Discografias Comentadas: Gentle Giant (Parte I)
Por Ronaldo Rodrigues
Uma das bandas mais cultuadas do universo progressivo, o Gentle Giant tem algumas características peculiares com relação a seus lançamentos. O principal deles é que dentre seus 12 discos oficiais (nos 10 anos de existência da banda), seus oito primeiros discos são trabalhos de altíssimo padrão de qualidade e regularidade; os fãs quase sempre se dividem quando chega a hora de escolher o disco favorito.
Portanto, quem chega ao estágio do “acquired taste” tem um cardápio recheado de bons sons da banda nucleada pelos irmãos multi-instrumentistas Shulman. Obs: não será incluído nesta seção nenhum lançamento póstumo da banda.
No contexto em que o disco foi lançado é difícil afirmar de que se trataria de um grupo estreante, especialmente pela farta musicalidade e multiplicidade de ideias. No ano anterior, o King Crimson trouxe elementos do free jazz, climas soturnos e melodias dramáticas. O Yes amplificou as fronteiras da roupagem pop barroca e injetou inteligência nos arranjos. O Van der Graaf Generator lançou as sementes da escuridão no folk-psicodélico. O Genesis iniciou as pretensões sinfônicas. O Gentle Giant, em novembro de 1970, foi uma síntese de tudo isso e ainda um pouco além. É uma paleta ampla de climas e intensidades, algo do qual não se imagina ser oriundo de um processo de amadurecimento, como ocorreu entre os primeiros e os mais clássicos trabalhos dos outros medalhões do progressivo, mas algo que já nasceu pronto. Só apoiados na distância histórica é que podemos afirmar que a banda avançaria ainda mais na musicalidade e na ousadia das composições. Há nesse disco algumas canções e passagens apoiadas em riffs, o que aproxima levemente o som do gigante ao de várias bandas de rock que pipocavam na mesma época. Mas há coisas da mais pura beleza e refinamento, como a introdução de “Funny Ways“, um dos maiores clássicos da banda e um trabalho simplesmente estupendo no arranjo de cordas.
Acquiring the Taste [1971]
Um título mais que apropriado para uma banda de tanta personalidade e capaz de transitar por tantos territórios musicais. Aqui já existem adeptos (este que vos escreve incluído) que consideram atingido o ápice no som da banda. Outros que pensam parecido com essa fatia do público são o próprio Ray Shulman, um dos cabeças da banda, e o guitarrista Gary Green. A abertura com “Pantagruel’s Nativity” já é arrebatadora – a música consegue passar das mais cândidas melodias para uma densidade monstruosa, quase que como uma trilha sonora de um filme inteiro. É uma das músicas mais celébres do Gentle Giant, dentro de um estilo extremamente particular, de imprimir uma espécie de caráter cênico em suas canções, que as abre em múltiplas possibilidades de interpretação por quem ouve. Se no primeiro disco, o tecladista Kerry Minear se concentrava mais em executar suas passagens no órgão Hammond, aqui ele já assume o posto de um dos mais proeminentes multi-tecladistas do período, explorando mellotron, clavinete, piano elétrico e sintetizadores, além do distinto vibrafone. Acquiring the Taste tem um trabalho de produção muito ousado, pois é repleto de linhas sobrepostas de instrumentos, efeitos, vozes, ecos, etc. Um desbunde para os ouvidos, mas que tornou difícil a coisa para a banda, quando ia aos palcos executar estes temas. Independente disso, o barato estava garantido para a posteridade. Não há como qualificar uma música como “Edge of Twilight” em adjetivo menor que genial, uma verdade pintura musical. “Wreck” e “Plain Truth” tem fraseado marcante de baixo e guitarra e “Black Cat” é outra que abusa dos efeitos e de todos os recursos disponíveis de estúdio, além de uma intricada sessão de cordas, com violino, viola, violoncelo e baixo.
Aqui o posto de baterista, que havia sido inicialmente de Martin Smith nos dois primeiros discos passa por um breve período para Malcom Maltimore, que saiu da banda na tour desse disco por causa de um acidente de motocicleta. Three Friendstambém tem como novidade o fato de ser conceitual, uma espécie de ópera-rock sobre três amigos que tomam rumos distintos na vida. A trupe do gigante seguia cada vez mais firme e pisando duro em todas as amplas possibilidades que sua musicalidade e virtuosismo lhes permitia. O disco, de modo geral, tem um clima menos soturno que o anterior, com algumas canções bastante enérgicas, como a faixa de abertura “Prologue“, “Working All Day” e “Mister Class and Quality“. É uma tarefa ingrata destacar algum instrumento ou passagem em particular, porque Three Friends soa soberbo e cativante, um álbum com uma forte visão de conjunto. Prova de que o Gentle Giant ainda avançava em seu entrosamento e na qualidade de suas composições, o que não época era difícil de ser vislumbrado. Preste atenção no solo arrepiante de Hammond de Kerry Minear em “Working All Day”, na guitarra visceral de Gary Green em “Peel the Paint” e no épico encerramento da faixa título.
