Discografias Comentadas: Traffic [Parte 2]

Discografias Comentadas: Traffic [Parte 2]

Por Jose Leonardo Aronna

Apresento agora a segunda parte da Discografia Comentada do Traffic, cobrindo o período de 1971 a 1974, quando o grupo flertou com o rock progressivo, bem como o retorno na década de 90.


51HqwuzKnoLTraffic – The Low Spark Of The High Heeled Boys [1971]

Com o misterioso e carismático The Low Spark Of The High Heeled Boys, o Traffic prosseguia a viagem para envolventes espaços musicais e líricos. O disco foi gravado usando o trio base constituído por Steve Winwood, Jim Capaldi e Chris Wood e com uma seção rítmica que passou a contar com a presença de Reebop Kwaku Baah na percussão, e de Jim Gordon na bateria. A presença de Gordon na bateria devia-se à crescente queda de confiança de Jim Capaldi nas suas capacidades como baterista. Capaldi sentia que as suas contribuições para o Traffic deviam se basear na composição das letras, canções e no uso da sua voz. De fato, desde “Dealer”, faixa do primeiro disco da banda, que Capaldi não tinha a sua voz em primeiro plano. Neste álbum o músico aparece convincente e em grande estilo quer na contagiante “Light Up And Leave Me Alone“, quer no groove de “Rock & Roll Stew”. Num disco cheio de sutilezas, a elegante e mágica faixa de abertura, “Hidden Treasure”, capta todo o talento e magia de Chris Wood na flauta. Da fragilidade de “Hidden Treasure” o disco evoluí para o tema central, a ambígua “The Low Spark Of High Heeled Boys“, que retratava toda a desilusão, jogo de interesses e drogas presentes na indústria musical. A canção, em formato de épico, possuí todo o carisma vocal, arranjos jazz e a percussão estilizada que caracterizava o Traffic nos anos setenta. A inconfundível voz de Winwood é o veículo perfeito para transmitir de forma convicta as emoções e juntamente com os seus solos de piano, órgão e guitarra, compunha grande parte do som do Traffic. Em “Many A Mile To Freedom” e “Rainmaker” o grupo aborda ambientes reflexivos e delicados, pontuados exemplarmente pela seção rítmica. “Rainmaker” em particular, que conta novamente com os distintos sopros de Chris Wood, conclui o disco com mais uma refinada demonstração da deliciosa musicalidade do grupo. Sempre com arranjos sutis e com uma postura relaxada, música e mensagem fluem elegantemente ao longo do álbum.

À época de seu lançamento, o disco era totalmente ignorado na Inglaterra, ao mesmo tempo que atingia o número 7 das paradas dos Estados Unidos. Este fato fez com que os Estados Unidos passassem a ser o principal destino das turnês do grupo. Mesmo sem o devido reconhecimento, o Traffic continuava a fazer verdadeiras afirmações de caráter e personalidade.


Traffic - Shoot outTraffic – Shoot Out At The Fantasy Factory [1973]

A seguir à turnê de apoio a The Low Spark Of High Heeled Boys o Traffic não contava mais com os serviços do baterista Jim Gordon e do baixista Rick Grech. Jim Capaldi, que recentemente havia gravado o primeiro disco solo, resolveu trazer para o grupo músicos que usara no seu disco. Entraram Roger Hawkins (bateria) e David Hood (baixo) formando equipe com o percussionista Reebop Kwaku Baah. “Shoot Out At The Fantasy Factory” abre o álbum pondo em evidência os talentos desses músicos, demonstrando também a versatilidade instrumental de Winwood que aparece em primeiro plano na guitarra. Mas a verdade é que o grupo acabara há pouco tempo uma turnê pela América do Norte e o cansaço parecia começar a afetar as forças criativas. Invadidas pela melancolia, tanto as melodias de Steve Winwood como as letras de Jim Capaldi pareciam indicar estagnação emocional. No entanto, mesmo sem arriscar muito, o grupo vai interpretando bonitas canções ao longo do álbum, na forma de “Evening Blue” e “(Sometimes I Feel So) Uninspired“, que conclui o álbum transmitindo o frágil estado de alma do grupo.. Seguindo a tradição que o grupo adotara na década de setenta, o Traffic incluía algumas jams como “Roll Right Stones” ou “Tragic Magic”. “Roll Right Stones” exibia, ao longo de treze minutos, uma estilizada mistura de jazz, folk e rock. “Tragic Magic, um tema instrumental que incorporava funk, blues e jazz, era a primeira composição de Chris Wood para a banda, evidenciando de alguma forma a sua discreta presença no disco.

