Datas Especiais – 35 anos do renascimento do The Cure
Por Micael Machado
O final do ano de 1984 não foi fácil para o guitarrista e vocalista Robert Smith, principal compositor do grupo inglês The Cure. Por motivos de saúde (física e mental), ele havia se forçado a sair do Siouxsie and the Banshees, onde atuava como um “simples” guitarrista, em uma busca de fugir da pressão e das responsabilidades de seu grupo principal. Este, por sua vez, apesar de ter acabado de lançar um álbum ao vivo (intitulado Concert), chegava esfacelado aquele final de ano, apos a demissão do baterista Andy Anderson (que, depois de muitas desavenças com outros membros do grupo, quebrou completamente um quarto de hotel no Japão e foi demitido ainda antes do final da turnê de divulgação do mais recente álbum de estúdio até então, The Top, também de 1984) e a saída voluntária do baixista e produtor Phil Thornalley (que, segundo suas próprias palavras, descobriu durante a excursão que “fazer turnês não é para os fracos de coração”, e que se adaptava muito melhor aos ambientes fechados do estúdio do que à vida ao ar livre da estrada). Além disso, o guitarrista Porl Thompson (velho amigo de Robert, e que havia participado de uma das primeiras formações do grupo) havia participado da turnê apenas com o status de “músico convidado”, não fazendo realmente parte da formação do The Cure, que tinha em seu outro membro fundador, o tecladista Lol Tolhurst, um sujeito que passava mais tempo brigando com seus demônios pessoais (especialmente o álcool) do que contribuindo ativamente para a musicalidade da banda.
A entrada do baterista Boris Williams (ex-membro dos Thompson Twins) para completar a excursão acabou solucionando a parte percussiva do problema, mas faltava ainda resolver a questão da outra metade da seção rítmica do grupo. Um roadie da banda, Gary Biddles, acabou intermediando uma reunião entre Smith e Simon Gallup, ex-baixista do próprio Cure, com o qual havia gravado os discos mais bem sucedidos do conjunto até então (a “trilogia negra” formada pelos álbuns Seventeen Seconds, Faith, e Pornography), e que havia saído da banda após desentendimentos com Robert que chegaram até as “vias de fato” durante a última excursão de que o baixista participou. Segundo Biddles, os dois se encontraram perto de sua casa, foram até um bar e, “algumas cervejas depois, estavam conversando de novo”. Smith fez então o convite para o retorno, Gallup aceitou, e as quatro cordas da banda ganhavam seu dono permanente desde então. Bastava apenas que Robert oficializasse a posição de Thompson como responsável pelas guitarras do grupo, e a entidade The Cure estava então pronta para renascer.
Em fevereiro de 1985, a nova formação em quinteto se reuniu no F2 Studios, na Inglaterra, onde Smith mostrou aos outros algumas ideias musicais que havia registrado sozinho, e que, desenvolvidas ao longo do primeiro semestre daquele ano, resultariam em The Head on the Door, lançado a 26 de agosto daquele ano, e que mudaria para sempre a história e o status do The Cure no mundo da música. Pela primeira vez, todas as faixas tiveram Robert como compositor exclusivo, sem a participação dos outros membros. “Bob” Smith já declarou que sua intenção era “gravar músicas sombrias e músicas pop e colocá-las no mesmo álbum”, músicas que “criassem um tipo de tensão ao casar letras levemente amargas a melodias realmente doces”. Um belo exemplo disso pode ser encontrado em “In Between Days”, primeiro single lançado (ainda em julho) e faixa que abre o disco, com sua melodia alegre e divertida (conduzida pelo violão, algo raro na discografia da banda até então) emoldurada por uma letra onde Robert lamenta a perda de sua companheira e implora sua volta. A canção recebeu um icônico vídeo clipe dirigido por Tim Pope, que foi muito bem aceito na MTV dos Estados Unidos, e ajudou a catapultar o nome do grupo naquele país, com o sucesso apenas aumentando após o lançamento do segundo single (e clipe, do mesmo diretor), “Close to Me”, outra canção pop e alegre, cujos versos dariam origem ao nome do álbum, e que, segundo Smith (em uma das várias repostas que ele deu ao longo dos anos tentando explicar este título, e que está presente no encarte da reedição de 2006), veio de um “pesadelo recorrente de infância, onde uma cabeça sem corpo me encarava de cima da porta de meu quarto”… dá para perceber que, apesar de tudo, Smith não estava tão alegre assim à época.
Mas o lado “pop” de The Head on the Door não se resumia apenas a estas duas faixas. “Six Different Ways” tem uma leve a agradável melodia quase infantil, conduzida pelos teclados (que, aliás, foram quase todos tocados por Smith e Thompson, visto que Tolhurst passava efetivamente mais tempo embriagado do que tocando com o grupo), e “Push”, uma das minhas favoritas na longa discografia do grupo, tocou (e ainda toca) muito nas rádios mundo afora, apesar de não ter sido lançada como single. “Screw” tem uma melodia que acaba soando estranha (mas ao mesmo tempo agradável) aos ouvidos, enquanto “The Baby Screams” traz de volta os experimentos eletrônicos da época em que o Cure era uma dupla formada por Bob e Lol, especialmente os contidos no single The Walk, de 1983 (aliás, não seria exagero dizer que os “experimentos” feitos pelo duo nesta época em busca de fórmulas mais “pops” para o som do Cure foram o que permitiram que The Head on the Door acabasse tendo a sonoridade que obteve ao final).
