Histórias Que o Vinil Conta: A Criptomnésia ao Alcance de Todos
Por Marco Gaspari
É de 1958 um filme dirigido por Don Siegel chamado The Lineup, que no Brasil recebeu o nome de O Sádico Selvagem. O roteiro foi escrito por Stirling Silliphant e o papel de matador de aluguel sociopata coube ao ator Eli Wallach. Lá pelas tantas surge no filme a seguinte fala: “Quando se vive à margem da lei, você tem que eliminar a desonestidade”. Em 1966, portanto 8 anos depois, era lançado o disco Blonde on Blonde, de Bob Dylan. E na canção “Absolutely Sweet Marie” ele canta: “Mas para viver fora da lei, você deve ser honesto”. Não é difícil constatar que Dylan pode ter visto o filme em algum cinema alternativo do Geenwich Village e burilado um pouco a frase para a sua canção. Por outro lado, não se pode esquecer que Dylan foi fortemente influenciado por Woody Guthrie, o compositor e cantor folk americano que nas notas para a letra de sua canção dedicada ao ladrão de bancos Pretty Boy Floyd escreveu: “Eu amo um homem bom fora da lei, tanto quanto eu odeio um homem mau dentro da lei”.
Quem se debruça um pouco mais na obra de Bob Dylan logo percebe o uso que ele faz da apropriação. E não apenas de filmes antigos ou obscuros, mas também da literatura, de Shakespeare a Fitzgerald. O homem que pregava que não se deve olhar para trás, resgatou do passado várias fontes para a sua arte. No entanto, nunca deixou de ser original. E ninguém jamais vai poder acusá-lo de ser um plagiário.
Da mesma forma, será que alguém poderia acusar os Beatles de plágio? Pois Maurice Levy, detentor dos direitos das músicas de Chuck Berry, não apenas acusou como processou John Lennon por plagiar “You Can’t Catch Me“ , tema do filme Rock, Rock, Rock(Ritmo Alucinante), de 1956. A música de Lennon em questão era “Come Together“ e mesmo Paul McCartney, conforme revelado em sua biografia oficial Many Years From Now, já havia chamado a atenção do parceiro para esse detalhe: “Quando Lennon trouxe “Come Together“, era uma música bem animada e eu lhe disse que parecia bastante com “You Can’t Catch Me“, de Chuck Berry. John reconheceu que parecia mesmo e eu sugeri que tentássemos desacelerar o ritmo, o que fizemos.” Outra música de Berry que sofreu plágio foi “Sweet Little Sixteen“, que os Beach Boys transformaram em “Surfin’ U.S.A.“.
Mas dentro do rock, nenhuma outra banda é tão punguista quanto o Led Zeppelin. Outro dia mesmo, sua música mais emblemática, “Stairway To Heaven“, foi condenada por plágio de uma música instrumental do grupo Spirit, composta por Randy California em 1968, de nome “Taurus“. Em sua defesa o grupo alegou que havia composto “Stairway To Heaven“durante um isolamento em Wales, em 1970. Mas fica difícil dizer que desconhecia a música de Randy já que o Led chegou a excursionar com o Spirit em 1969 e Taurus fazia parte do repertório dos shows.
Bom, antes de sacrificar uma banda tão genial quanto o Led Zeppelin e querer soterrar seu legado sob os escombros do plágio, é importante conhecer um fenômeno parapsíquico que acomete 10 entre 10 artistas de todos os ramos da arte: a criptomnésia.
Está lá na Wikipédia: “Criptomnésia (do grego krypton + mnesis + ia), literalmente, memória oculta, é a memória inconsciente ou a memória ancestral, ou ainda memória subliminar”. E está lá no Dicionário Informal: “Memória inconsciente, faculdade, em virtude da qual, se conservam o espírito, despercebidas, noções que depois se podem revelar”. Complicado? Então vamos tentar simplificar bem amadoristicamente esse fenômeno já estudado por Jung e que até o Padre Quevedo atestou que não “es una mentira”.
