Discografias Comentadas: Som Imaginário

Discografias Comentadas: Som Imaginário

Por Eudes Baima

No próximo dia 12 de dezembro, um dos maiores nomes da música nacional completa 75 anos. Trata-se do pianista Wagner Tiso. Sendo assim, nada mais justo do que apresentar para vocês a sensacional criação de Tiso, o Som Imaginário.

Voltando no tempo, lá quando o fim dos anos de 1960 conheceu a emergência da chamada MPB como veio principal, ordenado e canônico da música que se produziu no Brasil a partir da bossa-nova e que, esgotado no fim dos anos 70, se transformou nesse zumbi malcheiroso que ainda hoje vemos vagando por aí, nos atazanando os ouvidos e manchando o passado glorioso dos fundadores.

Mas dentro desta nascente MPB se gestava já, não digo seu oposto absoluto, mas um riozinho marginal que ora misturava suas águas ao mainstream, ora dele se afastava em direção ao experimento; ora se encostava em certos aspectos do tropicalismo, ora juntava voz com o iê-iê-iê. Uma vertente relevante e original deste carro musical que oscilava de um lado para outro da rodovia foi o grupo mineiro que chegava ao eixo Rio-São Paulo por meio da voz alienígena de Milton Nascimento, fantasmagórica em meio à gritaria dos festivais.

O que nem todo mundo reparou na época foi no som que vinha do fundo do palco (é bom lembrar que falamos de um tempo em que a execução instrumental não era mais do que acompanhamento do crooner) e que, fundado no lado instrumental da bossa nova (o lado jazz da coisa, digamos), se deixava levar pela liberdade sonora promovida pelo rock’n’roll, que se ouvia vindo de fora. Por trás da notável voz de Milton, soava a síntese de um largo número de músicos de grande talento e que estavam, até então, escondidos nos bares e pequenos teatros das Gerais.

Bastidores do show “Milton Nascimento, ah, e o Som Imaginário!”

É desse caldo de cultura que emergem as diferentes formações da rápida trajetória do Som Imaginário, que durou meros três e heterogêneos discos mas que se mantiveram como experiência indelével na música brasileira e, se falarmos mais livremente, no rock nacional. O Som Imaginário foi cultivado no ancestral W Boys, de onde procediam tanto Milton quanto Wagner Tiso, uma das forças criativas  iniciais da banda. Depois de algum tempo de luta na noite carioca, atraíram o baterista Robertinho Silva e o baixista Luiz Alves, que seriam o núcleo da banda que acompanharia Milton.

A estreia já indicava uma mudança sem precedentes no próprio som de Milton Nascimento que foi mal qualificado pela imprensa da época como adesão do cantor mineiro ao tropicalismo (embora a influência seja inegável). Era o show “Milton Nascimento, ah, e o Som Imaginário”, exibido no Teatro Opinião e, depois, no Teatro da Praia, no Rio de Janeiro, seguindo depois para São Paulo. No espetáculo sobravam eletricidade, decibéis e virtuosidade. O título já indicava uma mudança de ponto de vista ao lembrar “…ah, e o Som Imaginário”. Sem se descolar de Milton, o Som alçou carreira própria. Assinou com a Odeon (representante da EMI, era a gravadora do Beatles no Brasil) e gravou três discos muito diferentes um do outro, mas que passaram a caracterizar a sonoridade do grupo.


1970 2Som Imaginário [1970]