Mas é claro que, em se tratando de um álbum do The Cure, um lado sombrio, tristonho e depressivo acabaria eventualmente aparecendo. Este lado é representado por “Kyoto Song”, onde melodias orientais aparecem no arranjo, pelos violões flamencos de “The Blood” (onde Smith clama estar paralisado pelo “Sangue de Cristo”, que nada mais era do que uma variação de “Lágrimas de Cristo”, nome de um fortíssimo vinho do Porto com o qual ele havia se embriagado na casa de Steven Severin, baixista e ex-colega de Bob tanto no Siouxsie and the Banshees quanto no The Glove), e, principalmente, na faixa que encerra o álbum “Sinking”, onde Bob avalia a passagem do tempo e o avanço da idade em uma das mais memoráveis canções da história da banda. O track list se completa com a balada “A Night Like This”, que casa perfeitamente o lado alegre e o lado sombrio do Cure em uma única faixa, e ainda tem um solo de saxofone gravado pelo músico convidado Ron Howe, que havia participado da banda Fools Dance, o grupo que Simon montou ao deixar o Cure em 1983.
Como já citei acima, em 2006, junto com os outros discos da discografia do grupo até 1987, foi lançada uma reedição “deluxe” de The Head on the Door, que veio com um CD bônus contendo as tais demos caseiras que Bob mostrou aos seus companheiros em fevereiro de 1985, outras demos gravadas pelo grupo em estúdio, e algumas faixas ao vivo. Neste CD aparecem versões alternativas para todas as músicas do álbum, além das quatro lançadas como B-sides à época e outras quatro inéditas até então, as instrumentais “Inwood” e “Innsbruck” (registradas apenas por Smith, com predominância dos teclados e arranjos bastante sombrios) e as mais alegres “Mansolidgone” (que lembra as faixas do Cure como dupla) e “Lime Time” (que traz versos que depois acabariam formando parte das letras de “In Between Days” e de “Six Different Ways”), gravadas pela banda inteira já no F2 Studios.
Como disse, o disco e (principalmente) os clipes acabaram fazendo muito sucesso nos Estados Unidos, levando o grupo para sua primeira grande excursão pelo país. O sucesso do Cure na América fez com que o resto do mundo abrisse os olhos para a banda, e o nome do quinteto atingiu um patamar até então sequer sonhado por seus membros, especialmente depois que a gravadora lançou, no ano seguinte, a coletânea de singles Standing on a Beach (chamada Staring at the Sea na versão em CD, sendo as duas frases os versos de abertura de “Killing an Arab”, primeiro single do grupo, lançado em 1978), que reunia todos os “Lados A” da banda até então, com a versão em cassete original contando ainda com quase todos os respectivos “B-Sides”, além de existir ainda uma versão em VHS com todos os vídeos oficiais, chamada Staring at the Sea: The Images, e o mesmo track list da versão em CD, que possui quatro faixas extras. Ao final da turnê promocional para The Head on the Door, o Cure fez dois shows no Théâtre antique d’Orange, na França (a 9 e 10 de agosto de 1986), que ficaram eternizados no VHS The Cure in Orange (lançado em 1987), na minha opinião ainda o melhor registro em vídeo do grupo, sendo que um lançamento oficial em DVD já foi anunciado muitas vezes, mas, infelizmente, nunca se efetivou. A turnê acabava com o The Cure em um nível de popularidade elevadíssimo, com seus membros (Smith principalmente) transformados em rock stars, e prontos para abraçar o estrelato daí em diante, posição da qual o grupo nunca mais sairia, mantendo o respeito e o apoio dos fãs do mundo todo até os dias de hoje, graças ao seu “renascimento” trinta e cinco anos atrás.
Track List (versão original):
Lado A:
1. “In Between Days”
2. “Kyoto Song”
3. “The Blood”
4. “Six Different Ways”
5. “Push”
Lado B:
1. “The Baby Screams”
2. “Close to Me”
3. “A Night Like This”
4. “Screw”
5. “Sinking”
Track List (CD bônus da reedição de 2006):
1. “In Between Days (RS Instrumental Home Demo 12/84)”
2. “Inwood (RS Instrumental Home Demo 12/84)”
3. “Push (RS Instrumental Home Demo 12/84)”
4. “Innsbruck (RS Instrumental Home Demo 12/84)”
5. “Stop Dead (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
6. “Mansolidgone (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
7. “Screw (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
8. “Lime Time (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
9. “Kyoto Song (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
10. “A Few Hours After This … (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
11. “Six Different Ways (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
12. “A Man Inside My Mouth (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
13. “A Night Like This (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
14. “The Exploding Boy (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
15. “Close to Me (Fitz/F2 Studios Demo 2/85)”
16. “The Baby Screams (Live Bootleg Bercy Paris 12/85)”
17. “The Blood (Live Bootleg Bercy Paris 12/85)”
18. “Sinking (Live Bootleg Bercy Paris 12/85)”
Muito boa matéria. Esse é um dos melhores álbuns do The Cure, pra mim é top 5 na sua discografia, embora prefira os discos mais tristes.
Valeu, Henrique! Também gosto muito desse disco, mas o mais tristes realmente tem um lugar especial no coração! Grato pelo apoio!