Mark Sandman para iniciantes

Mark Sandman para iniciantes

Por Amanda Cipullo

“We are Morphine, at your service”: era com estas palavras que Mark Sandman costumava iniciar seus shows. E não à toa. A frase, inclusive cogitada para título de um documentário sobre a vida do frontman – depois intitulado Cure for Pain: The Mark Sandman Story – diz muito sobre o próprio Sandman. Afinal, o trio pouco convencional, composto por baixo, saxofone e bateria, é reflexo da própria inconvencionalidade da vida de Mark, o músico de alma “on the road”, que rodou por várias paradas e formou uma das bandas mais autênticas dos anos de 1990, o Morphine.

Em 2019, completam-se 20 anos de sua morte – e até para isso Sandman saiu do script: faleceu no palco, após sofrer um ataque cardíaco fulminante, durante uma apresentação na cidade de Palestrina, na Itália. Uma vida toda a serviço da música. E mesmo que você nunca tenha ouvido falar em Morphine ou em Mark Sandman, é bem provável que já tenha escutado algumas de suas canções tocando por aí. E se ouviu, não tem como esquecer.

 

 

 

 

 

 

 

A primeira vez que escutei o baixo de duas cordas, tocado com slide, e a voz cavernosa de Sandman, fui instantaneamente transportada para um cenário de filme noir. O som me parecia a trilha perfeita para uma fuga perigosa por uma estrada desconhecida e cheia de curvas sinuosas. E a sensação era maravilhosa.

Naquela época, eu ainda não sabia, mas a minha análise infantil – eu devia ter 11 ou 12 anos – fazia todo o sentido. Durante parte dos anos de 1980, Sandman morou no Alaska, rodou por alguns lugares da América Central e até passou uma temporada no Brasil. Mais tarde, quando descobri isso, entendi o motivo do meu delírio ao ouvi-lo pela primeira vez: os indícios da vida nômade sempre estiveram registrados em suas músicas.

Em 1984, junto com Billy Conway (bateria), David Champagne (guitarra) e Jim Fitting (harmônica), formou o Treat Her Right, banda de blues rock – que contava também com eventuais participações do saxofonista Dana Colley – e com a qual lançou 3 discos: Treat Her Right (1986), Tied to the Tracks (1989) e What’s Good for You (1991).
A simplicidade do Treat Her Right é deliciosa. Músicas como “I Think She Likes Me” e “Rhythm And Booze” poderiam facilmente entrar em qualquer playlist “fuck rock”.

E, bem, embora o som tivesse uma pegada muito mais blues – com pitadas de country e folk – o sax de Colley, a bateria de Conway e a guitarra base, com som de baixo, tocada por Sandman, já apresentam alguns dos elementos que mais tarde iriam compor o Morphine.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Após a dissolução do Treat Her Right, Sandman, que já desejava montar um projeto paralelo com Dana Colley, convidou o saxofonista, e também o baterista Jerome Deupree, para integrar um trio. Para configurar essa nova composição, tudo o que eles precisavam era de um baixo de duas cordas, tocado com slide, sax barítono e bateria. Para o nome, uma referência a Morpheus, o Deus dos Sonhos descrito na mitologia grega como um ser alado, capaz de assumir muitas formas. Assim surgiu o Morphine – Jerome Deupree, no entanto, acabou sendo substituído, por Billy Conway, durante as gravações do álbum Cure for Pain, por conta de um problema de saúde.

Ao longo de 7 anos, o grupo lançou excelentes álbuns: Good (1992), Cure for Pain (1993), Yes (1995), Like Swimming (1997) e The Night (2000) – este lançado apenas após a morte de Mark Sandman. Além disso, a discografia da banda também conta com uma compilação de lados B, canções usadas em trilhas sonoras e algumas inéditas, chamada B-Sides and Otherwise (1997), o ao vivo Bootleg Detroit (2000) – um registro feito em 1994, por um fã e mixado sob a supervisão de Sandman, mas também lançado apenas após sua morte – e a coletânea The Best Of: 1992-1995, lançada em 2003.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Embora Cure for Pain seja o disco mais conhecido – talvez por ser o mais “fácil” e/ou acessível para aqueles que ainda não estão familiarizados com o som da banda – todos os demais álbuns são excelentes. Em Good, somos apresentados ao universo onírico, beat e noir do Morphine, destacam-se canções como: “Saddest Song”, “Have a Luck Day”,“You Look Like Rain”, “The Other Side”, “I Know You I, “I Know You II”. Cure for Pain, traz as conhecidas “Candy”, “Buena”, “Head with Wings” e a faixa-título “Cure for Pain”, possivelmente a música que melhor resume a busca pela “cura da dor” de Sandman, ao longo de sua trajetória musical. Além disso, destacam-se também “Let’s Take a Trip Together”, “Dawna” e “Miles Davis’ Funeral”, a belíssima homenagem feita para Miles Davis – que faleceu 2 anos antes do lançamento do álbum.

