Reflexões sobre o consumo e a produção de música [II]
Por Ronaldo Rodrigues
Tempos atrás ouvi uma fita digitalizada que continha uma rara entrevista concedida pela banda brasileira Vímana à Rádio Eldo Pop nos idos de 1976-1977. Nela, Lulu Santos respondia uma pergunta do lendário Big Boy e no meio das divagações, ele dizia: o sucesso está mais relacionado com a distribuição do que com a qualidade da música em si. Aquilo ficou na minha cabeça durante um bom tempo e depois de mais um bom tempo, só posso dizer que concordo com esta opinião de um dos maiores hit-makers do Brasil.
Pegando o gancho do que foi discutido no primeiro artigo desta série de reflexões sobre o consumo e a produção de música (veja o texto na íntegra aqui), aprofundaremos um pouco a questão da distribuição da música nos dias de hoje. Nunca se produziu (em volume, em números) tanta música quanto se produz hoje. E a razão primordial para isso é bastante pragmática – o aumento da população e relativa democratização dos meios de se produzir música (equipamentos e instrumentos musicais). Este é um dos pilares da discussão deste texto.
Por outro lado, com o surgimento do mp3, da popularização da internet banda larga e do advento de uma cultura voluntária de compartilhamento de conteúdo (uma marca positiva indelével das atuais gerações), toda a cadeia de distribuição de música ao longo das duas últimas décadas se desmontou e diminuiu drasticamente de escala. Esta cadeia era constituída por gravadoras, rádios, lojas de discos, periódicos de música e a programação musical da TV. Este é o segundo pilar de discussão.
Com relação à quantidade de música produzida, novamente retorno com as analogias com outros produtos/mercados. Poucos setores comerciais ou industriais conseguem ter viabilidade quanto existe um volume muito grande de concorrentes. Alguns exemplos de setores que tem um nível de concorrência extremo são bares/restaurantes, táxis, ou vestuário – estes são os primeiros que vêm a mente. Contudo, são produtos/serviços de consumo muito rápido, pequena escala de oferta ou que estão atrelados a uma questão de disponibilidade geográfica. A música é um produto de entretenimento, que estabelece uma relação imediata de contato, mas quando é comercializada pretende-se como um “bem” de certa durabilidade, algo para ser ouvido, revisitado e apreciado várias vezes pelo seu consumidor. O suporte da música (a mídia física) pode durar décadas, se bem conservado. E os setores que lidam com bens duráveis são os mais suscetíveis a naufragar em um cenário de competição extrema. Pense como você se comportaria ao entrar em uma loja de eletrônicos e se deparasse com 100 marcas de televisão, cada uma com 3 modelos distintos. O processo de escolha de qual televisão comprar seria insano. Se para algumas delas você tivesse visto uma propaganda chamativa, alguma oferta muito tentadora, a indicação de algum amigo ou do próprio vendedor da loja, isto provavelmente guiaria sua decisão (mas há, obviamente, outros fatores possíveis para escolha). Do ponto de vista dos 100 fabricantes de TV, a dificuldade de sobrevivência seria ainda mais óbvia.
A palavra “escolha” é o terceiro pilar desta reflexão. E a partir desta retomamos a declaração de Lulu Santos há mais de 40 anos atrás. O quanto nossa escolha de consumo é baseada naquilo que nós mesmos buscamos, ativamente, e quanto é baseada naquilo que nos é oferecido, seja em um ponto de venda, seja por um meio de comunicação em massa ou a partir do aval de alguém que gostamos. Cada um dos elos da cadeia de distribuição de música citados acima fazia com que a “escolha” do ouvinte de música fosse direcionada de diferentes formas para a aquisição do “produto música”, dentro de um certo grau limitado de opções. As rádios trabalhavam massificando uma determinada canção, tocando músicas formatadas (em duração, estilo, estética) para fixar na cabeça do ouvinte e criando toda a forma de vínculos entre canção e ouvinte; as gravadoras, selecionando músicas/artistas de maior potencial comercial e os colocando no mercado (com estratégias muitas vezes heterodoxas e condenáveis); as lojas de discos oferecendo um conjunto racionalmente limitado, filtrado e segmentado de opções de discos para serem comprados; as revistas de música fazendo uma curadoria e uma espécie de ranking do que estava no mercado, em plena consonância com as ações dos demais elos da cadeia, e por aí vai. Apenas uma fração de tudo que era gravado estava dentro deste grande esquema de distribuição e era, de fato, plenamente consumido pelo público. Quanto mais dinheiro se injetava em um determinado nome, mais rápido e com mais força essas engrenagens rodavam a favor do artista, de suas músicas e de sua gravadora. Obviamente, que para conseguir que uma gravadora investisse esforços em um artista, havia qualidade em sua obra ou apelos do tipo “o cara certo na hora certa”. Se não fosse assim, a coisa simplesmente não acontecia e isso era a grande seleção natural do mercado da música, que regulava uma oferta limitada de artistas para o grande público e fazia com que o consumo atingisse grande escala.
Imagine a realidade oposta – se tudo o que foi lançado em um ano como 1954 fosse tocado pelas rádios norte-americanas. Dificilmente se ouviria a repetição de alguma música em específico, ou quiçá, até mesmo poucas repetições de artistas seriam ouvidas. A curva de assimilação de uma música (ou de um disco) jamais seria atingida. Elvis Presley não ficaria amplamente conhecido pelo público – seu nome estaria no mesmo patamar que o de todos os artistas e bandas que lançaram compactos naquele ano e músicas com “That’s Allright” cairiam em uma vala comum. O sucesso fenomenal de Elvis Presley (e isso se aplica a muitos outros artistas) foi cunhado a custa de exaustivas reproduções de suas faixas nas rádios seguida de uma pesada estratégia de marketing disseminada em toda a cadeia de distribuição.
