Tralhas do Porão: Damon The Gypsy
Por Marco Gaspari
Ainda outro dia eu estava ouvindo da boca do ator Stephen Fry (na sua convincente interpretação de Oscar Wilde para o cinema): “Acredito que o álcool, ingerido em quantidade suficiente, é capaz de produzir todos os efeitos da embriaguez”. Bom, conhecendo os excessos pouco puritanos de Mr. Wilde, sei que esta frase pode suscitar várias interpretações, mas fiquei pensando qual seria, literalmente, a quantidade suficiente de álcool que produziria em mim todos os efeitos da embriaguez?
Confesso ser impossível responder. No entanto posso afirmar, sem medo de errar, que a quantidade exata de música capaz de embriagar todos os meus sentidos é de vinte e sete minutos e quarenta e seis segundos. Exatamente o tempo de duração do disco Song of a Gypsy, do guitarrista e vocalista Damon, gravado no estúdio da Hollywood Sound Recorders em 1969 e lançado numa edição privada de meros 100 discos.
Pronto, lá vou eu encher o saco do leitor com mais um texto sobre alguma banda obscura que ninguém ouviu e cujo cadáver não carecia de ser exumado, sob pena da danação eterna do inferno. Alego em minha defesa, porém, que o objetivo desta série que inauguro hoje é justamente tirar do formol os natimortos do rock, os mais interessantes pelo menos.
Damon é o nome artístico de um cigano chamado David Del Conte. Baseado em Los Angeles e junto de seu velho amigo e guitarrista Charlie Carey, Damon era o tipo tradicional de crooner (carteirinha número 47 da União dos Músicos de Los Angeles): arriscava um ou outro rock’n’roll em seu repertório de animador de clubes, mas não era um roqueiro; também cantava os standards, mas não chegava nem perto de um Sinatra ou um Dean Martin. Com a troca de pele do rock’n’roll para o rock e a chegada da psicodelia, viveu um tempo demarcando território em São Francisco, mais precisamente no quadrilátero paz e amor da Haight-Ashbury. Como ele mesmo diz: psicodelizou-se.
Uma desilusão com as baboseiras hippies aqui, uma peregrinação pela costa da Califórnia ali e Damon assume de vez seu sobrenome “The Gypsy”. Junto do amigo Charlie e de alguns músicos de estúdio, grava pelo seu próprio selo Ankh (a Cruz Ansata – o símbolo da vida dos antigos egípcios) um dos melhores discos surgidos na psicodelia americana, numa tiragem hieroglífica de apenas 100 cópias fadadas ao pó dos tempos.
Não vou ficar aqui maironmachadiando as 10 faixas do disco, até porque não tenho o talento cirúrgico do meu querido amigo e mestre resenhador. O que posso dizer é que do primeiro ao último sulco somos arrebatados pela mais soberba combinação hipnótica de psicodelia sabor oriental, violão acústico cigano, vocais melancólicos e uma guitarra mole (fuzz guitar) que adormece todas as minhocas do cérebro. A voz de barítono dopado de Damon desfila letras datadas de melodrama hippie, mas ainda capazes de reacender a ponta daquele cigarrinho suspeito esquecido no subconsciente desde os anos 60. E o melhor de tudo: a qualidade sonora desse disco é tão caprichada que custamos a crer ter sido proveniente de uma gravação privada.
Tudo muito bom para ser verdade. Tanto que o disco cumpriu o que era previsto: caiu na mais completa obscuridade. Um belo dia, porém, um disc-jóquey canadense, separando alguns singles numa feira de barganhas, deu de encontro com aquela misteriosa capa com a Cruz de Ansara. 25 centavos de dólar era o preço estampado num canto do disco e ele resolveu arriscar. Ao chegar em casa, pôs o disco para tocar e simplesmente pirou. Graças a esse polícia montada do vinil, o disco foi divulgado no rádio e logo se tornou uma das cinco maiores raridades da psicodelia americana, um artefato disputado a tapa por colecionadores de todo o mundo. De meros 25 centavos, cópias originais do disco alcançaram no ebay preços acima dos três mil dólares, formando em torno do disco uma aura de cobiça invejada por 10 entre 10 artistas do mainstream.
Damon faleceu no dia 12 de junho de 2016, pacificamente em sua casa, aos 75 anos, ainda na ativa com seu amigo Charlie Carey. Lançou na década passada o último álbum da trilogia Song of a Gypsy. Já transcendeu sua condição de cigano. Hoje é uma lenda.