Em Yes, o aclamado terceiro disco, recheado de referências jazzísticas, Dana Colley passa exibir todo o seu virtuosismo, ao tocar sax duplo. Até, e principalmente, o ignorado Like Swimming – para muitos, um álbum menos importante – conta com canções excelentes, como: “Early to Bed” “Like Swimming” e “French Fries with Pepper”. Em The Night, Jerome Deupree volta a participar como baterista, junto com Billy Conway. O disco traz novos elementos em suas composições como teclado, violino e guitarras elétricas e acústicas. Nele, estão canções como: “Top Floor Bottom Buzzer”, “I’m Yours, You’re Mine”, “Take Me With You” e também a belíssima “The Night” , faixa-título do álbum, que soa como uma espécie de despedida de Sandman.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Após a morte de Mark Sandman, Dana Colley, Jerome Deupree e Billy Conway, formaram o Morphine Orchestra, projeto com o qual se apresentavam, junto com convidados, em tributo ao legado de Sandman.

Em 2005, depois da tragédia do furacão Katrina, Colley conheceu o músico de blues Jeremy Lyons. Assim como Sandman, o guitarrista também tinha um baixo de 2 cordas e começou a aprender algumas músicas do Morphine. Dana, então, o convidou para participar de alguns shows. E foi assim que Colley, Deupree e Conway – embora Jerome seja o principal baterista da banda, Billy Conway costuma juntar-se ao grupo em alguns shows – em parceria com Lyons, criaram o Vapors of Morphine, projeto que também faz tributo à banda original, mas que conta com a inserção de algumas canções novas no repertório, às vezes com o sax barítono assumindo o papel do baixo, e Jeremy na guitarra elétrica ou no bouzouki.

Nos últimos anos, o Vapors of Morphine esteve duas vezes no Brasil: a primeira, em 2014, ano em que fizeram uma apresentação gratuita no Largo da Batata, em São Paulo. A segunda, em 2017, no Cine Joia, também em São Paulo. Tive a chance de vê-los nessas duas ocasiões e é realmente emocionante a forma como Mark Sandman é evocado no palco durante as apresentações, dando-nos a oportunidade de mantermos uma conexão com toda intensidade do músico e poeta da estrada, mesmo tantos anos após sua morte. No final das contas, a obra deixada por Sandman é cura para as nossas próprias dores também.

6 comentários sobre “Mark Sandman para iniciantes

  1. Não sou profundo conhecedor da banda, mas essa é daquelas poucas que acabaram ganhando o rótulo de alternativo (que nem de longe define é o único que define suas muitas influências, principalmente do jazz e do blues) das quais tenho apreço.

    Até botei para ouvir o disco Good aqui no youtube. Estou obtendo uma surpresa positiva por sinal principalmente com os arranjos instrumentais. Esse baixista (que é o Sandman por sinal) é daqueles que sempre admirei. Um belíssimo texto, Amanda! Daqueles de incentivarmos ir atrás de algo que pouco conhecia.

  2. Matéria fantástica e muito informativa para quem nunca ouviu falar dessa lenda da música. Só um adendo, sempre é bom lembrar também do álbum solo “Sandbox”, também lançado de maneira póstuma (em 2004, se não me engano) e que traz canções sensacionais, como por exemplo: “Patience”, “Tomorrow”, “Doreen” e “Hombre” (esse cantada metade em espanhol :p).

    Parabéns pela matéria!!!

  3. Fiquei surpreso por encontrar algo do Morphine e de Mark Sandman por aqui. Foi uma banda extremamente única e justificou como poucas o selo de banda “alternativa”. Som extremamente elegante e sofisticado. É interessante porque, a meu ver, estava além da velha alcunha de “banda subestimada”. O Morphine tinha seu próprio caminho, sua base de fãs muito particular e especial.

    Há duas coisas importantes que gostaria de comentar:

    – Havia, há uns 12 anos atrás, uma banda-tributo ao Morphine em São Paulo chamada Sharks. Era incrível. Eu e alguns amigos fomos a pelo menos 4 shows deles. Era incrível e havia um saxofonista jovem muito talentoso que tocava com dois sax como Dana.

    – E essa é a pérola que faltava ao artigo: há um documentário sobre a vida do Mark Sandman chamado ‘Cure for Pain: The Mark Sandman Story” que é belíssimo (me levou às lágrimas algumas vezes) e mostra o quanto esse homem era imenso. Realmente um músico especial assim como um ser-humano muito intrigante e que parecia viver em outra sintonia. Há esse documentário no Youtube. Há uns anos atrás havia uma versão legendada em português. Parece que agora o mais próximo que há é em espanhol. Vale muito muito a pena assistir.

    Obrigado pelo adorável artigo, Amanda. É uma banda que descobri por acado e se tornou muito querida com álbuns realmente fantásticos que te transportam para lugares mágicos. Até hoje fico pensando no quanto essa banda poderia ainda produzir se Sandman estivesse vivo. Uma trajetória única. Mas esse estranho sujeito não pertencia a esse mundo.

    Mais uma vez, muito obrigado.

  4. Demorei pra descobrir este artigo aqui. Excelente! Não se escreve muito sobre o Morphine por estas bandas. Vou colaborar: o Treat Her Right “Tied to the tracks” saiu no Brasil antes do Morphine, em vinil e CD.

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