Ma Rainey: A malcomportada mãe do blues
Por Amanda Cipullo
“Where Ma Rainey and Beethoven
once unwrapped their bedroll
Tuba players now rehearse around the flagpole”
A frase acima vem da canção “Tombstone Blues”, na qual Bob Dylan homenageia Ma Rainey, conhecida por ser a intensa Mãe do Blues, e não à toa. Gertrude Malissa Nix Pridgett Rainey, não foi pioneira no estilo, é verdade, mas foi a primeira mulher de sua geração a fazer sucesso pelos palcos dos Estados Unidos com um repertório blues, abrindo as portas para todas as grandes vozes, cheias de paixão e fúria, que vieram depois.
Suas canções, repletas de referências sexuais, desilusões amorosas, brigas e confusões, externalizavam a intensidade de sua própria vida. Mulher negra e bissexual, dona de uma voz arrebatadora, que deixou uma marca profunda na história da música, com canções que viraram hinos do blues, como a famosíssima – e incansavelmente regravada – “See, See Rider”.
Sua trajetória musical e pessoal é cheia de lendas e datas imprecisas. Há quem diga que começou a se apresentar em shows de talentos e igrejas, em Columbos, Georgia, aos 14 anos; outros dizem que foi aos 16. Também não se sabe ao certo o ano e nem a cidade em que nasceu – pelo que consta, ela própria dizia ter nascido 1886 na Georgia, mas há registros que indicam que nasceu em 1882, no Alabama.
Bem, isso importa?
O que se sabe, no entanto, é que após casar-se com Will Rainey, assumiu o nome artístico com o qual ficou conhecida – incorporando o Ma e o sobrenome de seu companheiro, que se apresentava como Pa Rainey. Junto com ele, fundou a “Alabama Fun Makers Company”. Pouco depois, entraram para a “Chappelle’s Rabbit’s Foot Company”, famosa trupe de artistas negros, criada por Pat Chappelle, que percorria o país fazendo apresentações vaudeville. Fizeram parte também da “Globe Stock Company” e, em 1914, eram conhecidos com “Rainey e Rainey: os assassinos do blues”.
O casamento e parceria duraram até cerca de 1916. Depois de se separarem, Ma continuou se apresentando sozinha. Nos palcos, era uma força da natureza – muito mais arrebatadora do que as gravações poderiam registrar, alguns mais tarde. Cantora poderosa, dotada de uma fraseado vocal magistral, que interpretava suas canções com paixão e verdade.
No anos seguintes, em New Orleans, conheceu músicos como Joe “King” Oliver, Sidney Bechet e, é claro, Bessie Smith, a então jovem cantora com quem estabeleceu uma conhecidíssima parceria musical e protagonizou histórias, que criam uma mítica em torno das duas. Reza uma dessas lendas – corroborada pela irmã de Smith – , que foi Ma Rainey quem ensinou Bessie a cantar, após tê-la sequestrado e a levado para a “Chappelle’s Rabbit’s Foot Company”. Há quem diga, também, que as duas foram amantes durante o período em que se apresentavam juntas, isso, vale ressaltar, em uma época em que a sexualidade das mulheres era extremamente reprimida, muito mais do que ainda, infelizmente, é hoje. Há alguns relatos de que, inclusive, mais tarde, em 1925, Rainey teria sido presa por conta de referências a relações homossexuais em algumas de suas canções, como por exemplo em “Prove it on me”, na qual ela diz:
“I went out last night with a crowd of my friends
It must’ve been women, ‘cause I don’t like no men.”
Aliás, por falar em referências e sexo, uma outra lenda famosa que corre é que em “See See Rider” Ma Rainey não se refere um homem ou a uma mulher que tem muitos parceiros, como pode sugerir o nome da canção, que é um sinônimo para “easy rider” – um “caminho fácil”, por assim dizer -, mas sim a uma prostituta, por quem foi apaixonada e a abandonou para ficar com um de seus outros amantes. Ou, ainda, pode sugerir que a separação se deu porque ela não podia estar com a garota quando “seu homem”, o cafetão, chegava. Ressaca amorosa das bravas, até para o mais blues dos bluseiros, não é mesmo?
Bom, mas deixemos os mitos e voltemos aos fatos.
Em 1920, Mamie Smith – a primeira mulher negra a gravar um disco, com as canções “Crazy Blues” e “It’s Right Here For You (If You Don’t Get It, ‘Tain’t No Fault of Mine)”. Alguns anos depois, em 1923, Ma Rainey gravou seus primeiros registros em estúdio, após ter sido “descoberta” por Jay Mayo “Ink” Williams, um produtor da Paramount Records.
Nesse mesmo ano, fechou contrato com a gravadora e gravou dez faixas, incluindo: “Bad Luck Blues” e “Moonshine Blues”. Ao longo de cinco anos seguintes, gravou mais de cem canções – todas as gravações de sua carreira foram feitas nessa época pela Paramount; algumas delas, inclusve, ao lado de nomes como Louis Armstrong. O sucesso era tanto, que ganhou dinheiro o suficiente para comprar um ônibus com seu próprio nome para fazer turnês.
Antes do fim de seu contrato com a Paramount, ainda gravou cerca de 20 música. Depois, em 1935, com o declínio do vaudeville e a impopularidade do blues, volta a Columbos, local onde passa os últimos anos de sua vida dirigindo os teatros “The Lyric” e “O Aeródromo”. Em 1939, falece na cidade de Roma, na Georgia, após sofrer um ataque cardíaco.
Após sua morte, foi homenageada por inúmeros outros artistas, como por exemplo o compositor e cantor francês Francis Cabrel, na canção “Cent Ans de Plus” e Memphis Minnie, em um tributo gravado pela guitarrista, um anos depois do falecimento de Rainey.
Bem mais tarde, já em 1990 foi introduzida ao Blue Foundation’s Hall of Fame e, também no mesmo ano, ao Rock & Roll Hall of Fame. Em 2004, “See, See Rider” entrou para o Grammy Hall of Fame. Bem, não que esse tipo de formalidade queira dizer algo para a Mãe do Blues, cuja a autenticidade, voracidade e desobediência, ainda hoje reverberam tanto pelo blues quanto pelo rock ‘n’roll.
Texto magnífico, de uma das maiores vozes do blues. Essa mulher cantava muito. Como é bom ver outros estilos além do rock aqui na Consultoria. Baita resgate.
Muito bom. Texto e artista excelentes!