Tralhas do Porão: The Trip
Por Ronaldo Rodrigues
O fértil rock italiano do começo dos anos 70 gerou uma série de bandas com vida curta, o que leva alguns críticos a propor que o rock progressivo despertava mais interesse nos músicos italianos do que dos ouvintes de rock de lá. Havia mais gente interessada em fazer rock progressivo do que em consumir rock progressivo. Controvérsias à parte, a mesma explicação poderia ser dada para muitos outros pequenos países europeus que tiveram destaque com este tipo de som, mas que enfrentavam de forma maximizada os mesmos desafios que o estilo, devido as suas características, enfrentava na Inglaterra e nos EUA.
Apesar da vida curta, o The Trip foi uma banda bastante prolífica daquela cena, tendo lançado 4 discos em um intervalo de 3 anos. Sua trajetória, assim como a da maioria das bandas do chamado progressivo italiano, começou dentro da música pop/beat. A Itália tinha uma música pop que rivalizava em popularidade (local) com as bandas da invasão inglesa e a Beatlemania, tendo inclusive exportado sucessos com Rita Pavone, Giono Paoli, Fabrizio de André, dentro outros. O The Trip era banda de apoio do cantor Ricky Maiocchi, que tinha fama relativa na TV e em festivais, com músicas como “C’e chi spera“. Rick era vocalista da banda I Camaleonti e decidiu lambiscar um pouquinho da onda psicodélica que começou a pipocar nos idos de 1966, baseando-se em Londres. O pessoal recrutado era todo inglês inicialmente – o baterista Ian Broad, o baixista e backing vocal Arvid Andersen, o guitarrista base William Gray e o futuro mago da guitarra Ritchie Blackmore (sim, ele mesmo, futuro Deep Purple). A banda rodou pela Itália naquele ano, se apresentando como “Maiocchi and The Trip” mas em dezembro Ritchie Blackmore se manda de volta para a Inglaterra. Naquele curto período também Ian Broad desiste do projeto, bem como o italiano Luciano Gandolfi, que havia substituído Blackmore. O jeito então era chamar novos músicos, e desta vez Maiocchi aposta em matéria-prima local – os italianos Joe Vescosi (teclados) e Pino Sinnone (bateria) entram para a nova formação do grupo.
A carreira psicodélica de Ricky Maiocchi não decola e a banda, já entrosada, decide procurar seu próprio rumo. Descolam um bom contrato com a RCA italiana, assumindo o nome The Trip, e lançam o primeiro disco auto-intitulado em 1970. Naquelas alturas, o The Trip ainda vagava por um rock experimental baseado no blues e na cartilha lisérgica da época. Também em 1970, o The Trip participa de um filme chamado Terzo Cannale: Avventura a Montecarlo, uma comédia com toques surrealistas que retrata a história de uma banda viajando de Montecarlo até Roma para tocar em um festival (um trecho do filme pode ser visto aqui). Do primeiro disco da banda, com 5 longas faixas, destaca-se o timbre distinto de Joe Vescovi ao órgão e a dramática faixa Visioni Dell’Aldilia.
Em 1971, ainda sob aposta da RCA, a banda começa a traçar um perfil sonoro próprio. Caronte é o nome do segundo lançamento, com uma capa instigante e a forte presença dos teclados de Joe Vescosi, que já começava a se destacar no grupo pelo refinamento de suas composições de influência clássica. Ainda sim, o grupo mantinha nessas composições uma cozinha muito sólida e fortemente psicodélica, gerando uma música envolvente e densa. O segundo disco da banda já tem uma produção sonora bem mais apurada e abre solenemente com a faixa título, mesclando a dramaticidade e o peso que marcou o rock progressivo italiano; “Two Brothers” tem um começo misterioso e depois descamba para um rock possante; “Caronte II” fecho o ciclo com um ritmado afro-latino surpreendente e fortes bases de piano.
Nesta época, a banda atinge maior popularidade, consolidando o rock da nova década na Itália junto com New Trolls, Osanna, Premiata Forneria Marconi e Banco del Mutuo Soccorso. Logo após o lançamento de Caronte, William Gray pula fora da banda e lança um disco solo pela Polydor em 1972, chamado “Feeling Gray?”, sem obter sucesso. Outro que pula fora é o baterista Pino Sinnone.
