Chicago – Chicago [1970]
Por Eudes Baima
O site The Review Revue começa sua resenha de Chicago (ou mundialmente conhecido como Chicago II) com a singela frase, “era uma vez, quando o Chicago tinha colhões…”. A pouca educação do site é útil para explicar porque, em mais uma resenha de álbuns clássicos, escolhemos este segundo disco do Chicago. Afinal, boa parte dos nossos leitores nem sequer sabe do que se trata, enquanto outra, crescida nos anos de 1980, deve estar se perguntando o que diabos uma banda pop de sonoridade irritantemente radiofônica, com timbres de plástico para melodias esquecíveis está fazendo aqui no sagrado solo da Consultoria do Rock.
A ala pré-histórica dos consultores e de seus leitores, contudo, sabe muito bem porque este álbum está aqui nesta resenha. Afinal, a banda decadente (mas milionária) que chegou aos anos de 1990 ainda na ativa (na verdade, o Chicago nunca foi cabalmente desativado), misturado àqueles milhares de cantores do Raul Gil que infestam o mercado norte-americano, um dia teve aquilo roxo, mas foi num tempo tão remoto que só gente de idade provecta como o autor destas mal-traçadas linhas pode dar seu testemunho. É seguro, entretanto, que uma ida a esta era remota para ouvir o velho Chicago de guerra pode ser muito gratificante. É o que espero demonstrar a seguir.
Formado em 1967 por músicos já tarimbados, assíduos às seções de gravações da cidade que lhe dá nome, o grupo foi composto inicialmente por Walter Parazaider no saxofone, Lee Loughnane no trompete, Terry Kath na guitarra e voz, Danny Seraphine na bateria, James Pankow no trombone e Robert Lamm no órgão e voz, e se chamou brevemente pelo modesto nome de The Big Thing. Pouco depois, recrutaram outro músico da cidade, Peter Cetera, que um dia viria a ser a voz pública da banda mas que, nesta primeira e melhor fase, era liderada por Terry Kath, guitarrista ultra habilidoso (alguns o colocam no patamar das grandes lendas da guitarra) e compositor inspirado, que dividia a liderança com os igualmente talentosos Pankov e Lamm, os três, autores da maior parte das canções.
Logo trocam de nome para Chicago Transit Authority, que teve depois de ser reduzido porque o Departamento de Trânsito de Chicago não autorizou o uso, mas que acabou denominando o álbum de estreia do grupo. Com o tempo e, principalmente depois da morte de Kath (num acidente com arma de fogo), de um imbróglio envolvendo o manuseio do dinheiro da banda pelo produtor e empresário James William Guercio, e do proverbial chafurdo num pântano de drogas pesadas, o Chicago acabou passando por um interminável entra e sai de músicos, que incluiu durante um bom tempo o percussionista brasileiro Laudir de Oliveira e, brevemente, Airton Moreira. O mencionando álbum de estreia, por sinal, teve uma das maiores aceitações e vendas para um debut, dois milhões de cópias só nos EUA. E olhem que o disco não era bolinho. Gravado com a banda tocando ao vivo no estúdio, o LP traz um azeitado mix de soul, rock psicodélico, toques do que depois viria a ser o rock progressivo, mas tudo embalado em arranjos tão redondos que se poderia animar uma festa inteira com ele. Um álbum que merece, no futuro, ser esquadrinhado aqui.
De maneira que o Chicago entrou num estúdio em Los Angeles, no começo de 1970, para o fatídico segundo disco, com muitos pontos à frente da concorrência. Mas, que concorrência? Na verdade, no campo em que a banda jogava não tinha muita gente brigando pelo título, não. Com sua base de brass band, melodias tingidas pelas cores da psicodelia e abordagem hard soul, uma invenção que não deve pouco ao produtor James William Guercio, o Chicago era perseguido por pouca gente, como a também ótima Blood, Sweat and Tears, que entretanto tinha uma receita mais simplesinha, com menos ingredientes, e a turma do pop jazz que se alojou no selo CTI do produtor Creed Taylor, como o brasileiro Eumir Deodato.