On+The+RoadShoot Out At The Fantasy Factoryencontrava um grupo indeciso, uma banda a lutar pela identidade. O público americano voltou acolhê-los e a garantir-lhes um lugar no top dez, enquanto que o público inglês voltava a ignorá-los. A excursão mundial para promover o álbum resultaria num disco ao vivo, On The Road, pouco mais de um mês depois. Constituídos por Steve Winwood, Jim Capaldi, Chris Wood, Reebop Kwaku Baah, David Hood (baixo), Roger Hawkins (bateria) e Barry Beckett (teclados), a música que geravam era tão longa quanto o número de músicos. Em seis temas que somam um total de setenta e seis minutos de duração, o grupo demonstra toda a sua musicalidade. Contando com três rapazes (Capaldi, Reebop e Hawkins) a bater em tudo o que é objeto de percussão, a riqueza rítmica do disco é muito evidente. Para a seleção de temas o Traffic esolheu os três últimos álbuns (John Barleycorn Must Die, The Low Spark Of High Heeled Boys e Shoot Out At The Fantasy Factory)e expandiram cada tema através da criação de várias seções onde os músicos iam improvisando. Com músicos deste calibre, o grupo criou alguns momentos de puro charme e talento. Winwood é incrível no modo como se desdobra brilhantemente na guitarra e piano ao mesmo nível, demonstrando conhecer ambas as linguagens. A conhecida elegância e versatilidade de Chris Wood nos instrumentos de sopro está também bem presente neste disco ao vivo. Com uma distância curtíssima (pouco mais de um mês) entre o lançamento de álbuns, On The Road viu-se a competir comShoot Out At The Fantasy Factory nas paradas de discos, conseguindo mesmo assim atingir o top 30. A essa altura estava a banda numa longa turnê mundial que terminaria com mais mudanças estruturais no grupo.


Traffic - When theTraffic – When The Eagle Flies [1974]

No início de 1974 o Traffic voltara a sofrer alterações na sua formação. Saíram Reebop Kwaku Baah, David Hood e Roger Hawkins, deixando o grupo novamente reduzido a um trio. A banda teve de repensar o futuro, tendo recrutado Rosko Gee para o baixo e motivando nesse processo o regresso de Jim Capaldi à bateria, posição que este tinha abandonado em 1972. Esse novo grupo gravou When The Eagle Flies. Em ambiente marcadamente experimental, a banda embarca em terrenos sonoros que evocam o estilo “jazz-fusion” com ênfase na improvisação. Num tom frio, discreto e com poucos otimismo, o disco assume sem disfarce toda a sua profunda melancolia. Por entre movimentada instrumentação, “Something New” conta uma história de uma desilusão de amor. “Dream Gerrard” desenvolve-se lentamente num groove jazz que conta com os floreados de Chris Wood no saxofone e com os habilidosos toques de Winwood no mellotron. “Graveyard People” é outro tema obscuro e misterioso, perturbado esporadicamente pelas cadências de sintetizador. A sólida linha de baixo em “Walking In The Wind” e o elegante piano que a acompanha parecem suavizar um bocado a tensão, mas não muito. É em “Memories Of A Rock ‘N’ Rolla” que o grupo revela o verdadeiro estado de espírito, num tema que retrata uma certa saturação com a vida na estrada e também um vincado sentimento de nostalgia. A beleza escondida de “Love” é um dos bons exemplos da liberdade musical que o grupo exibe no disco, resultando numa comovente afirmação da banda. A canção que dá o título ao disco, termina em terreno sonhador, alimentado pelas elegantes passagens de piano e pela versátil prestação vocal de Steve Winwood. O álbum conseguiu mais uma vez chegar ao top 10 das paradas de disco nos Estados Unidos, mas o Traffic faria a sua última turnê nesse ano. Em 1975 o grupo decidia por dar fim à carreira cujo reconhecimento apenas se verificava de um dos lados do Atlântico. Deixando para trás valiosas contribuições para o mundo da música, o Traffic retirava-se de consciência tranquila e com a sensação de dever cumprido.

Após o término do grupo, Steve Winwood e Jim Capaldi seguiram carreira solo. Chris Wood participou como convidado em discos de vários artistas. Estava trabalhando num álbum solo quando veio a falecer, vítima de pneumonia, em 12 de julho de 1983. Wood tinha vários problemas com álcool e drogas, o que era inicialmente atribuído ao seu medo de viajar de avião. Também ficou abalado quando da morte de sua ex-esposa, em 1980. Rosko Gee e Rebop Kwaku Baah integraram a banda alemã Can entre 1977 e 1979, participando de três álbuns: Saw Delight, Out of Reach e Can. Reebop Kwaku Baah também atuou em discos de diversos artistas, vindo a falecer, também, em 12 de janeiro de 1983, vitimado por uma hemorragia cerebral durante um concerto na Suécia. O baixista Rick Grech também já faleceu, em virtude de problemas com alcoolismo, em 1990 após se aposentar da música, ainda nos anos 70. Dave Mason está vivo, tem uma carreira solo, lançando discos esporadicamente. Também chegou a participar por um breve período no Fleetwood Mac, nos anos 90.