O line-up da banda se refaz com o prodigioso baterista Furio Chirico, egresso das bandas psicodélicas I Ragazzi del Sole e Martè e I Judas, junto com Joe Vescovi nos teclados e Arvid Andersen no baixo e vocal. Sem ter um guitarrista fixo, a banda passa a assumir em definitivo o protagonismo dos teclados de Joe e a guarnição poderosa de Chirico e Andersen como base. Nesta direção, o som aproxima-se do Emerson, Lake & Palmer, que fazia estrondoso sucesso na Europa de modo geral. Em 1972, esta formação traz também pela RCA, o ambicioso Atlantide. Com uma luxuosa embalagem gatefold, o disco é o ápice da obra do grupo, já abrindo com o piano veloz de Joe Vescovi na faixa título, seguido pelas batidas estupendas de Chirico em “Evoluzione“, o sinfonismo de “Analisi” e a monstruosidade instrumental de “Distruzione” com um arrebatador solo de bateria.
O maior momento da carreira do The Trip foi a participação no Festival Vila Pamphili, ocorrido em Roma. O The Trip tocou na segunda noite do festival (26 de maio) e foi ovacionado por um público de cerca de 80.000 pessoas. O Vila Pamphili foi histórico para o rock italiano, ao contar com Banco del Mutuo Soccorso, Osanna, Garybaldi, Quella Vecchia Loccanda, Raccomandata Ricevuto Ritorno, Procession e Semiramis, e tendo com atrações estrangeiras Van Der Graaf Generator, Hawkwind e Hookfoot.
Obviamente, o tipo de som praticado pelo The Trip era de pequeno alcance e com forte carga experimental; se a RCA esperava por algum hit, o único caminho seria dispensar o grupo após 2 anos de investimento. A banda contudo, sem esmorecer lança um trabalho ainda mais ambicioso (e até mesmo exagerado) em 1973, já pelo selo Trident, chamado Time to Change. A suíte “Rhapsodia” era pura gastação instrumental de Joe Vescovi e sua trupe e ocupava todo o lado A do disco. O lado B dedicava-se a canções ainda menos convencionais, com longos trechos solo de teclado, batidas exóticas e andamentos quebrados, tornando o disco de difícil apreciação.
Sem grandes perspectivas e com o interesse do público se reduzindo gradativamente, a banda começa a se desmanchar. Furio Chirico é o primeiro a abandonar a barca, mas ainda na seara progressiva apontava o leme de suas naus para o jazz-rock e formou a fantástica Arti & Mestieri, onde pôde destilar livremente todo seu virtuosismo; Joe Vescovi ainda tentou continuar com o The Trip convocando o baterista Nunzio Flavia, ex-Osage Tribe. No fim de 1974, o baixista Arvid Andersen sofre um sério acidente automobilístico na Suíça, colocando uma pausa sepulcral na banda. Joe Vescovi logo em seguida faz uma breve passagem nos teclados do Acqua Fragile e depois enveredou pela música pop com o grupo Dik Dik. Andersen, depois de alguns meses hospitalizado, passou a trabalhar como DJ para rádios e trabalhar nos bastidores da música. Chirico lançou (bons) álbuns em 1974, 1975 e 1979 com o Arti & Mestieri.
Apenas nos anos 2000, os membros da banda cogitam um retorno para atender as demandas que chegavam através das redes sociais por antigos/novos fãs do The Trip. O trio (Vescovi, Andersen e Chirico) retornam em grande estilo em um festival progressivo em Roma, em 2010 e fazem algumas apresentações até 2012, quando Arvid Andersen vem a óbito. Em 2014, o talentoso Joe Vescovi também partiu desta para melhor.É possível encontrar a apresentação do retorno da banda no Youtube (veja link aqui) e conferir a potência sonora do The Trip mesmo após tão longos anos. Em 2016, a Black Widow Records lança o disco Live ’72, retratando a performance do The Trip no festival Controcanzonissima, ainda com a formação de quarteto.
Sensacionais. Não ficam atrás de outros medalhões do Rock Progressivo Italiano (e mundial).