Em 70, sai Som Imaginário. Ao lado dos primeiros discos de Gal Costa, de Jards Macalé, dos Brasões, dos 3 espetaculares primeiros LPs dos Mutantes, entre poucos outros, o disco era um verdadeiro ET no mercado e, como tal, vendeu pouco para os padrões das multinacionais e virou, assim como os discos seguintes, objeto de culto de rodinhas de roqueiros. Mas, tirante este aspecto legendário, Som Imaginário é um dos melhores discos de estreia de uma banda no Brasil. Neste primeiro LP, a formação contava com Wagner Tiso (piano e órgão), Tavito (violão), Luiz Alves (baixo), Robertinho Silva (bateria), Frederyko (guitarra) e Zé Rodrix (órgão, percussão voz e flautas), mas outros músicos participaram da gravação, como Naná Vasconcelos e Marco 1970Antônio Araújo. Os principais compositores no LP são Zé Rodrix e Frederyko, mas o espírito anárquico e bem humorado da obra dão a impressão de que Rodrix é a força dominante no disco, talvez porque seja sua voz que se ouve na maior parte das faixas. Coisas como “Nepal“, uma espécie de Pasárgada psicodélica, e “Poison” remetem à descontração pastoral hippie. O bom humor é compensado, por outro lado, com certa dose de virtuosismo e dramaticidade, de faixas como “Pantera”, “Feira Moderna” (depois, um hit na voz de Beto Guedes) e, sobretudo, “Tema dos Deuses” (originalmente, canção tema de Os Deuses e os Mortos, filme de Ruy Guerra), de Milton Nascimento, uma tour de force progressiva, onde a batalha entre a instrumentação eletrizante e a voz do cantor marcam o disco como um emblema. O disco abre com “Morse”, um tema instrumental abertamente rock movido a órgão e guitarra, enquanto “Super God” brinca com filtros de voz. Já “Make Believe Waltz” traz uma levada hard que emenda com um blues cantado em inglês. “Sábado” é uma balada que antecipa as características do pop mineiro que seria codificado em Clube da Esquina. “Hey Man” joga com as mesquinharias do cotidiano sobre um base carregada de peso que prepara o tema de encerramento do disco, “Poison”, que traz a contribuição de Marco Antônio Araújo.

Logo depois do lançamento de Som Imaginário, ainda em 1970, a banda toca emMilton, disco clássico do cantor que poderia muito bem ter tido o título acrescentado daquele “ah, e o Som Imaginário”, tal é a contribuição que deram ao LP. Mas seria um exagero incluir esta gravação na discografia do grupo. Em 1971, voltam a fazer história, acompanhando Gal Costa, sob a direção musical de Lanny Gordin, no lendário show Fa-Tal – Gal a Todo Vapor que rendeu um álbum ao vivo (Fa-Tal – Gal a Todo Vapor) igualmente envolto em lendas.


1971Som Imaginário [1971]

Esse álbum indica um giro mais radical ao rock progressivo, o que deve ter a ver com a saída de Zé Rodrix que, músico brilhante e inspirado, era mais afeito ao um rock de sabor mais pop. Melhor para os ouvintes que puderam ficar com o Som Imaginário e ainda poder ouvir a nova empreitada de Zé no igualmente brilhante (e igualmente fugaz) Sá, Rodrix e Guarabyra. O disco, como o primeiro, é obrigatório. Abre com um rock datado mas ainda delicioso, “Cenouras”, com as costumeiras referências, 1971 2cifradas ma non tropo, às drogas. “Você Tem Que Saber” é uma toada eletrificada bem mineira, movida a guitarra base com wah-wah. “Gogó (O Alívio Rococó)” traz um free rock, cheio de efeitos e experimentações, e uma letra típica do psicodelismo da época, meio ingênua mas cativante. “Ascenso” aprofunda o clima progressivo para uma lindíssima melodia sombria muito ao gosto de certas faixas de Milton Nascimento. “Salvação Pela Macrobiótica” é um exercício, a um só tempo, de virtuose instrumental e bom-humor, brincando com a mania riponga de naturalismo. “Uê”, com letra de Márcio Borges, também crava a marca musical do pop mineiro setentista, enquanto “Xmas Blues” é o que diz o título, um blues tocado espetacularmente para escrachar as festas natalinas. “A Nova Estrela” fecha o disco com nova empreitada progressiva onde brilha intensamente a condução de Wagner Tiso ao órgão, num diálogo com a guitarra límpida de Frederyko, num tema longo, com várias seções, que preparava o que seria o ápice da banda, o disco seguinte, Matança do Porco.


som-imaginario-matanca-do-porco1Matança do Porco [1972]

