Los Shakers – La conferencia secreta del Toto’s Bar [1968]
Por Eudes Baima
MUITO ALÉM DE UM SGT. PEPPER’S CUCARACHA
Invasão Britânica no Cone Sul
Engana-se redondamente quem acha que a “british invasion” se limitou à América do Norte. Ela varreu o continente americano, como se diz, do Alaska à Patagônia. E não poupou nem mesmo as remotas esquinas do extremo Sul, nem as reentrâncias da romântica Montevidéu, de espírito insular e varrida pelos cortantes ventos polares.
Ali, os jovens Osvaldo e Hugo Fattoruso foram atingidos violentamente pelos iê-iê-iês soprados por outros ventos, estes vindos do Norte e de uma ilha de verdade, a Inglaterra. Atingidos violentamente pelas melodias e ritmos do rio Mersey, os irmãos capitularam alegremente aos acordes alienígenas que acordaram a sonolenta e sóbria capital uruguaia e de repente estavam eles mesmos empunhando guitarras e órgãos elétricos e, num abrir e fechar de olhos, fazendo às vezes de Lennon & McCartney platinos.
Filho de Peixe…
Na verdade, a aproximação dos irmãos Fattoruso com a música remontava ao seio familiar. Segundo Hugo Fattoruso, seus pais eram amantes da música:
“Minha mãe estudou canto lírico, meu pai consertava rádios e vitrolas, das de 78 rpm até as mais modernas. Muita música se ouvia em nossa casa: clássica, popular, tangos e jazz“.
Mais do que isso, o aprendizado musical dos meninos foi radicalmente variado, incluindo nos seus ensinamentos musicais mais antigos A. Dvorák, Luiz Gonzaga, Louis Armstrong e Dorival Caymmi, além de óperas, zarzuelas, negros spirituals, candombes e tambores de Montevidéu.
O aprendizado musical formal, contudo, de Hugo Fattoruso começou aos sete anos de idade, com uma professora de bairro com o estudo safona. Hugo recorda:
“Logo no começo, Polola (que é como a chamávamos, não me recordo de seu nome verdadeiro) recomendou a meus pais que me fizessem estudar piano, por ser um instrumento mais completo do que o acordeom, senão o mais completo“.
Conforme o Dicionário Cravo Albin, “de tudo o que aprendeu, o que ficou de mais agradável, para Hugo Fattoruso, foi o repertório de J. S. Bach, M. Clementi, M. Ravel e B. Bartók, que aprendia pelos discos; de mais útil, os métodos “O Pianista Virtuoso” (Ed. Irmãos Vitale), de C. L. Hanon e “48 Exercícios para Piano” (Ed. Vitale), de J. Pischina”. “Para preparar e manter em forma dedos e mãos. Estudo com eles até hoje e para sempre”, diz Hugo.
Também vem de cedo a intensa relação dos irmãos Fattoruso com a música brasileira. Além da proximidade geográfica e radiofônica, seus pais os puseram para estudar com Iris Segundo, professora de piano brasileira radicada no Uruguai. O que os aproximou igualmente de ídolos brazucas. Diz Hugo em depoimento ao Dicionário Cravo Albin: “Eles sensibilizaram-me e estimularam-me muito, pela alegria, a mágoa, a ginga e o coração na música.” Para depois citar Pixinguinha, Bola Sete, Dorival Caymmi, Maysa e Tito Madi.
Além dessas referências, destaca, na publicação citada, “a música dos afro-descendentes, o sentimento e o pulso preto; de meu país o candombe e, dos Estados Unidos, Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Oscar Peterson.“
Caindo na Vida
Com essa rica base musical, a aventura beatlemaníaca dos rapazes estava desde sempre destinada a ir além da idolatria pelos Fab Four, embora naturalmente a banda inglesa tenha sido o elemento detonador de tudo.
Em pouco tempo, os irmãos caíram na vida, arregimentando Caio Villa para a bateria e Roberto Capobianco para o baixo, ficando Hugo e Osvaldo a cargo das guitarras, e formando a primeira encarnação de Los Shakers. Logo, no verão de 1965, viraram atração na boate I’ Marangatú, de Punta Del Leste, onde olheiros da indústria fonográfica Argentina (sim, o destino fatal de todos os uruguaios!) se interessaram.
No mesmo ano, já estavam morando em hotéis vagabundos de Buenos Aires e tocando a inacreditável média de 15 shows por semana, carga-horária que crescia muito nos fins de semana. Em compensação o nome dos Shakers virou rapidamente moeda corrente na capital argentina e uma legião de seguidores começou a se formar.
