex, Inglaterra, um rapaz chamado Paul Anthony Curtis gerenciava uma barbearia. Além de manipular as tesouras, ele se divertia tocando guitarra. Pelos idos de 1963, um de seus clientes também começou a aparecer com uma guitarra em mãos, para tocar e cantar com seu barbeiro. O cara se chamava Brian Morris e os ensaios aconteciam após o expediente de Paul, nos fundos da barbearia, com frequência cada vez maior. Ambos decidiram mudar seus caminhos e seguir pelos ramos da música. O pai de Paul Anthony também já estava adentrando naquele território – Sam Curtis começou a agenciar o próprio filho, levando-o a tocar com bandas locais para bases norte-americanas na Alemanha e na França. Os negócios começam a prosperar para Sam Curtis, que passa a atuar com gerente da tour de Gene Vincent, um pioneiro do rock, na Inglaterra. Vincent precisava de uma banda para se apresentar e Sam Curtis, por razões óbvias, convoca seu próprio filho como guitarrista de apoio, junto dos músicos que o acompanhavam nas empreitadas pela Alemanha e pela França, o The Londoners. O amigo de Paul, Brian Morris, também fazia parte do time. A passagem de Gene Vincent foi rápida e bem sucedida e, nesse embalo, os The Londoners voltam para a Alemanha e se apresentam com sucesso no Star Club de Hamburgo (famoso local que residiu os Beatles na Alemanha e ajudou a criar a reputação da banda como um live act de respeito).
Voltando a Londres e tentando fazer as coisas acontecerem, viram que o nome The Londoners não era uma boa escolha. E por volta de 1965 havia uma concorrência brutal no rock inglês – Beatles, Rolling Stones, The Who, Kinks. A banda se rebatiza como The Knack (nome tirado de um filme britânico da época) consegue um contrato com uma gravadora, grava vários compactos até 1967, mas nem de longe alcança feitos similares aos grupos que se agigantavam na Inglaterra.
O irmão prodígio de Paul, Adrian Gurvitz
Brian Morris dá um tempo com o The Knack e Paul Anthony Curtis decide remodelar o grupo e sua proposta sonora, agora mais psicodélica e ousada, assim como muitos outros grupos estavam apostando. Essa nova proposta surge com o imponente nome “Gun”. Entre 1967 e 1968 o Gun teve muitas formações diferentes, tendo contado inclusive com Jon Anderson (futuro vocalista do Yes) por um período muito breve. O Gun aparecia com muita frequência no Speakeasy, clube muito famoso para o pessoal do underground londrino (Pink Floyd, Soft Machine, T Rex, etc), e ia criando um ligeiro séquito de admiradores. Em 1968, o Gun deixa de ser um quarteto (já havia sido até um sexteto) e passa a ser um trio. Paul Anthony Curtis, agora usando a alcunha de Paul Curtis convida seu irmão Adrian Curtis, que estava se tornando um pequeno talento na guitarra, para assumir o posto único de guitarrista da banda, adota o baixo como instrumento principal a partir dali e compõe o time com o baterista Louie Farrel, que já estava na formação anterior da banda.
Assim, o Gun surgia como uma força underground no formato power-trio, lendo e relendo a cartilha que estava sendo escrita por Jimi Hendrix Experience e Cream. Ronnie Scott, lendário músico de jazz local, estava se tornando empresário e descolou uma oportunidade para o Gun gravar seu primeiro disco através da CBS. Logo de cara, com o lançamento de seu primeiro disco autointitulado (a capa foi desenhada por Roger Dean), o compacto com “Race with Devil”/”Sunshine” vira hit na Inglaterra e a banda começa a aparecer em semanários musicais e programas de TV por toda a Europa. “Race with Devil” tem sua ponta de contribuição para a história do desenvolvimento do hard/heavy rock, como uma das canções mais pesadas daquele ano de 1968 e sendo reinterpretada por diversas bandas de rock pesado ao longo dos anos.
O Gun prosseguiu até o ano seguinte, com o lançamento do álbum Gunsight, que não foi bem sucedido. A situação foi ficando apertada e a CBS via-se descontente com o desempenho do disco, que não emplacava. Assim, o Gun se desmonta no fim de 1969. Adrian Curtis parte para os EUA, para tocar na banda de Buddy Miles (que estava em ascenção depois de ter tocado com o Electric Flag e Jimi Hendrix) e Paul Curtis volta a trabalhar em novas composições com seu ex-freguês, Brian Morris, agora atendendo por Brian Parrish, que também estava radicado nos EUA. A dupla Paul e Brian é apresentada a George Martin, produtor dos Beatles, que estava se aventurando em lançar a própria estampa. Empatia de ambos lados, contrato assinado e a dupla consegue lançar um álbum, que saiu no início de 1971. Paul Curtis agora passa a atender também pelo acrônimo Paul Gurvitz. O disco sai como Parrish & Gurvitz e é um bonito trabalho de inspiração folk, com ótimo trabalho vocal, mas que simplesmente passou batido na época de seu lançamento. A dupla chegou a rodar nos EUA com uma banda de apoio e um segundo disco começou a ser gestado. Contudo, a carroça continuou desandando e o projeto foi desfeito. Os músicos que acompanharam a dupla depois foram recrutados por Peter Frampton, que estava planejando sua saída do Humble Pie naquela época.
