Discografias Comentadas: Cactus
Por Ronaldo Rodrigues
Na alvorada da década de 70, o Led Zeppelin já tinha virado a América do avesso, fazendo duas tours no ano de 1969 e deixando os Beatles na poeira. Mas o berço do rock n’ roll não poderia deixar uma nova invasão britânica ficar sem resposta. O Cactus, assim como o Led Zeppelin, não foi o tipo de banda formada por amigos de escola – foi algo projetado para ser grande, pesado e volumoso, contando com a cozinha do Vanilla Fudge (Tim Bogert, baixo, e Carmine Appice, bateria) a guitarra do Mitch Ryder’s Detroit Wheels (Jim McCarty) e o vocal dos Amboy Dukes (Rusty Day). Essas três bandas tinham diferentes graus de sucesso e reconhecimento nos EUA, mas o ponto é que os quatros músicos já tinham estrada e enxergavam claramente o quanto a fórmula do Led Zeppelin funcionava junto ao público jovem. As semelhanças com o Led Zeppelin não ficam apenas no aspecto musical e na maneira como a banda se reuniu – o agrupamento logo foi acolhido pela Atlantic Records (mesmo selo do Led Zeppelin), outra instância que entendia o quanto aquele tipo de música era necessário naquela época. Infelizmente, o sucesso do Cactus foi bem mais modesto que o do Led Zeppelin, uma trajetória bem mais curta e com menos discos. Vamos tratar deles nesse texto. A importância da banda foi gigantesca para a consolidação do hard rock/blues-rock, e seus discos são reverenciados continuamente ao longo das décadas.
Cactus [1970]
A própria Atlantic Records, em sua campanha de marketing, tratava o Cactus como o Led Zeppelin norte-americano. Alguns fãs exaltados acham a comparação descabida, inclusive achando que o Cactus supera o Zeppelin (!). Não se trata de fomentarmos a competição entre duas excelentes bandas. Entendendo a questão de forma fria, trata-se de dois quartetos com a mesma formação, com sonoridade relativa similar (com uso de guitarras Gibson e a presença eventual da gaita tocada pelo vocalista) usando uma abordagem bastante parecida a partir dos riffs e melodias oriundas do blues norte-americano, bateria fortíssima, guitarra no talo e vocais agudos. A própria produção do disco, lançado em julho de 1970, também traz semelhança ao que Led Zeppelin fez nos dois primeiros discos, com os instrumentos chegando perto de uma saturação de volume e muito peso impresso na cozinha com, eventualmente, várias camadas de guitarra saltando das caixas de som. O Cactus, porém, se soltava um pouco mais no estúdio e deixava o virtuosismo fluir – Tim Boggert, por exemplo, abusa dos improvisos (ao contrário da frequente discrição e precisão de John Paul Jones), Carmine Appice também não deixava por menos e Jim McCarty pisava fundo na distorção quase sempre, não tão dinâmico no conceito “luz e sombras” quanto Jimmy Page. Tratando sobre o repertório é difícil destacar algo em particular, porque é o tipo de disco que é certeiro, mantém o nível de energia no alto o tempo todo – gostou da primeira, vai gostar do disco todo! Há duas adaptações blueseiras no disco – “Parchment Farm” e “You Can’t Judge a Book by the Cover”. Assim como no caso da estreia do Led Zeppelin (que também tem duas versões em seu disco de estreia) podemos dizer que essas nunca foram superadas dentro dos territórios rockeiros. Os 4 músicos tem performances fantásticas – Tim Boggert bota a casa abaixo em “Oleo” e Carmine Appice faz o mesmo em “Feel So Good” – e o disco é essencial para quem gosta de rock pesado dos anos 70.
One Way or Another… [1971]
O álbum de estreia havia tido um sucesso mediano nos EUA (54ª posição na parada de álbuns da Billboard) e, pairava no ar a necessidade de superar a marca anterior. One Way or Another tenta captar um pouco da necessidade de ir mais direto ao ponto, deixando as firulas instrumentais e os improvisos para os palcos. A identidade criada no álbum de estreia, porém estava intacta – o blues-rock eletrificado às últimas consequências e tocado com mão de ferro. O disco, gravado no Electric Lady Studios em NY e lançado em fevereiro de 1971, abre com outra versão arrasadora (“Long Tall Sally”) e traz na sequência uma faixa com cara de hit, “Rockout Whatever You Feel Like”, um boogie-rock curto cantado por Tim Boggert. As faixas tem um swing certeiro e mostram Jim McCarty usando mais o violão. McCarty, aliás, tem grande destaque nesse disco, seja pela variedade maior de timbres e pelas passagens pra lá de inspiradas, como a beleza de “Song for Aries” a acidez lisérgica de “Hometown Burst” ou o riff infalível da faixa título do álbum. Apesar de ser um disco que acena para um público mais amplo de rock (tem faixas não tão pesadas e mais swingadas), não foi possível uma grande veiculação nas rádios. Apenas um single foi lançado na época (“Long Tall Sally / Big Mama Boogie”) sem uma repercussão forte; as tours e as plateias continuaram mais ou menos do mesmo tamanho (relativamente grandes, mas nada comparado as do Led Zeppelin, ou mesmo as do Grand Funk Railroad). Essa é uma infeliz constatação, pois trata-se de outro petardo rockeiro do período.
