Cinco Discos Para Conhecer: A Fase Pop de Jorge Ben
Por Eudes Baima
Os músicos brasileiros (ou mundiais) que criaram um estilo podem ser contados nos dedos de uma mão. Noel e o samba urbano, João Gilberto e a bossa minimalista, Tim Maia e o soul com sotaque brasileiro, e por aí vai. Entre eles está Jorge Ben. E se os citados criaram legiões de imitadores e seguidores, Ben ameaça morrer sem deixar herdeiros. Fruto de uma mistura que só a vida real pode proporcionar (desde o começo, transitava espontaneamente entre a bossa nova, o rock e o twist, em festinhas de amigos e nos bares da vida), Ben foi lapidando um estilo destinado a ser uma categoria, ao mesmo tempo, tanto do samba como do rock.
No começo dos anos 1960, um certo Zé Maria, organista de um grupo que tocava no templo do jazz e da bossa, o Beco das Garrafas, levou-o como pandeirista para se apresentar no Little Club. A seguir, já estava tocando violão no Bottle’s e cantando músicas próprias. Desde então já pulava do samba tradicional à bossa nova e fazia fama no underground, por volta de 1961, como cantor de rock na boate Plaza, em Copacabana. Em 1963 o tal Zé Maria colocou duas músicas suas – “Mas, que Nada” e “Por Causa de Você” –, no LP Tudo Azul, com participação do compositor. Literalmente, no dia seguinte foi contratado pela Philips e lançou o primeiro 78 rpm, com essas músicas. Também desse ano é o primeiro LP, Samba Esquema Novo, e o segundo, Sacudin Ben Samba, clássicos instantâneos e marcados por um estranho misto de samba e rock acústico, com o violão ET de Jorge plasmando um ritmo nunca ouvido e, aparentemente simples, difícil de ser reproduzido. Os entendidos falam em uma fusão do ritmo característico do samba aplicado a escalas de blues.
E, mesmo assim, a delicada e simpática revolução de cordas de náilon de Ben ainda nem tinha começado. É com a chegada da consciência plena acerca das fusões que estava promovendo, a partir da audição de Beatles, Hendrix, e outros nomes do rock psicodélico e do soul-funk norte-americano, que a produção de Jorge se tornaria deliberadamente este eixo onde se encontram samba, rock, maracatu e, vejam só, sonoridades berberes.
Os cinco álbuns que apresentamos abaixo foram escolhidos com a intenção de abordar os diferentes momentos dessa evolução. Do híbrido jovenguardista de O Bidu (Silêncio no Brooklin) ao tour de force samba-funk de África Brasil, passando pelos devaneios psicodélicos dos discos da virada dos anos 1960 para os 1970. Interessante é que Ben tramou tudo isso de cara limpa. Adepto declarado da boa vida, Jorge não bebia nem usava nenhum tipo de droga, e assim podia se concentrar full-time a seus vícios prediletos, mulheres e música. De passagem, lembramos que nem a linda Rita Lee da juventude passou incólume pelos encantos venéreos do guitarrista. Ao longo dos anos, talvez fruto dessa dieta naturalista, e embora o nível criativo tenha caído muito nos últimos 30 anos, Ben se conserva sempre jovem e vital. Não são poucos os que, mesmo considerando a habilidade extraordinária reveladas nas bases guitarrísticas de Jorge (quem já o viu ao vivo sabe que, ademais, ele é muito hábil nos solos), esperam como fieis a volta do músico ao seu violão acústico mágico. O que, aliás, ocorreu fugazmente no obrigatório CD duplo e DVD Acústico MTV (2002), no qual reencontra suas duas bandas emblemáticas, do Zé Pretinho e Admiral Jorge V.
Vamos então aos cinco tesouros a serem descobertos ou redescobertos!