Paul retomou sua parceria com o irmão Adrian, que tinha voltado dos EUA para a Inglaterra. Trabalhando novas composições, os dois embarcam novamente no rock pesado e buscam um baterista para voltar ao formato power-trio. Mesmo sem ter encontrado um baterista fixo nesse início, eles fecham um contrato com uma pequena estampa inglesa, a Pegasus Records, e se batizam como Three Man Army. Sem alguém fixo no posto de baterista, ensaiam as músicas no estúdio por horas a fio com bateristas convidados – entre eles o já citado Buddy Miles, Carmine Appice (Cactus) e Mike Kellie (Spooky Tooth). Mike Kellie foi quem gravou a maioria das faixas do trabalho de estreia, batizado de A Third of a Lifetime.
O disco de estreia oferece um rock extremamente cativante, com destaque para todo o instrumental, bons vocais e solos de guitarra venenosos. Ou seja, é uma síntese do que hoje é mais cultuado em termos de rock setentista. “Butter Queen” já começa a mil por hora, com guitarra e baixo se degladiando; “Daze” e “Nice One” trazem uma malandragem que o rock nunca mais teve depois dos anos 70; “A Third of a Lifetime” é um instrumental digno de lágrimas, com uma orquestração tocante e um violão destroçador de corações; “Three Man Army”, a faixa, apresenta um tipo de composição que viraria quase que uma marca da banda, com um certo apelo pop em meios a riffs de guitarra marcantes. O disco todo é repleto de boas composições. Todos os riffs de guitarra tem uma razão de ser dentro do esquemático quebra-cabeças sonoro da banda. Nada parece deslocado, sendo permeado constantemente por vocais agradáveis e linhas vocais que captam a atenção do ouvinte.
O primeiro álbum da banda passou sem muito alarde pelo mainstream dos dois lados do Atlântico. Poucas resenhas, sem aparições na TV, sem hits estourados (apesar de o que disco tinha material propício para isso) uma divulgação de pequena difusão pela Pegasus e uma concorrência brutal na seara do rock pesado – Led Zeppelin e Deep Purple já dominavam o espaço e continuavam em franca ascenção, com muita gente pesada vindo na cola também. A maior dificuldade, contudo, parecia ser a ausência de um baterista fixo, o que os impedia de negociar adequadamente uma tour. Os irmãos Gurvitz continuaram batalhando, principalmente buscando abrir terreno nos EUA. Tony Newman, egresso do May Blitz (que se desfez após ser dispensado da Vertigo), assume a bateria e, com essa formação, começam a trabalhar no material para o segundo disco. Tony Newman era experiente em estúdio e teve uma passagem de relativo sucesso com o Jeff Beck Group, quando ainda contava com Rod Stewart nos vocais.
O material desperta a atenção da Warner Bros., que prepara para o fim de 1971 o lançamento do novo disco dessa pesada infantaria. Mahesha é o nome escolhido para o trabalho, que aprofunda o tipo de som aplicado em A Third of a Lifetime. Sons pesados mesclados com uma veia mais popular, bons refrões e belos vocais dos irmãos Gurvitz. Com uma formação consolidada e o apoio de uma grande estampa, o Three Man Army realiza uma tour pelos EUA, abrindo para os Doobie Brothers e, em seguida, uma outra tour abrindo para os Beach Boys. Ainda que não fosse exatamente o público alvo da banda, os shows do Three Man Army balançavam geral e geraram algum dividendo mínimo para a Warner, que não vinha fazendo também um investimento muito pesado no trio. Mas nada de hits e nem de nada que pudesse superar um ligeiro boca-a-boca a respeito da banda. Mahesha tem uma qualidade de gravação apenas “ok” quando comparado a outros lançamentos tanto da Warner quanto de outros selos naquele mesmo 1972. Nos EUA, foi lançado sem esse nome, apenas com o nome da banda na capa.
Os maiores destaques do disco são “Hold On” com seu desfiladeiro de riffs de guitarra e repletas de belas viradas de bateria; o pragmatismo rock de “Come on Down to Earth” e o balanço de “Can I Leave the Summer“. A abertura do disco é um tema instrumental que se assemelha a algumas vinhetas que o Queen viria a fazer nos anos seguintes, com guitarras sobrepostas; “Take me down to the mountain” tem uma batida divertida e “Take a look at the light” faz as vezes de balada romântica do disco, ainda que tenha um bocado de distorção a mais pra esse fim.
