Show: Locanda delle Fate (Niterói, 10 de novembro de 2017)
Por Ronaldo Rodrigues
Fotos por Pedro Paulo Ripper
Há muita emoção envolta em ter presenciado este show e em ter a missão de narrá-lo. Este texto não visa discorrer sobre a biografia ou trajetória da banda. Quem não os conhece por sua discografia, deve fazer o favor a si mesmo de buscar seu som e se deliciar com toda a exuberância de seu instrumental. Resumo-me a dizer que a banda lançou apenas um célebre trabalho no apagar das luzes da primeira fase do rock progressivo. Em 1977 foi lançado o icônico e revigorante Forse Le Lucciole Non Si Amano Piu, numa época em que o estilo já experimentava declínio. A banda fazia sua tour de despedida, celebrando os 40 anos daquele lançamento. Mas não limitado a tocar apenas o disco na íntegra, a banda também incluiu músicas de seus outros dois discos – Homo Homini Lupus (1999) e Missing Fireflies (2011). Pelas mãos da produtora Vértice Cultural, o Brasil seria agraciado com os dois últimos shows da banda. O primeiro (ao que se refere esta resenha) no belo e aconchegante Teatro Municipal de Niterói e o segundo na Cidade das Artes, no Rio, no dia seguinte.
Pode se afirmar com tranquilidade que a banda se despediu em plena dignidade. O sexteto ainda conservava 4 dos membros que gravaram o primeiro disco (o vocalista Leonardo Sasso, o baixista Luciano Boero, o baterista Giorgio Gardino e o tecladista Oscar Mazzoglio) e agregou ao time dois virtuoses em seus instrumentos – o segundo tecladista Maurizio Muha e o guitarrista Massimo Brignolo. Impecáveis na sonoridade, com uma pegada incrivelmente dinâmica e uma performance invejável, os músicos do Locanda delle Fate invadiram cada centímetro cúbico do teatro com espantosa qualidade musical ao longo de mais de 2 horas de show.
A abertura do show emendou uma longa versão instrumental para a primeira faixa de Forse Le Lucciole… “A volte un istante di quiete”, ainda sem a presença do vocalista Leonardo Sasso. Ao entrar, visivelmente comovido com a calorosa recepção do público, Leonardo entoou como um autêntico tenor os primeiros versos da faixa título do mesmo disco e a partir dali, tudo o que se seguiu foi uma descarga de emoções. A seguir, a belíssima “Profumo di Colla Bianca” destilou toda a identidade dramática do rock progressivo italiano e o efusivo baixista Luciano Boero (arriscando-se vez ou outra em português ou em inglês) avisava a todos que Forse Le Lucciole…seria executado na íntegra. Após esta sequência inicial a banda alternou o repertório mais antigo com músicas de seus outros dois discos.
A catarse promovida pelo Locanda delle Fate era tão grande que a plateia aplaudiu a primeira música como se fosse a encore; aplaudiu até mesmo momentos em que o lugar-comum seria o silêncio (falas entre as músicas e passagens instrumentais no miolo das músicas). Muitos ergueram-se das cadeiras em reverência ao som antes do show terminar. Não é algo que ocorra a um nível ordinário de energia musical. E ali, com toda a segurança, pode se afirmar que os níveis estavam elevadíssimos.
Oscar Mazzoglio mantinha-se em pé no palco, enquanto seu opositor nos teclados, Maurizio Muha, mantinha-se sentado como um compenetrado pianista; o antagonismo sonoro entre ambos fez se valer em todo o espetáculo, um com seu dinamismo e leveza, o outro com a rigidez de uma sólida base musical; Muha ia do acústico do piano a mais eletrônica combinação de ondas sonoras em seu minimoog; Mazzoglio fornecia o conteúdo de acordes em órgão Hammond e sintetizadores polifônicos. Giorgio Gardino e Luciano Boero eram pura segurança na cozinha da banda e o mais novo do time, Massimo Brignolo simplesmente cuspia fogo com sua guitarra do alto de sua discrição e serenidade. Nada do que foi ali apresentado foi burocrático ou econômico. A maioria das músicas de Forse Le Lucciole… foi trazida em versões extendidas, com a dose certeira de virtuosismo mas sem nenhum tipo de concessão (o que é comum em apresentações de músicos com idade já avançada, como é o caso do Locanda). O vocalista Leonardo Sasso, fazia questão de detalhar conceitos e trajetórias de cada uma das canções. Mesmo sabendo não ser plenamente entendido pela plateia, por suas falas em italiano, contava tudo com aparente de satisfação de quem revê uma bela trajetória pessoal.