O Bidú (Silêncio no Brooklin) [1967]
Em meados dos anos 1960, Jorge não era nem tão MPB que coubesse no Fino da Bossa, de Elis Regina e Jair Rodrigues, nem roqueiro o suficiente para ser aceito no Jovem Guarda. Mas justo por isso se apresentou nos dois campeões de audiência da velha TV Record. De quebra vira personagem frequente em Divino Maravilhoso e se torna “muso” da Tropicália. Afinal, poucos eram tão antropofágicos e tropicais quanto Jorge Ben. O Bidu, cujo subtítulo evoca a temporada que Ben passou no bairro paulistano, morando com Erasmo Carlos, testemunha este misto de inadequação e disposição democrática. O disco, gravado tendo os Fevers como banda de apoio, pega pesado na fusão de maracatu e rock ‘n’ roll e, embora não tenha deixado nenhum hit, abre a fase mais deliberadamente rock de Jorge Ben. O álbum traz canções claramente manifesto, como “Jovem Samba”, e flertes explícitos com a Jovem Guarda (como se não bastassem as bases eletrificadas), como em “Menina Gata Augusta”, parceria com Erasmo. Anos mais tarde, um das faixas viria a ser um quase sucesso, “Olha o Menino”, na voz de Caetano Veloso.
Formação: Jorge Ben (vocal, guitarra) e The Fevers – Almir (vocais), Liebert (baixo), Lecio do Nascimento (bateria), Pedrinho (guitarra), Cleudir (teclados) e Miguel Plopsch (guitarra).
1. Amor de carnaval
2. Nascimento de um príncipe africano
3. Jovem samba
4. Rosa mais que nada
5. Canção de uma fã
6 Menina gata Augusta (Jorge Ben, Erasmo Carlos)
7. Toda colorida
8. Frases
9. Quanto mais te vejo (Jorge Ben, Yara Rossi)
10. Vou andando
11. Sou da pesada
12. Si manda
É o terceiro disco do que se poderia chamar de fase pop-rock-psicodélica de Jorge, depois dos excepcionais Jorge Ben (1969) e Força Bruta (1970), e o terceiro acompanhado pelo Trio Mocotó, um combo eletroacústico dedicado à fusão samba-rock-soul que mereceria ele mesmo uma resenha nesta Consultoria. O disco desenvolve a vertigem de imagens lisérgicas de Ben, sempre ancoradas nos episódios do cotidiano, mas sob um olhar e um ângulo sempre inusitados, que às vezes torna a paisagem irreconhecível, roçando o onírico e o imaginário. Tudo sem perder a perspectiva das questões sociais e raciais, presente na faixa-título e no tributo a Cassius Marcellus Clay, no momento em que o homenageado enfrentava a Justiça estadunidense por se recusar a lutar no Vietnã. Mas este é um álbum marcado também pelo lirismo sem preciosismo da delirante “Porque É Proibido Pisar na Grama” e pela lindíssima “Que Maravilha”, parceria com Toquinho. De quebra, Jorge registra seu rolo com Rita Lee na alegre “Rita Jeep”.
Formação: Jorge Ben (vocal e violão) e Trio Mocotó – Fritz “Escovão” (cuíca), João “Parahyba” (percussão e bateria) e Nereu Gargalo (pandeiro).
1. Rita Jeep
2. Porque É Proibido Pisar na Grama
3. Cassius Marcello Clay
4. Cigana
5. Zula
6. Negro É Lindo
7. Comanche
8. Que Maravilha
9. Maria Domingas
10. Palomaris
Objeto de intensa (e interminável) controvérsia nas hostes da Consultoria do Rock, A Tábua de Esmeralda é um disco genial de falso misticismo e imensa inspiração melódica (sem perder o swing jamais). Trata-se de um dos melhores álbuns da história da música brasileira. Tábua é um delicado bordado de samba bossa nova acelerado, com acordes de blues e sonoridades orientais, emoldurando letras com imagens fulgurantes, inusitadas, em que Ben passa poesia em estado puro por teses esotéricas que, ouvindo bem, não existem ali. Tudo isso faz com que Tábua seja um disco de estilo indefinível, existindo na transição entre sons, na terra de ninguém das fronteiras musicais. Canções como “Os Alquimistas Estão Chegando” e “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” se referem a “A Tábua de Esmeralda” original, um texto escrito por Hermes Trismegisto que deu origem à alquimia, tema que costura todas as faixas do álbum. O cotidiano visto sob ótica lisérgica ainda está aqui, como em O” Namorado da Viúva”, a clássica “Cinco Minutos” e “O Homem da Gravata Florida”, mas Ben investe também no hermetismo de “Zumbi” e do ápice do disco, a bowieniana “Herrare Humanum Est”.