Restrictions [1971]
Restrictions foi o tiro de misericórdia junto a Atlantic (os discos estavam saindo pela sua subsidiária Atco.). Lançado no fim de 1971, ele dá seguimento as tentativas do álbum anterior. O disco segura um pouco a mão no peso, mas conserva as digitais do Cactus 100% do tempo. A elegância instrumental do quarteto e sua energia na execução do blues é impressionante. “Token Chokin” tem um groove que lembra um pouco o Humble Pie da fase Peter Frampton; já a faixa seguinte, “Guiltless Guilder” tem uma longa sessão instrumental onde o quarteto deita e rola. Novamente, versões pesadíssimas dão as caras e uma delas é o principal destaque do disco – “Evil”, de Howlin’ Wolf, que surpreende pela garra com que é executada e pelas viradas incríveis de Carmine Appice. Não dá pra dizer que o gás da banda estivesse acabando, mas fica uma certa impressão de que se a banda não tinha feito sucesso até ali com todo esse material, dificilmente faria se continuasse na mesma direção. Restrictions tem um repertório consistente e honroso, ainda que careça de momentos mais marcantes como nos dois discos anteriores. O disco teve um desempenho fraco em vendas (154ª posição na parada da Billboard) e o contrato com a Atlantic não foi renovado.
‘Ot’N’ Sweaty [1972]
Apesar de ser um bom disco, ‘Ot’N’ Sweaty tem gosto de comida requintada. A formação da banda tinha mudado bastante – Jim McCarty havia se mandado e Rusty Day foi despedido por Appice-Boggert. Nisso, a banda se transformou em um quinteto, com o guitarrista alemão Werner Fritzschings, o tecladista Duane Hitchings (que também tinha sido membro do Buddy Miles Express, assim como Jim McCarty) e o vocalista inglês Peter French (ex-Leaf Hound e ex-Atomic Rooster). O disco abre com faixas registradas ao vivo no festival Mar y Sol, ocorrido em Porto Rico, no início de 72. O grupo já vinha praticando um boogie-rock/rock n’ roll mais básico, mantendo o peso e a velocidade; Fritzchings apesar de esforçado, ficava devendo a McCarty em habilidade e Peter French já tinha provado ser um bom vocalista em seus trabalhos pregressos, mas nas faixas ao vivo sua voz não estava 100%. Nas faixas de estúdio, como “Bad Stuff” e “Bedroom Mazurka” ele se sai bem melhor, sendo as faixas de maior destaque no lado estúdio do álbum, com boa performance de Hitchings aos teclados e a habitual competência de Appice & Boggert em seus respectivos instrumentos. A balada do disco, “Bringing me Down”, passa um pouco batida e “Telling You” tem um ar um tanto dramático, até então não experimentado pela banda. A qualidade da gravação oscila ao longo do álbum, o que dá ainda mais pinta de ser uma colcha de retalhos e não um álbum realmente bem concebido em conjunto. Appice & Boggert já estavam nessa época se encontrando frequentemente com Jeff Beck para retomar a parceria que havia ficado na gaveta em 1970. No fim de 1972, eles se mandam em definitivo do Cactus para formar o BBA. Hitchings ainda tentou manter a banda, mas acabou indo para uma nova formação batizada infamemente como “New Cactus Band” (que do Cactus só tinha ele mesmo).
V [2006]
Bogert, Appice & McCarty reativaram o Cactus para o novo milênio. A despeito da formação diferenciada, não dá para dizer que o Cactus tenha perdido sua essência – o blues-rock pesado e cheio de groove está presente em todas as faixas desse retorno aos estúdios. Jimmy Kunes, vocalista que fez parte de uma das muitas formações do Savoy Brown, é quem assume os microfones e faz bem seu ofício. Os três outros músicos estão em boa forma e o repertório é muito respeitável; o único porém é que, enquanto nos anos 70, a produção de seus discos os colocavam em uma posição de destaque no cenário pesado, nesse caso a produção é um bocado genérica e nivela o Cactus a dezenas de outros grupos de blues-rock contemporâneos. A postura de Carmine Appice e de Tim Boggert são mais centradas e econômicas; McCarty, por outro lado, é que deixa mais nítido o mesmo ímpeto de sua juventude na guitarra, destilando timbres incríveis em todo o álbum. Seu solo, por exemplo, em “High in the City” é avassalador, na sequência de um também magistral solo de gaita conduzido por Randy Pratt. V é um bom disco, e uma honrosa continuação do legado sonoro do Cactus.