Obviamente, por nunca ter pisado em solo brasileiro e por não ser um grupo habitualmente visto pela plateia que lá estava, é difícil afirmar que a banda sentia-se a vontade no palco. O som progressivo, denso e melódico, exigia dos músicos grande concentração. Contudo, era transparente a firmeza com que cada um executava suas respectivas funções, ao mesmo tempo em que a expressão deles refutava alguma dificuldade naquele ofício. Vê-los no palco emanou um misto de sobriedade e relaxamento, contrastando com a energia poderosa que fluía de seus instrumentos.
No quesito instrumentação residiu um dos enormes trunfos deste espetáculo – a preocupação absoluta com a sonoridade. Munidos dos melhores instrumentos possíveis, a banda teve enorme fidelidade às principais identidades do rock progressivo setentista – baixo Rickenbacker, Minimoog, pianos, guitarras Fender/Gibson e uma míriade de outros sons de teclados que fazem o prog ser reverenciado em sua escola clássica. Em geral, bandas com longas trajetórias acabam despreocupando-se neste ponto tão importante e o Locanda delle Fate manteve intacta a sensibilidade de seus próprios ouvidos e os do público mais exigente.
Ao término do espetáculo, visivelmente emocionados e felizes por um encerramento em grande e longo estilo no bis com “Vendesi Saggeza”, a banda se despedia da ensandecida plateia que os apladiu por longos minutos. A sensação de pertencimento àquela atmosfera fez com que uma grande concentração de pessoas ocupasse durante mais de 1 hora o pátio externo do teatro para confraternizar e dividir suas experiências e impressões daquele grande show. Também a banda apareceu por lá, para autógrafos e fotos.
Atualmente, poucos estilos podem se gabar de ser tão democráticos quanto o rock. Há ao menos 3 gerações de músicos e apreciadores convivendo em todos os locais onde o rock existe – no palco, na plateia, nos fóruns, nas mídias, nos fã-clubes. Da juventude, a ousadia e o vigor; da meia idade, a maturidade e o capricho; dos anciãos, a sabedoria e a experiência. A transição dessas fases ecoou o tempo em minha mente e a própria banda por ela havia sido experimentada, pois encerrava ali sua trajetória musical. Era o penúltimo show de sua tour de despedida. De 1971 tocando covers em bailes na Itália à ser ovacionado em um teatro lotado de um país distante, este show mostrou o quanto o rock (neste caso, em sua vertente progressiva) supera todas as barreiras de tempo-espaço.
Tudo foi perfeição naquela noite de 10/11. Do som à luz; da música ao local; do prestígio do público e sua interação com a banda. Os bastidores do show foram puro heroísmo. Através da Vértice Cultural e com a colaboração do produtor Luiz Otavio Drummond, Niterói e Rio de Janeiro puderam ser contemplados com a música bela e estrondosa do Locanda delle Fate pela única vez ao vivo. Uma literal jornada em contra-corrente (dadas as adversidades do cotidiano que o brasileiro sofre de forma tão peculiar), uma aposta tão ousada quanto as progressões da música dos italianos; ocasião que foi capaz de encerrar, de forma honrada e serena, o luzeiro de toda uma constelação de sons.
Registro também a gratidão pelo credenciamento no evento concedido pela Vértice Cultural à Consultoria do Rock.