Sem entrar no mérito dos meandros dessa cadeia, o link entre passado e presente se faz baseado no quanto a ausência da distribuição maciça de música guia a forma como a música é consumida hoje. Vigora nos dias hoje um pensamento equivocado quanto ao consumo de música, já que apenas uma parcela ínfima dos ouvintes faz um processo de escolha ativo, uma busca ativa por música, até descobrir uma música ou banda que o agrade. A grande maioria de quem ouve música, ouve aquilo que lhe é ofertado, e esse processo de oferta é absolutamente fragmentado nos dias de hoje. A fragmentação desta oferta acontece também em decorrência do grande número de opções de entretenimento, que competem com a música pela atenção (e o dinheiro) das pessoas. A internet, ao contrário do que se preconizou no passado, não é um efetivo mecanismo de oferta. Ela só funciona para esta finalidade com grandes injeções de dinheiro e, nesse ponto, em nada difere do que existia no passado (rádios, mídia impressa ou TV). A porta de entrada para a internet é a busca, e a grosso modo as pessoas não ouvem música buscando-a ativamente, mas sim, ouvindo aquilo que chega até elas. As bandas por si só tem chances remotas de conseguir atingir um grande público sem a cadeia de distribuição. E infelizmente, a qualidade musical é um parâmetro basicamente desconsiderado por quem busca ofertar música em larga escala para o público atualmente – o importante é a coisa custar pouco para ser feita, ter um apelo imediato (ser dançante, sexualizada, polêmica ou engraçada) e exigir pouquíssimo das faculdades mentais do ouvinte. Se um pouco de qualidade musical puder ser associado a estes fatores, ótimo…caso não, tudo bem, também.
A filosofia “on demand” que predomina nos serviços de streaming musical (e também de vídeo) tem alcance limitado. Note que grande parte dos usuários recorre a playlists produzidas pelas próprias plataformas (o mesmo conceito dos tempos do rádio); o Youtube recomenda vídeos ao usuário baseado no que ele já viu e até os dispara de forma automática após a conclusão de um vídeo e o Netflix expõe seu catálogo visualmente para o assinante e dá sugestões de próximos filmes/séries a ver. Todas essas plataformas tem também, de uma forma ou outra, uma seção de “trend-topics”, que nada mais são que uma tradução moderna do tradicional “boca-a-boca”. Então, podemos perceber, com esses e outros exemplos possíveis, que são poucos os usuários que chegam nas plataformas para ouvir música sabendo exatamente o que querem ouvir e menos ainda na ânsia de sair em busca de alguma novidade recém lançada. E isso se torna mais dramático quando a disponibilidade de itens de escolha possível ultrapassa a casa dos milhões de opções. A escolha aparentemente ativa, quando surge, em geral é fruto do trabalho de marketing feito na era de ouro da indústria fonográfica, quando o ouvinte seleciona aquele disco ou música de 25, 30, 40 anos atrás.
O mais curioso, a meu ver, é perceber o poder destas estratégias de marketing do passado. Isto é uma questão que salta a mente quando se analisa bandas como Beatles, Rolling Stones, Led Zeppelin, Pink Floyd ou artistas como Michael Jackson, Madonna e U2, que contabilizam décadas de carreira sendo ainda líderes de venda de discos e lotando arenas ao redor do mundo (no caso dos que estão ativos). Independentemente das qualidades musicais que estes grupos apresentam, podemos afirmar sem grande chance de erro que qualquer outra boa banda da atualidade alcançaria um grande patamar de reconhecimento se tiver a sua disposição o mesmo investimento e a mesma estrutura de distribuição que todos estes artistas tiveram em suas trajetórias. Foram milhões de dólares ao longo de décadas. É uma questão pragmática, numérica – ajustando-se ao espírito da época ou com uma originalidade ímpar, tendo boas músicas (isto pode ser comprado) e com investimento pesado em distribuição, o retorno acontece, pois, reafirmo, a maioria das pessoas quer saber o que está acontecendo, e não querem fazer acontecer. É uma passividade quase que inerente ao entretenimento.
Belo texto para iniciar o ano Ronaldo!! Parabéns!!! Acho que as variáveis são tantas para serem abordades que é até dificil ser conciso para elaborar o texto!!!
Belíssimo texto de continuação, Ronaldo. No anterior, eu já havia feito um comentário sobre o fato das rádios ainda serem os maiores expoentes daquilo que será considerado como um sucesso ou não. E neste texto, você brilhantemente avançou ainda mais com reflexões a este respeito.
Por isso quando alguém normalmente argumenta que “se for bom vai fazer sucesso e vender”, eu já olho de maneira torta. O rock não é mais o gênero que toca nas rádios, mas digamos que ganhou um status de “cult” dentro do mainstream e hoje possuímos pequenos hypes dentro do underground (atualmente com o Greta Van Fleet, há uns 5-7 anos com o Ghost).
Tudo vai depender do que os grandes grupos midiáticos vão querer pelo contexto e aí expor o máximo possível para vender e lucrar. Foi assim com o rock nos anos 80, está sendo com o rap atualmente e será com algum outro gênero no futuro.
Que baita texto Ronaldo. Concordo em número gênero e grau. O pessoal consome o que lhe é oferecido. Ali no final da década passada, com o boom do orkut e do blogger, surgiram diversos caçadores de raridades no mundo, mas isso durou pouco. É mais fácil deixar o Spotify e o Youtube te indicarem o que ouvir, do que buscar aquilo que pode te agradar através de uma busca mais refinada. Parabéns!
Obrigado pelos comentários, pessoal!