O contrato previa mais um disco e esse foi gestado em 73 (lançado apenas no ano seguinte). Ainda mais pesado do que o trabalho anterior, a banda vinha com mais garra visando se tornar um gigante no estilo. O título gera confusão entre os fãs, pois foi batizado como Two, mesmo sendo o terceiro trabalho do grupo. Justifica-se o Two por este ser o segundo disco sob a Warner e também por ser o segundo com a formação Paul, Adrian e Tony. Este disco, mais bem produzido e mais bem acabado sob todos os aspectos, também fracassou.
É uma triste constatação ver um álbum desse quilate ter virado nota de rodapé e o nome da banda um mero verbete em compêndios sobre o rock setentista. O disco já abre com um arrasa quarteirão – “Polecat Woman” tem vocais agudos, guitarras em profusão e uma levada violenta de bateria; “Today” é uma balada linda com final dramático, com total destaque para as lindas frases de guitarra de Adrian Gurvitz e o vocal preciso de Paul Gurvitz; “Flying” é praticamente um cartão de visitas do rock setentista; “Irving” é um som épico, com um magnífico solo de baixo distorcido; e “In my Eyes” fecha o disco com mais uma faixa forte, com um ótimo refrão e um capricho de interpretação.
O Three Man Army foi definhando ao passo em que nada acontecia – sem hits, sem participação em festivais tanto na Europa quanto nos EUA, com pouca exposição na mídia e pouco apoio de sua gravadora. Em 1974, ainda sim, a banda persiste e começa a brincar com a ideia de um álbum conceitual, uma espécie de ópera rock. Gravaram algumas demos que depois foram lançadas como Three Man Army 3, apenas em 2005, com alguns bons momentos e uma tendência pop mais acentuada em alguns momentos. Em 1974, os irmãos Gurvitz começam a achar meios de retomar o sucesso que experimentaram com o Gun e se juntam com outro camarada que estava louco para voltar a ganhar algum dinheiro – Ginger Baker. Foi a junção da força aérea de Ginger (Ginger Baker’s Airforce) e o exército dos irmãos Gurvitz que se uniram em 1974 para tentarem se tornar o grande nome do rock nos anos seguintes. Mas essa já é outra história.
A primeira música que ouvi do Three Man Army foi “Polecat woman”, citada pelo Ronaldo Rodrigues, que é realmente uma paulada “hardida”. Dos irmãos Gurvitz, gosto especialmente do seu trabalho com o Gun. “Race with the devil” (regravada por Black Oak Arkansas, Judas Priest e Girlschool, entre outros) é um clássico do rock. Mas o Gun não se limita a esse hit: “Head in the clouds”, “Dreams and screams” e “Drives you mad” são bons momentos, energizados pela guitarra venenosa do subestimado Adrian Gurvitz. Sobre Adrian, uma curiosidade: só o conhecia pelo seu hit de 1982, “Classic”, um daqueles mela-cuecas típicos da época. Se não alcançaram o patamar dos grandes do rock, os irmãos Gurvitz, pelo menos, deixam um trabalho de grande qualidade e competência, em suas várias “versões” (juntos ou separados): Gun, Parrish & Gurvitz, Three Man Army, Baker Gurvitz Army, The Graeme Edge Band…
Em uma das primeiras viagens que fiz a Porto Alegre por volta de 2003, estávamos eu e um amigo circulando pelo centro da cidade em busca de lojas de discos quando nos deparamos com a Boca do Disco. E foi lá que o lendário proprietário Getúlio me apresentou dois venenos sonoros que ele garantiu que iam fazer minha cabeça, justamente os dois primeiros do Three Man Army que acabei levando no ato.O primeiro é bem cru e o Mahesha, meu preferido, mais melódico e trabalhado. Grandes discos. Saudades daqueles tempos em POA.
Excelente matéria! Parabéns!
Muito bom Ronaldo! Não conheço nada da banda, nem de nome, mas gostei muito da história dos caras e me interessei pelo som. Eu não me canso de me surpreender sobre essas bandas dos anos 60/70. É inacreditável que tenham existido tantas bandas de alto nível na época. Já existem as inúmeras bandas clássicas e conhecidas que não conseguimos ouvir tudo e outras desconhecidas continuar a emergir. Será que isso não vai ter fim? Estou procurando aqui agora. Se o som dos caras for tão bom quanto o texto certamente vou gostar.
Valeu!
Escolha fantástica, Ronaldo. O Siri da Gaita chegou a vender duas cópias desse primeiro lp do Gun, com essa capa linda, ainda fora do estilo que fez a fama do Roger Dean mais tarde. Three Man Army eu gosto de todos, mas sempre viajei na capa do Mahesha. E tem outra banda GUN, escocesa, que vem lançando discos desde o final dos anos 80. Banda bastante competente e o som dela deve ser colírio para os ouvidos de patrãozinho Diogo e Davi. Se não conhecem, vão atrás.