Formação: Sem referências, com identificação apenas do próprio Jorge ao violão e vocais, com arranjos de Osmar Milito, Darcy de Paulo e Hugo Bellard.
1. Os Alquimistas Estão Chegando
2. O Homem da Gravata Florida
3. Errare Humanum Est
4. Menina Mulher da Pele Preta
5. Eu Vou Torcer
6. Magnólia
7. Minha Teimosa, Uma Arma pra te Conquistar
8. Zumbi
9. Brother
10. O Namorado da Viúva
11. Hermes Trismegisto e a sua Celeste Tábua de Esmeralda
12. Cinco Minutos
Gil & Jorge: Ogum, Xangô [1975]
Originalmente um LP duplo, este encontro dos dois mestres da música negra brasileira, em seus respectivos auges criativos, é um dos momentos mais obrigatórios de nossa história fonográfica, como sempre, pairando entre o rock e a canção brasileira e, por isso mesmo, um álbum indefinível. Ouvido por um seleto público quando de sua edição, o disco foi pouco a pouco ocupando um lugar de monólito do pop crioulo. São nove faixas, em torno das quais, e com o auxílio tão somente de seus dois violões e de delicada cozinha com percussão de Djalma Correa, Jorge e Gil tramam longos improvisos, oferecendo novas e surpreendentes visões de suas composições. Ouça como amostra grátis a versão de 14 minutos de “Taj Mahal” e depois largue o disco se for capaz.
Formação: Jorge Ben (vocal e violão), Gilberto Gil (vocal e violão), Wagner Dias (baixo) e Djalma Corrêa (percussão).
1. Meu Glorioso São Cristóvão
2. Nega
3. Jurubeba
4. Quem Mandou (Pé na Estrada)
5. Taj Mahal
6. Morre o Burro, Fica o Homem
7. Essa É pra Tocar no Rádio
8. Filhos de Gandhi
9. Sarro
Trata-se de um disco que representou um marco na carreira de Ben, sendo o álbum no qual ele definitivamente trocou o violão acústico pela guitarra elétrica, simbolizando um movimento de Jorge rumo ao pop de massas que depois descambaria para uma certa pasteurização de seu som, mas que, aqui, está fresco e pleno de criatividade. Neste álbum, Jorge abandona a delicada sutileza acústica dos registros anteriores para cair de boca no samba-funk-soul com pesadas bases de sopro (o núcleo duro da Banda Black Rio, à frente Oberdan), bateria cheia de viradas e conduções vibrantes (Gustavo da Cor do Som, com o luxuosíssimo apoio de Wilson das Neves), combinados com uma luxuriante variedade de percussões afro-brasileiras e com a guitarra de Jorge regulada no modo funk-soul do Harlem setentista. Para além da autoexplicativa “Ponta de Lança Africano (Umbabarauma)”, o livro “1001 Albums You Must Hear Before You Die” dá a melhor definição do disco: “manifesto do soul carioca”, que combina o melhor de James Brown e Sly Stone.
Formação: Banda Admiral Jorge V – Jorge Ben (vocal e guitarra), João Roberto Vandaluz (piano), Dadi Carvalho (baixo), Gustavo Schroeter (bateria), Joãozinho Pereira (percussão) – mais os músicos de apoio Pedrinho e Wilson das Neves (bateria e timbales), José Roberto Bertrami (teclados), Luna (surdo), Neném (cuíca) Djalma Corrêa, Hermes e Ariovaldo (percussão) Oberdan Magalhães e Márcio Montarroyos (metais).
1. Ponta de Lanca Africano (Umbabarauma)
2. Hermes Trimegisto Escreveu
3. O Filósofo
4. Meus Filhos, Meu Tesouro
5. O Plebeu
6. Taj Mahal
7. Xica da Silva
8. A História de Jorge
9. O Camisa 10 da Gávea
10. Cavalheiro do Cavalo Imaculado
11. África Brasil (Zumbi)
Um dos maiores gênios da música mundial e meu ídolo máximo da MPB! E Porque É Proibido Pisar Na Grama é a música mais bonita que existe…
Show!!! esses primeiros álbuns não conheço e preciso me dedicar mais…ótima pauta, ótimo texto!
Abraço!