Tudo que o ser humano ouve, lê, enxerga e testemunha é gravado pela memória. Apenas uma parte disso permanece consciente e o resto do iceberg fica submerso no subconsciente. Um belo dia, o ser humano é submetido a um processo criativo qualquer, onde o que vale é a imaginação, e no esforço de achar uma resposta criativa ou intuitiva, o subconsciente faz emergir essa resposta justamente daquele banco de dados que a memória possui. Por se achar tomado por uma inspiração, é natural que o titular dessa resposta ache que a ideia é original e passe a agir como se ela fosse propriedade intelectual sua. Pelo menos até alguém revelar e provar que essa ideia não é tão original assim e que parte dela foi chupada ou plagiada de outra pessoa. Criptomnésia não é plágio intencional, mas o tamanho da criptomnésia pode levar alguém a ser processado criminalmente.
Acontece muito com o blues (e o Led Zeppelin é uma banda de blues rock): por ser uma música de tradição oral, não se sabe quem foram os pais verdadeiros das dezenas de melodias que de tempos em tempos são recicladas por artistas vários. É um caso típico de criptomnésia, onde a tal melodia está tão presente na memória inconsciente que qualquer estúpido assobiando na rua pode achar que acabou de criar um blues.
Os roqueiros ligados ao blues adoram Robert Johnson e pregam que aquelas três dezenas de músicas que esse gênio nos deixou são o suprassumo da originalidade no blues e foi onde tudo começou. Pois bem, um cara chamado Alan Lomax, que gostava de colecionar as gravações que fazia com músicos de folk e blues americanos e que ao longo da vida reuniu mais de 15.000 gravações, a maioria delas caseira e que hoje integram o Arquivo de Música Folclórica Americana da Biblioteca do Congresso, nos conta que em 1941, na varanda de sua casa, Muddy Waters estava gravando alguns desses 15 mil registros. Depois de cantar uma canção, dizendo a Lomax se chamar “Country Blues“, Waters contou como a havia composto. “Escrevi essa canção no dia 8 de outubro de 1938. Estava consertando um furo no pneu do meu carro; estava sofrendo por uma garota, meio deprimido, e a música apareceu desse jeito na minha cabeça e comecei a cantar”. Lomax, que conhecia a canção de Robert Johnson chamada “Walkin’ Blues”, perguntou a Waters se havia outra canção que utilizava a mesma melodia. Waters respondeu que alguns blues são tocados desse jeito. “Essa música vem dos campos de algodão, e um rapaz uma vez colocou ela num disco – Robert Johnson. E deu a ela o nome de “Walkin’ Blues“. Eu já conhecia essa música antes de ouvir em disco. Aprendi com Son House”.
Se Muddy Waters compôs uma música em cima de uma melodia que já havia sido gravada por Robert Johnson e que, antes disso, havia sido apresentada a ele por Son House com a convicção de que vinha dos campos de algodão, como é que um grupo de blues rock, trinta anos depois, pode ser acusado de plágio por usar a mesma melodia? Mas que fique claro que só estou especulando, pois existem casos e existem… casos. A verdade é que músicos de jazz e blues (e de rock, por que não?) há muito fazem uso de fragmentos melódicos pré-existentes e reelaboram estruturas musicais mais amplas. E a tecnologia só colaborou para levar essa prática ao limite do sampling. Quem tiver pureza nas intenções, que atire a primeira pedra.
Para finalizar e não fugir à regra, parte deste texto foi sampleado, plageado e despudoradamente tungado do excelente e já clássico ensaio “The Ecstasy of Influence”, escrito por Jonathan Lethen e publicado em fevereiro de 2007 nas páginas da Harper’s Magazine. Também dá título ao seu livro de ensaios The Ecstasy ofInfluence: Nonfictions, Etc., publicado em 2011. Aqui no Brasil ele foi traduzido sob o título O êxtase da influência: um plágio e publicado em novembro de 2012 na revista Serrote nº 12, uma publicação do Instituto Moreira Salles.
Daquelas matérias que dá orgulho de fazer parte da Consultoria. Valeu Marco. Baita texto! E baita reflexão!!
Todos os textos do Marco tem o mesmo problema. Quando começamos a nos envolver na narrativa ele acaba!!!
Aliás…
Vamos iniciar a campanha #voltaGaspari !!!
#voltaGaspari
#voltagaspari
Vocês só estão interessados no meu corpinho.
Envolto com cloroquina e leite condensado 😋