Em um intervalo de apenas seis meses, o Gentle Giant foi capaz de lançar ao mundo outra pérola fonográfica. Agora, a cadeira da bateria e da percussão tinha um nome definitivo – John Weathers. Sua entrada trouxe mais groove ao som da banda e se integrou perfeitamente na cozinha dos irmãos Shulman, que naquela altura, já não seriam mais três e sim apenas dois, com a saída de Phil Shulman na tour de promoção de Octopus. Sendo do mesmo ano, este disco faz uma boa dobradinha com Three Friends com relação ao clima geral e a sonoridade. Músicas como “A Cry for Everyone” tem tantas ideias juntas que o ouvinte pode se questionar se realmente tudo aquilo aconteceu em apenas 4 minutos. A média de tempo das canções do grupo é conhecida por raramente exceder os 7 minutos, mas aqui ela só passa dos 5 minutos uma única vez, na faixa “River”. A maioria oscila por volta de 4 minutos, o que reflete um trabalho ainda mais urgente e intenso que o anterior. “Knots” é uma das que melhor representa os audaciosos trabalhos vocais conjuntos do Gentle Giant, com cânones e contrapontos e algumas intervenções até mesmo cômicas dos instrumentos, o que passaria a ser cada vez mais frequente nos lançamentos seguintes. “The Boys and the Band” tem uma introdução tão tortuosa quanto as mais loucas composições de Frank Zappa e “River” é a mais climática e uma das melhores do disco.
O Gentle Giant soa aqui ligeiramente mais suave, mas sem dar um passo atrás em sua complexa matriz sonora. In a Glass House traz uma quantia maior de momentos contemplativos e um acento melódico maior. A ênfase em construções musicais mais sutis e faixas com variações de intenção até um pouco mais bruscas é a principal característica desse disco. É um dos discos que demandam mais atenção da parte do ouvinte, por não preencher o tempo todo os espaços do som com coisas que realmente impressionem os ouvidos (dentro do padrão do tal “acquired taste” mencionado lá atrás), mas ainda acima da média do rock, até mesmo progressivo, que se fazia no período. A abertura do disco, com os efeitos sonoros dos vidros quebrados em sincronia com as notas de introdução, é icônica.
O Gentle Giant parecia não ter limites em tecer composições fortes e tão bem argumentadas no aspecto musical, em espaços de tempo curtos entre um disco e outro. The Power and the Glory, também conceitual, captura a concepção musical de Three Friends com canções de muito groove e fraseado marcante, e ainda é capaz de presentear o ouvinte com a melodia lindíssima e tocante de “Aspirations“. “Cogs in Cogs” é rock progressivo em estado bruto, alternando luz e sombras com perfeição e “No God’s a Man” é simplesmente surpreendente, com múltiplas nuances. Nesta época, o Gentle Giant já era referência total no rock progressivo e não apresentava nenhum sinal de cansaço ou estagnação. Ainda que usando fórmulas parecidas em seus discos, como os jogos vocais, passagens cômicas, contrapontos, dissonâncias e quebras de andamento, havia tanta força nas composições que não existia motivo para se exigir outro direcionamento. Sua música era extremamente ampla e apreciável.
Uma das maiores bandas de todos os tempos. O que tocavam não era pouco. Gênios multi-instrumentistas e criadores de obras complexas, que eram tocadas com uma naturalidade ímpar. Esses discos aqui apresentados são essenciais em qualquer prateleira que se preze para quem se assume um fã de progressivo e de boa música. E o texto do Ronaldo também pode ser emoldurado na parede para ser lido enquanto aprecia uma obra tão fantástica. Parabéns Ronaldo!
Conheci o Gentle Giant tardiamente, quando já tinha 20 anos de audições e conhecia todos os progressivos mais proeminentes. Nunca me esquecerei do impacto e a dificuldade de rotular a banda que não parecia com nada que havia ouvido.
Como disse o Ronaldo, depois de adquirido o gosto acabei comprando quase todos os CDS (importados naturalmente, pois nacionais não existiam), mas valeram cada centavo.
Praticamente uma unanimidade entre os fãs de Prog do mundo todo. Pra mim é a personificação daquilo que passou a ser chamado de Rock Progressivo, Gentle Giant não é mais uma banda de Progressivo, mas sim o próprio gênero em essência. É sem duvida a minha banda numero um a nível mundial, é também a banda que mais tenho material físico entre CDs, Vinis, Boxes, Camisetas, Bonés e etc. Enfim, grupo de Prog pra ninguém botar defeito. Parabéns pela matéria Ronaldo!!! Abraços.
Ótimo texto Ronaldo. Conheci o Gentle Giant pelo Octopus. Lembro que foi uma epopéia conseguir baixar esse disco na época do Soulseek ainda e ele permanece como meu preferido, mas é incrível a quantidade de ótimos discos que a banda enfileirou na sequencia. Até os menos comentados eu ainda acho que são bons.
Aliás….preciso completar minha coleção. Ainda faltam para mim o Interview e o Civilan e aquelas duas coletâneas de arquivos Under Construction e Scraping the Barrel.
E tem o Memories of old days Fernando
Banda sensacional e o texto faz jus à qualidade do grupo. Matéria excelente e estou aguardando a segunda parte.
Conheci o Gentle Giant por meio da coletânea “Giant Steps”, lançada em 1975, e que tive a sorte de encontrar num sebo no final dos anos 80 – até então só conhecia o grupo de nome. Lembro-me de ficar impressionado com a complexidade dos arranjos e a capacidade dos músicos, e passei a falar da banda para todos os meus amigos que gostavam de progressivo – nenhum deles embarcou nessa viagem. Acho que o GG não é para todos…