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Steve Winwood e Jim Capaldi (1994)

Traffic - Far fromTraffic – Far From Home [1994]

Para a surpresa geral, em 1994, Steve e Jim, revivem o Traffic lançando o álbumFar From Home, 20 anos após seu último álbum de estúdio. Mas, na opinião de muitos, apesar da presença de Jim Capaldi voltando à bateria e escrevendo as letras de várias canções, o álbum mais se parece com um disco solo de Steve Winwoood, pois o mesmo se encarrega de todo o resto do instrumental: guitarras, baixo, teclados, programação, flauta, saxofone e percussão, e com exceção de Mick Dolan que toca guitarra em uma faixa e Davy Spillane que acrescenta Uilleann Pipes (gaita de fole irlandesa) em outra. Temos aqui um belo disco, nada excepcional, mas curtível e agradável. Mas a única coisa que é evidente é que a magia entre Winwood e Capaldi ainda funciona depois de todos esses anos. A bateria de Capaldi melhorou muito ao longo dos anos e seu trabalho aqui é bastante impressionante, enquanto Winwood prova mais uma vez que é o gênio musical que todos nós conhecemos. Sua capacidade musical e criatividade é absolutamente incrível. Os destaques são para “This Train Won’t Stop” (letras de Capaldi, com uma interpretação poderosa Winwood), “Here Comes The Man”, a longa faixa-título, a pungente “Holy Ground” e “Nowhere Is Their Freedom“. Com apenas um par de faixas mais fracas, por incrível que pareça, o disco chegou ao n° 29 nas paradas inglesas, sua melhor posição desde John Barleycorn Must Die, em 1970! Embora não sendo uma obra-prima, o álbum consegue honrar o nome e a história da banda. E é o melhor trabalho de Steve e Jim nos anos 90.

Após o lançamento de Far From Home a banda fez uma turnê para promover o disco. Além de Steve Winwood e Jim Capaldi, a banda contava com a presença de Rosko Gee (baixo), Randall Bramblett (flauta, sax), Michael McEvoy (teclados, guitarra, viola, harmônica) e Walfredo Reyes Jr. (bateria e percussão). Um desses concertos foi lançado em DVD em 2005 com o título de The Last Great Traffic Jam e tem a participação do Jerry Garcia, do Greateful Dead, na música “Dear Mr Fantasy”.

Last great traffic

Após essa turnê, Steve e Capaldi voltaram às suas atividades individuais. Porém em 28 de janeiro de 2005, Jim Capaldi faleceu em decorrência de câncer no estômago, aos 60 anos de idade. Em janeiro de 2007, um concerto em sua homenagem é organizado por sua viúva, a brasileira Aninha Capaldi, no Roundhouse em Camden Town, Londres, com a participação de vários artistas. Posteriormente esse concerto foi lançado em dvd, com o título de Dear Mr. Fantasy – A Celebration For Jim Capaldi. Já li que Jim Capaldi morou em Salvador de 1977 até o início dos anos 80. Diziam que até tinha um apartamento no Rio. Ele e sua mulher participavam de uma instituição de caridade, ajudando crianças de rua brasileiras. E outro que também não está entre nós é o tecladista Barry Beckett, falecido de causas naturais em 2009.

Uma curiosidade: todos os músicos coadjuvantes que participaram da banda, com a exceção de Rick Greech, não são britânicos.

7 comentários sobre “Discografias Comentadas: Traffic [Parte 2]

  1. The Low Spark of the High-heeled Boys é um dos meus discos favoritos de todos os tempos, mesmo com a letra sacaneando uma das bandas de que mais gosto, que é o Mott The Hoople. O Traffic dos anos 70 mudou radicalmente em relação ao dos 60 e manteve o alto padrão, e a volta nos anos 90 não decepcionou. Sobre o Jim Capaldi, de fato ele tinha um apartamento no Rio, inclusive tendo feito jams com músicos cariocas. As resenhas são ótimas!

  2. The Low Spark Of The High Heeled Boys é um disco fantástico. Ao lado de John Barleycorn Must Die, o meu favorito da banda. A formação desse disco para mim é a mais perfeita do Traffic, mas entendo os que consideram o quarteto clássico como O Traffic. On the Road está na minha lista de Melhores ao vivo de todos os tempos fácil fácil. Tem um vídeo em Santa Monica que é de chorar de tão LIMDO. Steve Winwood cantando pacas, e Reebop endiabrado.

    Agora, Far From Home é um dos piores discos que já ouvi. Tenho ele por que sou colecionista, já ouvi umas 4 vezes, e cada audição, encontro muito mais contras do que prós. O texto do Zé Leo é motivador, mas para mim, não condiz com a realidade. Disco terrível, terrível mesmo.

    Mas a DC ficou ótima Comodoro. Valeu!!!

  3. Para eu fechar essa coleção do Traffic ainda falta o When the Eagles Flies que é um disco que ouvi pouquíssimas vezes. Excelente resgate Ronaldo. Parabéns pelos textos. Certeza que fez juz à importância da banda.

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