Tralhas do Porão: Mighty Baby
Por Ronaldo Rodrigues
O Mighty Baby é um grupo cultuado dentro do rico panorama da psicodelia britânica. Seu surgimento se deu a partir da seção instrumental do The Action, grupo mod bastante concorrido liderado pelo vocalista Reg King. O The Action tem uma trajetória muito interessante, que merece ser destacada em outra ocasião. Mas o fato é que Reg King entre o fim de 1967 e o início de 1968 estava vendo que o barco estava virando no cenário musical e resolviu apostar em uma carreira solo (que rendeu um bom álbum solo em 1971). Os remanescentes do The Action – Alan King (vocal de apoio, guitarra), Michael Evans (baixo), Roger Powell (bateria), Ian Whiteman (teclados, guitarra, instrumentos de sopro) e Martin Stone (guitarra) – eram bem entrosados e resolveram continuar, incorporando novas influências para tentar acompanhar o que o público da época buscava. Dentre essas influências, a mais marcante era o som dos grupos da costa oeste norte-americana: Grateful Dead, Byrds, Moby Grape, Buffalo Springfield, Quicksilver Messenger Service, Flying Burrito Bros., etc. Toda essa mudança de direção demandou o estabelecimento de um novo nome, e assim surgiu o Mighty Baby. O Mighty Baby, abandonando o estilo mod e as influências da Motown, também deixava de lado a necessidade de ter ideias muito estruturadas em canções curtas, levando-se frequentemente por longas improvisações.
O repertório ao vivo da banda, em pequenos clubes e teatros londrinos, era sempre rico em improvisações e tanto mais era fomentado em vista do interesse da plateia. Tendo em vista a reputação dos músicos na fase The Action, não foi difícil para o Mighty Baby aparecer acompanhando grupos famosos daquela época e tocar em grandes festivais. Uma das ocasiões mais marcantes foi uma noite em que assistiram um show dos Byrds em Londres; a experiência marcaria sobremaneira a banda, que passaria a ter uma forte influência do grupo norte-americano em seu estilo de tocar e compor; o Mighty Baby quis, a sua maneira, ser um contraponto britânico aos Byrds, captando a influência da música country norte-americana com seu próprio sotaque. Felizmente, essa influência foi bem trabalhada e bastante diluída em um caldo de originalidade que tornou o Mighty Baby um grupo bastante original.
Apesar de muito aclamados nos palcos e frequentemente convidados para as gigs mais quentes, as gravadoras tinham dificuldade em enxergar potencial comercial no Mighty Baby. Uma pequena estampa e quase amadora gravadora, a Head, foi quem acolheu o grupo para o lançamento de seu primeiro álbum. A banda tinha um punhado de canções que, ainda que respeitando uma estrutura convencional, quase sempre desembocavam em uma sessão instrumental de grandes (em quantidade e qualidade) proporções. Nisso reside o tempero maravilhoso encontrado em Mighty Baby, o álbum autointitulado, que tem composições cativantes e um instrumental acima da média. O disco foi produzido por Guy Stevens, figura importante da cena britânica que, dentre outros feitos, esteve envolvido na formação de grupos como Procol Harum e Spooky Tooth, bem como foi produtor do Free, Mott the Hopple e Traffic. O álbum saiu em novembro de 69. O disco tem uma variedade surpreendente de climas – a abertura com “Egyptian Tomb” rememora algo do Traffic mas com um instrumental mais nervoso e ótimos vocais; “I’ve Been Down So Long” tem a veia melódica dos Byrds, mas com uma cara de jam session à la Grateful Dead em uma pegada mais roqueira; já “Same Way to the Sun” é psicodelia pura, recuperando até algo dos Beatles; “House with no Windows” ultrapassa os 6 minutos com muita lisergia e longos solos. O disco todo é memorável, bem composto, tocado e cantado. A faixa de abertura “Egyptian Tomb” e “I’m from the country” foram lançadas como compacto pela Head, mas com repercussão próxima de zero junto as rádios.
O Mighty Baby era frequentemente elogiado na crítica e um live-act muito respeitável na Inglaterra, mas nada além disso a banda conquistou. Para se ter uma ideia, o Mighty Baby tocou no festival de Ilha de Wight em 70 (público estimado em 600.000 pessoas) e na lendária primeira edição do Festival de Glastonbury em 71, dentre vários outros grandes festivais. Provavelmente, a falta de um hit e uma estrutura muito modesta de divulgação da Head não permitiram que a banda tivesse um sucesso realmente considerável. O tecladista/guitarrista Ian Whiteman relata que a participação da banda em Glastonbury foi quase indescritível, com um show longuíssimo iniciado na madrugada e que se estendeu até o amanhecer, com uma interação maravilhosa entre banda e plateia.
No início de 1971 os membros da banda fizeram uma rápida viagem ao Marrocos, que marcou o aprofundamento de uma tendência esotérica já presente entre seus membros. Isso se refletiu no clima geral (e até mesmo na capa) do novo álbum, A Jug of Love. O segundo álbum foi lançado pelo selo Blue Horizon, de Mike Vernon, que trabalhava com o Chicken Shack, Fleetwood Mac e outros nomes do blues inglês e norte-americano. Dessa vez, a banda havia realmente deixado pra trás qualquer preocupação com a questão comercial e se dedicou a destilar sua música de uma forma ainda mais livre. As ideias presentes no álbum tem um clima único, bem relaxantes e trabalhadas no detalhe para fazer o ouvinte viajar. O instrumental é muito azeitado e os vocais ainda mais harmoniosos que no primeiro álbum; a banda toca quase que telepaticamente. A atmosfera country fica ainda mais marcante, como mostrado na faixa título. São 6 longas e belas faixas. Apenas a faixa “Virgin Spring” foi aproveitada como single deste álbum, lançada juntamente com outra não presente no álbum – “Devil’s Whisper”.
O fim do grupo parecia eminente após o lançamento e a falta de repercussão do álbum em termos comerciais. Ainda que não fosse o objetivo do grupo, ninguém ali acharia ruim se fosse possível conciliar liberdade artística com uma boa grana. Então, consideraram que tudo que poderia ser feito juntos já havia sido feito e partiram para novos projetos. Ian Whiteman atuou como músico de estúdio em vários álbuns, como os do folk-singer John Martyn; ele, o baixista Michael Evans e o baterista Roger Powell intensificaram as experiências com folk étnico no projeto The Habibiyya, que lançou um único álbum em 72. Martin Stone tocou com o Pink Fairies em 76 e Alan King formou o grupo pop/soft-rock Ace em 72, com relativo sucesso nos anos seguintes. O Mighty Baby nunca mais se reuniu depois de 71 e ao longo dos anos vários materiais, de diferentes qualidades sonoras, foram lançados pela banda retratando sua reputação nos palcos.
Só para meter o bedelho, o Siri da Gaita vendeu dias atrás esse disco do The Habibiyya, banda que na realidade foi mais que folk etnica, mas sim o resultado da conversão de alguns integrantes da banda para o Islã, resultando em um disco exaltando o sufismo. Curioso e…por que não?… psicodélico, mas pouco a ver com rock. Bela matéria, Ronaldinho.