Consolidado como superbanda, chamado para mil e uma gravações, programas de TV e vários festivais que se multiplicaram na época, o Som Imaginário prepara seu terceiro e último disco, Matança do Porco, já sob a direção total de Wagner Tiso que compôs todos os temas. O disco totalmente instrumental investe tanto na sonoridade progressiva, quanto no instrumental brasileiro baseado no choro e na valsa. Com efeito, o disco é uma peça inteiriça com variações em torno de um único tema, “Armina” (a exceção é exatamente a faixa título), um choro que, ao longo do disco, evolui em diferentes direções, da delicadeza pianística ao peso progressivo, com solos de guitarra rascantes, tudo por cima da pesadíssima condução do genial Robertinho Silva à bateria e do baixo sólido de Luís Alves. Ouvir Matança do Porco é uma experiência delirante e minuciosa, onde cada solução melódica, harmônica ou rítmica conduz a novas paisagens musicais, sempre refeitas a cada audição. Com um som-imag-matanca-2formação enxuta, Tiso, Luís Alves, Tavito e Robertinho, o Som Imaginário detona o que talvez seja o melhor disco brasileiro catalogável como progressivo. Introduzido ao tema gerador do disco, “Armina“, o ouvinte é levado a uma variação jazzística, “A3″, para, em seguida, voltar ao tema principal, agora em versão pontuada por cordas e flautas. A doçura de “A3″ prepara a cama para o progressivo à Focus, mas com sabor mineiro, que é “A nº 2“. Diferente dos filmes de suspense, o ponto de maior tensão vem no meio do disco, e não no final, com a faixa título, uma longa suíte inapelavelmente progressiva, mas sem um pingo de imitação dos modelos estrangeiros, onde pontificam o órgão de Wagner, a guitarra envenenada de Tavito e a voz de Milton Nascimento. O tema também provém da trilha de Os deuses e os Mortos, e foi rearranjado para este álbum. Depois da alta tensão de “Matança do Porco“, Wagner nos dá uma versão light jazz, embora curtíssima, de “Armina”, mas que nos permite respirar por um momento, e emenda uma toada mineiríssima, porém pianística, “Bolero”. Antes de terminar com mais uma vinheta em torno de “Armina”, Wagner nos indica suas próxima paragens, com um tema bossa-nova/jazz que define bem o que a gente passaria a chamar de instrumental brasileiro, já bem longe do rock e do progressivo. Nem por isso somos privados de novo solo de guitarra magistral de Tavito.

Em 1974, sai Milagre dos Peixes – ao vivo, creditado a Milton Nascimento e Som Imaginário. Disco excepcional, chama a atenção a abertura com a suíte “Matança do Porco” que se liga a uma tema orquestral baseado no mesmo tema, intitulado “Xá Mate”. Antes de Milton abrir a boca em Bodas, a segunda faixa, o disco já era um clássico.

Som Imaginário em 2012

Nessa década, Tiso reuniu a formação de Matança do Porco para algumas apresentações, como no 1º Festival de Arte de Brasília e na última Virada Cultural de São Paulo, mas nada de inédito foi lançado ainda. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

3 comentários sobre “Discografias Comentadas: Som Imaginário

  1. A Matança do Porco é um dos melhores discos nacionais de todos os tempos, quiçá do mundo. Baita texto Eudes

  2. Bela recapitulação dessa banda que inspira a tantos por ai e cada vez mais nos dias de hoje! Eternamente atual.

  3. Com mais calma agora, temos aqui uma das melhores bandas do Brasil em todos os tempos.O Som Imaginário “imaginou” e idealizou um som tipicamente brazuca, através de inspirações diversas. Graças a essa bandaça, podemos ser levados a pessoas inteligentes e de alto bom gosto como Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges e Zé Rodrix. Pena que todos eles perderam-se musicalmente a partir da metade dos anos 70.

    Eu gosto muito da fase irônica do grupo, mas Matança do Porco é uma obra-prima. A inspiração em Pink Floyd na faixa-título, com a guitarra de Tavito tirando faísca dos alto falantes em um crescendo absurdamente de tiraro fôlego, assim com a performance impecável de Robertinho, e a muito bem colocada pelo Eudes “Focus a Mineira” de “A N° 2?, sem contar todo o talento musical de Tiso, fazem esse álbum um forte concorrente para melhor de 1972. Acho que nesse ano, a lista de Melhores de Todos os Tempos terá que ser dividida em “Nacional” e “Internacional”, por que foi um ano promissor, com joias belíssimas e valiosas.

    O álbum “Milagre dos Peixes – Ao Vivo”, de Milton Nascimento, traz uma versão arrepiante para “Matança do Porco”. Não lembro se o Som Imaginário toca no sensacional álbum de estúdio com o mesmo nome (acho que não), quase que todo instrumental, mas também muito bom. O Milton, aliás, até 1976, lançou discos geniais. A dupla Minas e Geraes é fantástica e obrigatória, assim como o Milagre dos Peixes original.

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