Black Dawn [2016]
Tim Boggert deixou de trabalhar com o Cactus em 2008. Os remanescentes (Appice, McCarty e Kunes) seguiram com Pete Bremy no baixo e incorporam também o gaitista Randy Pratt, se consolidando com um quinteto. Black Dawn já é um disco mais pesado e mais distorcido que o anterior. Os licks de blues estão menos explícitos mas a rifferama come solta, como esperado. O disco é bastante homogêneo e se mantém em um bom nível. Porém, também faltam destaques a citar. A guitarra de McCarty é especialmente boa de se ouvir em “Headed for a Fall” e Appice brilha na faixa seguinte “You Need Love” (que lembra bastante o BBA. O disco traz ainda duas faixas inéditas dos anos 70, resgatando um pouco do que parece ser o processo de arranjo (uma quebradeira dos diabos!) de “One Way or Another”, com o nome de “Another Way or Another” e um blues improvisado, batizado de C70 Blues. A banda anuncia em seu site um novo disco para 2020, com a mesma formação de Black Dawn, mas que ainda não se encontra disponível (provavelmente postergado por causa da COVID-19).
Fully Unleashed: The Live Gigs Volume 1 and 2 [2004/2007]
Tratam-se de dois CDs duplos de enorme valor histórico, que trazem o Cactus ao vivo em diversas ocasiões no início dos anos 70. Um show completo em Memphis em 1971, trechos da participação pouco comentada deles na terceira e épica edição do Festival da Ilha de Wight 1970, shows em Nova York, dentre outros. A banda era realmente espetacular ao vivo e sabia alternar bem entre os momentos de loucura e a boa hora de manter a coisa nos trilhos. Alguns aspectos interessantes surgem ao ouvirmos o material – a banda não alterava muito a velocidade das canções ao tocar ao vivo (um fato frequente e muitas vezes incômodo em muitas performances), Rusty Day tinha muita precisão nos vocais e improvisava bem quando necessário, Appice e Boggert tinham uma interação fantástica na cozinha e não eram aclamados a toa e há em alguns momentos um guitarrista de apoio (Ron Leejack) tocando junto com Jim McCarty, com um resultado deveras interessante. Imperdível!
Gosto do Restrictions. Acho um disco impecável. Pena que o Cactus por aqui, na época, era no máximo um super time de segunda divisão, muito mais respeitado depois pelo fato do Appice e do Bogert terem se diplomado com distinção em seu curso de pós graduação na prestigiosa universidade Jeff Beck (e ninguém aqui está menosprezando o foderoso Vanilla Fudge). Tem uma notinha em um dos números da nossa Rolling Stone que ilustra o que eu escrevi: parece que o Cactus e o Black Sabbath tocaram juntos uma vez. Depois que o primeiro voltou para o camarim, descobriu que o Sabbath fumou toda a maconha deles. O pau comeu e o pensamento geral dos leitores do jornal era “quem o cactus pensa que é para brigar com o grande Black Sabbath? Deviam se orgulhar que o Ozzy roubou a maconha deles.” Beijo na bochecha, meu querido Ronaldo.
Valeu meu caro amigo Marco! De fato, pouca repercussão internacional – aqui no Brasil mesmo a galera mais antenada da época os conhecia de bem longe. E parece que aconteceu com eles na Ilha de Wight mais ou menos o que aconteceu com algumas bandas em Woodstock – tocaram, agradaram, mas não conseguiram usar aquela super exposição como alavanca pra carreira da banda.
Obrigado pelo comentário!
Abraço!
Os Fully Unleashed: The Live Gigs Volume 1 and 2 são um dos meus sonhos de consumo. As performances são devastadoras de tão boas.
Com certeza, é um material que vale muito a pena!
Obrigado pelo comentário!
Abraço
Tô ouvindo o Fully Unleashed exatamente agora! Grande disco!
Recentemente adquiri o CD duplo Barely Contained: The Studio Sessions, que traz algumas raridades. Como não tinha o Restrictions e o meu ‘Ot’N’Sweaty era pirata, finalmente consegui completar a coleção do Cactus original! Grande banda!
Parabéns aos organizadores estou conhecendo o site navegando por diversas seções tudo muito bem organizado fotos resenhas cara não tenho costume de comentar mas preciuso em respeito aos organizadores só veneno e pedrada PARABÉNS !!!!
Além da qualidade desse time essa capa do primeiro album é fantastica