Foi um pulo para que gravassem seu primeiro compacto, “Break it all”, uma faixa original com a qual iniciariam a ruptura com a condição de banda de baile especializada em covers dos Beatles. O estouro da faixa na Argentina e no Uruguai, que se transmitiu moderadamente para o Brasil e outros países da região, deu moral à banda para, depois de outros êxitos em discos avulsos, gravar o primeiro LP, chamado simples e diretamente Los Shakers. O disco é todo formado por faixas autorais, mas emulando esperta e competentemente a sonoridade dos Beatles em sua primeira fase. Este LP foi o passaporte para um translado da banda para os Estados Unidos, onde, depois de algumas apresentações, gravam o disco Break it all (título do primeiro single), que reúne as melhores canções da banda até ali, mas com o diferencial da qualidade técnica dos estúdios norte-americanos. Feito para o mercado gringo, o disco estourou mesmo foi na Argentina, colocando a banda na vanguarda artística e técnica do rock sul-americano. Alguém disse aí Tecnicolor? Como os Mutantes, a banda não fez carreira internacional, em parte pela recusa de excursionar pela América do Norte.
Seguiram-se alguns novos sucessos em compactos que registraram um moderado mas real afastamento da banda da pura influência dos Beatles e a emergência da riquíssima formação musical dos irmãos Fattoruso, lançando-os em diferentes direções a partir dos poderes do rock para emular distinta influências e variados experimentos. Esse clima gera um disco de transição, o álbum Shakers For You que marca um ponto de inflexão para a música do grupo e para o conjunto do rock sul-americano. A canção “Never Never” que abre este disco, por exemplo, é considerada por alguns (que certamente desconhecem o trabalho de Jorge Ben) como o primeiro samba-rock, chegando a escalar as paradas brasileiras. “I Hope You Like It 042”, também deste disco, foi elogiada por artistas como Luis Alberto Spinetta, que exagera: “había escuchado la música perfecta, algo mejor y más moderno que The Beatles“. Caio Villa registra assim este momento: “nosotros en el comienzo eramos una consecuencia de The Beatles. Luego, con el tiempo, fuimos adquiriendo nuestra propia personalidad con las composiciones nuestras“.
Obra-prima: La Conferência Secreta del Toto’s Bar
Mas aqui também o amadurecimento dos Shakers é bem parecido com o dos Beatles. A sensibilidade cultivada desde a infância, um conhecimento da música mundial e regional acima da média dos jovens da época, uma eficiente antena para a própria época e uma formação musical sólida davam aos Shakers a possibilidade de, decolando da base psicodélica, traçar uma rota plena de originalidade, com uma capacidade imensa de incorporar distintas sonoridades.
Por isso mesmo, é extremamente injusto, embora elogioso, o manjado epíteto de Sgt. Pepper’s platino dado ao disco seguinte da banda e sua obra máxima, La Conferência Secreta del Toto’s Bar, lançado em 1968. Parece incrível que o disco conste de material gravado em 1967, mais ou menos no momento em que o clássico dos Beatles era lançado, e com a banda já decidida a se separar. Mas talvez este iminência do fim tenha sido um elemento catalizador dos melhores esforços doa quatro músicos. Seja como for, La Conferência é um monólito do rock latino-americano, no mesmo nível dos três primeiros discos dos Mutantes ou da obra de Spinetta na década seguinte.
O que chama imediatamente a atenção de quem não enfrenta a obra com ideias pré-concebidas é que La Conferência traz da fase madura do Fab Four, muito mais do que uma identidade no campo da composição, o clima sonoro difuso e a metodologia na incorporação de diferentes vertentes musicais, amarradas pela pegada rock. Assim, o ouvinte não vai ouvir equivalentes latinas do repertório de Sgt. Pepper’s, mas um punhado azeitado e bem articulado de canções com personalidade própria.
O título já é enigmático e referente ao ambiente cultural da época, na Argentina e no Uruguai. Segundo se conta, o Toto’s Bar era o equivalente, em Punta Del Leste, do famoso La Cueva, teatro-bar legendário de Buenos Aires que reunia intelectuais, artistas e porras loucas em geral. A tal conferência secreta naturalmente se referia à intensa atividade política clandestina que grassava na juventude da época.
O que de fato encanta no disco, contudo, era a variedade de inspirações que vai se desenrolando à medida em que a agulha desliza pelo vinil. Comentemos alguns destes momentos.
Faixa a faixa
A faixa-título talvez confirme a fama do disco de versão uruguaia de Pepper’s. Inciando com suaves e dissonantes acordes de guitarra sem distorção e piano acústico, a canção incorpora o ritmo marcial bem britânico e tem até aquelas sequências da letra cantada numa nota só, típica de John Lennon. Mas a melodia é adorável e inspirada.
Editada na mesma faixa da canção de abertura, “Mi tía Clementina” é um fox trot (ok, ok, os Beatles também tinham uma queda pelo estilo) que se desenvolve rumo a um final jazzístico, com belo solo de trumpete.
Aí vem o que considero o ponto culminante do disco, a belíssima e de melodia inusitada “Candombe”. Candombe é um ritmo típico do Uruguai, que aqui é transfigurado numa canção quase mineira, com fortes ecos de Milton Nascimento (ecos impossíveis, pois o cantor brasileiro era inda mais ou menos anônimo no momento), conduzida pelo piano de Hugo, cujo andamento é perfurado pela guitarra envenenada de Osvaldo que toca uma sequência que oscila entre o psicodelismo e a latinidade. Um delírio!