Se o excelente Chicago Transit Authority (1969) podia soar um pouco brutal e denso demais, devido ao acúmulo de músicos no estúdio ao mesmo tempo, Chicago vem mais polido, com arranjos complexos mas articulados de forma a entrar suavemente ouvidos a dentro, sendo que Guercio optou pelo método tradicional de cada músico, ou grupo de músicos, gravar sua trilha sobre uma base guia para depois se fazer a mixagem. O polimento contudo não tirou um grama do peso das faixas nem da intensidade dos temas. Como era comum na época, o disco foi pensado para o formato LP, mesmo que tenham sido extraídos deles um punhado de singles famosos. A ideia era a de compor uma peça sinfônica, mas pop, em vários movimentos. Assim, Chicago pode ser visto como um bloco único, subdividido em várias faixas, estas, por sua vez, também compostas e arranjadas em diferentes seções. Não há interrupção entre as faixas.
O disco abre com duas excelentes faixas, “Movin’ In”, um soul intenso e interpretado com o coração nas mãos, e “The Road”, que fazem as vezes de avatar da sonoridade do Chicago, arranjo de base (guitarra rítmica, baixo e bateria) roqueiro, frases de metais puxadas para o jazz e o soul e execução intensa, que abrem caminho para o primeiro hit do disco, “Poem For The People”, de Lamm, uma melodia lindíssima sobre uma cozinha enérgica, que se transformou numa das faixas emblemáticas da banda. Sua clássica introdução ao piano, seguida da frase melancólica dos metais que emenda com um crescendo majestoso para a entrada da melodia cantada são inesquecíveis. A seguir se enfileira uma sequência de clássicos indiscutíveis. Começa com “In The Country”, com linha melódica inspirada mas puxada para a energia roqueira, com os vocais esganiçados do autor, Terry Kath. Depois, em contraponto aos tons sombrios das composições de Kath, a ensolarada “Wake Up Sunshine”, de Lamm, que não faria feio entre os clássicos de um Burt Bacharach, tal a fluência melódica e a leveza do arranjo.
A faixa seguinte é uma incursão da banda nos procedimentos dos grupos progressivos, uma suíte de Pankov chamada “The Ballet for a Girl in Buchannon”, articulada em 7 movimentos, da abertura amena e bela, passando por diferentes climas, de um angustiado blues-rock ao clima de suspense em que aparece fugazmente o fantasma de Robert Fripp, do pastoral à soul ballad e ao pop romântico, para fechar retomando o tema inicial, um rock animado mas melódico, com algo da forma como Brian Wilson encadeava suas faixas na segunda fase dos Beach Boys. A suíte não só mostra a complexa mas funcional química entre a seção rítmica e os metais, como nela os cantores da banda dão um banho de harmonias vocais.
Sem deixar a bola tocar na grama, o Chicago emenda a conhecida e excelente “Fancy Colours”. Uma boa descrição é imaginar como seria uma melodia dos Beach Boys executada num arranjo psico-progressivo, embebida em órgão hammond e guitarras mergulhadas em wah-wah, que de repente nos traz algo dos Mutantes dos primeiros discos. A faixa antecede o hit dos hits do Chicago, “25 or 6 to 4”, tema popularíssimo da banda e uma das melhores melodias da música pop do século passado. Muita lenda correu sobre o enigmático título, desde que faria referências criptográficas a drogas até que indicaria o dia e hora em que foi gravada. Na verdade, o título registra o dia e a hora (dia 25, aos 6 minutos para as 4 da manhã) em que Robert Lamm finalmente se desfez de um bloqueio criativo e destravou a música. Talvez, no caso, as lendas sejam mais divertidas.