Abraços,
Emocionante resenha, Ronaldo! Certamente deve ter sido um espetáculo fantástico, e a lamentar apenas que a turnê não tenha sido estendida a outras cidades do país! É curioso a banda decidir parar mesmo estando “na ponta dos cascos”, como se depreende de seu relato, mas as razões cabem só a eles. A nós, que não estivemos nos shows, resta lamentar a ausência, e seguir ouvindo apenas os discos “regulares” deste grande nome do prog!
Pois é, Micael! uma pena a decisão de parar, mas notava-se que o vocalista Leonardo Sasso tinha uma saúde bem frágil e tinha dificuldades pra andar. Os outros estavam bem fisicamente. Mas em entrevista, o baixista Luciano Boero disse que o interesse deles é parar no ápice.
Valeu!
Abraço!
A boa música não deveria seguir modismo. Principalmente o Rock Prog( meu som favorito), todos deveriam ter lugar ao sol. Esse negócio de dizer que em tal ano o ” estilo tal começou a decair”, pura besteira de quem quer só ganhar dinheiro. Música é p o coração através dos ouvidos de quem tem bom senso e sentimentos p o que é bom. Portanto viva a boa música,viva o rock, ….. principalmente o PROG
Olá Rivaldo. Usei este termo pq em 1977 tanto a quantidade quanto a qualidade dos trabalhos de bandas progressivas diminuiu e o estilo perdeu popularidade frente à disco music e punk rock. Mas isso não significa que ele tenha morrido e nem se renovado, longe disso.
Abraço
Belo e preciso texto Ronaldo Rodrigues, parabéns. O Locanda veio nos lembrar que o bom rock progressivo é atemporal, alias como toda a boa música independente do gênero musical.
Fiz o dever de casa que o Ronaldo pediu e dei uma ouvida no que tem disponível no youtube. Sério, como nunca ouvi falar dessa banda excelente?
E o show deles deve ter sido divino. Inveja de ti, Ronaldo. Muito obrigado por escrever sobre eles ou provavelmente eu iria ficar sabe-se lá quanto tempo sem nunca ter ouvido nada deles.
Fico feliz que tenha permitido ao Locanda ingressar no seu repertório, André!
Valeu! Abraço!
Munido de algum preconceito, nunca me senti atraído pelo rock progressivo italiano, apesar de gostar de algumas coisas da premiada padaria Marconi. Não conhecia essa Locanda delle Fate. Decidi ouvir “Profumo di Colla Bianca” e… Que coisa linda, meu Pai! Realmente, o prog rock é muito mais rico (e belo) do que possamos supor. Falando em preconceito, alguém aí já ouviu o disco “Alturas de Macchu Picchu”, do grupo chileno Los Jaivas?
Sonzão, Francisco!
Sim, conheço e gosto dos Los Jaivas. Felizmente nunca tive esses problemas com sons vindos de países menos tradicionais no rock. Há coisas maravilhosas fora de UK-US.
Obrigado pelos comentários.
Abraço!
Está em tempo de rever meus conceitos… Abraço!
“Há coisas maravilhosas fora de UK-US” – há muito tempo que as melhores músicas que escuto vêm da Escandinávia, principalmente da Suécia! Sendo dessa parte do mundo, já sai com alguns pontinhos de vantagem na minha avaliação de interesse!
Excelente texto…parabéns . o mesmo vale para o show de sábado. Foi excelente também. Uma honra ter meu Mínimoog usado por uma banda deste nível de músicos e composições.
Valeu André! sim, soube que o Minimoog era seu…foi extremamente importante pro resultado do show. Motivo de honra mesmo.
Abraço
Tive no show do Rio, que banda maravilhosa, que momento único fazer parte deste show. Aqui no Rio a sua resenha encaixa da mesma forma, foi tudo perfeito.
Obrigado pelos comentários, pessoal!
Oportunidade única. Esse disco do Locanda é fantástico e deve ter sido maravilhoso ter ouvido, e visto, ao vivo. Muito legal!!!