“Acostumbro ver T.V. los Martes 36” é uma volta ao cacoete beatle, mas em grandíssimo estilo, com uma melodia linda de doer e uma estranha intervenção de Hugo ao acordeon, ao final.
O piano de Hugo volta a criar o clima de fundo para “Una Forma de Arco Íris”, uma canção luminosa que deve muito mais a Brian Wilson do que a Paul McCartney. Aqui tudo é adornado por harmonias vocais que passam longe de Abbey Road e nos remetem a outro clássico do período, Pet Sounds, mas sempre com um pé na sonoridade geral da psicodelia americana.
Os Beach Boys também assombram “Siempre Tú”, mas aqui a melodia está mais numa onda Hollies e com indisfarçável flerte com a bossa nova e as misturas de samba e rock que começavam a se produzir no Brasil. Uma referência boa é Do Outro Lado da Cidade, do disco de 69 de Roberto Carlos. Mas as harmonias à guitarra no estilo de George Harrison estão lá.
“B.B.B Band” é uma improvável mas certeira fusão de melodias beatle, psicodelia floydiana (ouçam o órgão de Hugo!) e clima, digamos, The Turtles. E o pior é que a coisa da certo.
Mas, sem dúvida, a intensiva audição dos Beach Boys se revela na definitiva “Yo Recuerdo Mi Mundo”, com sua melodia de domingo de manhã, com contracantos wilsonianos e uma ousada orgia de instrumentos inusuais e fusões elétricas. Talvez o momento mais experimental, sem deixar de ser eficazmente pop.
E se os Beatles circa 64 encontrassem com Jorge Ben de O Bidu, com um colchão de guitarras de Harrison? Ouça como seria na aparentemente despretensiosa, “Oh Mi Amigo”. “El Pino e La Rosa” segue pelo mesmo caminho.
“Señor carretera el encantado” marca uma nova culminância no disco. Com suas mudanças de andamento e melodia intensa e pungente, traça um trajeto psicodélico, num jogo de ressonâncias e ecos. Curta demais para o prazer que provoca.
E o disco fecha com “Más Largo que El Ciruela“, um exercício de melodia e silêncios preenchidos por uma lindíssima incursão ao tango moderno, com Hugo ao bandaneon, marcando fortemente, embora, de novo, de forma breve demais, o caminho de diversidade e experimentalismo do disco. Um fechamento que pedia uma continuidade que não houve.
São pouco mais de 33 minutos, meia-hora que viraram completamente o rumo do rock sul-americano, abrindo a cena para uma música madura e original, com um ouvido no mundo e outro na própria tradição local, a que nos acostumamos a chamar de antropofagia. Esta estrela, entretanto, tinha várias pontas. Uma delas estava no rock brasileiro pós-jovem guarda que, ainda mais do que o rock argentino, apontou num sem números de direções, com vários atores que ainda estão aí para ser descobertos.
Como em todas as gravações dos Shakers, as canções são tituladas em espanhol, mas cantadas em inglês (embora os músicos dominassem pouco este idioma), o que parecia uma estratégia para alcançar o mercado mundial. Curiosamente, um dos motivos do relativo esquecimento da banda na Argentina foi a emergência de uma nova geração de roqueiros que preferiam cantar na língua pátria.
Canto de cisne da banda, La Conferência foi a última obra da formação original dos Shakers. Capobianco e Villa ainda soltaram um LP sob o nome de Los Shakers, em 1971, “In the studio again”, sem maiores consequências, afinal o coração da banda estava nos irmãos Fattoruso. Estes, por sua vez, desenvolveram as tendências abrasileiradas já reveladas na discografia da banda e lançaram um disco como dupla, em 1969: “La Bossa Nova de Hugo y Osvaldo“ Depois se auto-exilaram nos Estados Unidos.
Hugo se tornou um cidadão do mundo, trabalhando em vários países e com diferentes parceiros, incursionando por um leque grande de estilos musicais, mas manteve uma presença especialmente constante no Brasil.
Com efeito, participou de shows e gravações ao lado de inúmeros instrumentistas e intérpretes brasileiros, entre eles Chico Buarque, Milton Nascimento, Djavan, Fafá de Belém, Miúcha, Maria Bethânia, Arismar do Espírito Santo, Toninho Horta, João Bosco, Hermeto Pascoal, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Airto Moreira e Flora Purim. Tem uma longa lista de colaborações internacionais, como aquelas com Abraham Laboriel, Giovanni Hidalgo, Ron Carter e Fito Paez.
Los Shakers se reuniriam ainda uma vez para um novo disco em 2005, reunião que originou o bom (e nada nostálgico) “Bonus Track”, que merece ser ouvido.
As informações que este artigo traz são apenas a ponta do iceberg da enorme riqueza do rock hispânico que nos rodeia, mas com o qual temos ainda um intercâmbio rarefeito, mesmo em tempos de Mercosul. Trata-se de mergulhar nessas águas latino-americanas e se lambuzar. Convite feito!
Excelente artigo sobre um excelente disco. Senti falta, apenas, de uma citação da banda OPA com a qual os irmãos Fattoruso deram continuidade ao seu trabalho nos EUA.