Depois do respiro pop rock da faixa anterior, Terry Khan nos brinda com uma suíte breve em três movimentos que começam com um “Prelúdio”, uma melodia melancólica em andamento lento de sopros, se segue com “A.M, Morning”, no mesmo clima mas que traz uma tessitura de sopros e cordas, continuando com “P. M. Morning”, que desenvolve brevemente uma nova melodia delicada, agora com uma discreta orquestra a acompanhar o naipe de metais e fechando com a mesma peça, agora acrescida de canto, na voz arrebatada de Terry Kath. Uma delicadeza que muitos não associam ao lado Kath da banda. O disco se encerra com nova suíte de cerca de quinze minutos, também dividida em cinco movimentos, “It Better End Soon”, uma colaboração que envolveu praticamente todos os membros da banda.
O primeiro movimento é um funkaço apoiado num riff simples de guitarra, com breques decididamente progressivos. Um racha assoalho com cérebro. O segundo movimento dá seguimento à base funkeada, para fazer um colchão rítmico para um solo de flauta jazzístico. O terceiro movimento cai no funk setentista, com base grossa de metais e órgão climático em cima de base balançadíssima da seção guitarra/baixo. Coisa que deve ter feito a cabeça de gente como Kool and The Gang. O funk com tons roqueiros, que Jimmy Page teria dado um dedinho para reproduzir (ele bem que tentou em “The Ocean”) atinge o modo “metais em braza”, para desaguar em “Where Do You Go From Here”, uma sentida balada soul de Peter Cetera. A jornada até o fim da obra é longa, e exige atenção às tonalidade e matizes extremante variadas que compõe o som do Chicago neste segundo álbum, mas não dá pra dizer que é cansativa. Ao contrário, é tudo boa música e deleite.
O Chicago, como já disse acima, inaugurou um estilo que praticamente não teve seguidores e se consumiu como lenha na própria combustão da banda. Depois da morte de Kath, houve uma certa obsessão para arrumar um guitarrista que pudesse reencarná-lo. Nessa busca, a banda teve ainda alguns hits, a partir de então, mais através das famosas baladas de Cetera (“If You Leave Me Now”, “Happy Man”), manteve o alto nível de qualidade até Chicago VII, fez um disco de hard rock esquecível para afinal virar uma banda pop padronizada e despontar para o esquecimento. Os pecados dos homens porém não apagam suas virtudes e suas obras pretéritas, e este Chicago II permanece como o momento criativo culminante de uma fase do grupo suficientemente genial para inscreve-lo no exclusivíssimo hall das lendas do rock.
Track list
1. Movin’ In
2. The Road
3. Poem For The People
4. In The Country
5. Wake Up Sunshine
6. Ballet For A Girl In Buchannon
7. Fancy Colours
8. 25 Or 6 To 4
9. Prelude
10. A.M. Mourning
11. P.M. Mourning
12. Memories Of Love
13. It Better End Soon
14. Where Do We Go From Here
O Chicago até a morte de Terry Kath era uma bandaça. Um som palatável, mas muito complexo ao mesmo tempo. Os 5 primeiro discos de estúdio da banda (e podemos incluir os dois ao vivos, o do Carnegie Hall e o do Japão, que são EXCELENTES), deveriam ser levados para aulas de arte em todo o mundo. Chicago, ou Chicago II, é uma mostra grandiosa de que havia muuuuuuuuuuuuuuuuuuita qualidade no rock americano além da geração flower power ou do hard 70. Baita resenha Eudes
Muito bom mesmo. Eu particularmente tenho interesse somente nesses primeiros discos que o Mairon comentou. Depois disso uma coletânea simples já seria suficiente. Para não deixar o nome passar batido Peter Cetera é a voz mais conhecida pelas crianças/adolescentes da década de 80 que piraram pelo Karatê Kid (muita gente não sabe nem o nome da música, mas estou aqui para ajudar…Glory of Love). Desses primeiros discos o meu preferido ainda é o primeirão e este não foi o primeiro que ouvi da banda. Eu via o Chicago exatamente como é descrito no texto (pop açucarado e radiofônico) e aquela passagem hilária do filme Little Nick (comédia de Adam Sandler) reforçava isso. Mas quando ouvi esses primeiros discos e captei o clima da coisa tudo ficou bom ao ouvido.