Tralhas do Porão: Towering Inferno
Por Marco Gaspari
Em uma noite londrina qualquer no começo de 1994, o guitarrista Andy Saunders checa sua secretária eletrônica e se depara com a seguinte mensagem: “Olá, aqui é Brian Eno. Eu toco o seu disco o tempo todo e é o mais assustador que já ouvi. Vou fazer de tudo para que você consiga um contrato.”
Três meses antes, Andy havia enviado a Eno uma cópia da gravação final do Kaddish, um projeto que ele e seu parceiro da dupla Towering Inferno, o músico folk Richard Wolfson, haviam começado a gravar em 1991.
O Towering Inferno foi formado por Saunders e Wolfson em 1986 e seu som era uma estranha combinação de ambient, techno e heavy metal. Eles começaram a construir aquilo que viria a se tornar o álbum Kaddish de forma despretensiosa em 1991, gravando uma sessão de 12 horas de bateria e percussão em um modesto estúdio de Londres chamado Diorama. Intuíam apenas que queriam algo mítico, puxando para o religioso e que refletisse de alguma forma suas raízes judaicas (Andy era descendente de judeus lituanos e Richard de judeus alemães). Mas uma vez começado, eles não pararam mais de ter ideias.
Para resumir o que foram esses três anos de gravações autofinanciadas, elas envolveram mais de 50 músicos no projeto, entre eles Elton Dean e John Marshall do Soft Machine, Chris Cutler do Henry Cow, o quinteto Elektra Strings, o London Welsh Chorale, e as vozes gravadas em Budapeste da cantora Márta Sebestyén, do poeta Endre Szkárosi e do rabino Tamas Raj.
Mil e cem dias de trabalho árduo depois, e um bom dinheiro investido em valores de produção, o resultado final que tanto entusiasmou Brian Eno pode ser definido, de forma bem simplista, como uma opera punk-folk-metal-classico-industrial sobre o Holocausto judeu, sendo Kaddisha tradicional oração dos mortos no judaísmo.
Nesse momento, Andy e Richard, aconselhados por Chris Cutler, inauguraram o selo TI para que a Recommended Records, selo anglo-europeu de Cutler, pudesse distribuí-los em pequena tiragem. Mas um novo desafio pairava no ar: como apresentar ao vivo tão ambicioso projeto. A dupla levou então mais quatro meses para resolver o problema. Decidiram transformar boa parte do material em samplers programados nos teclados e mais material ao vivo confinado em DAT e pilotado manualmente. Com esses artifícios, precisariam apenas de 8 músicos no palco. Só que a coisa não parou por aí e a obsessão da dupla por encontrar uma nova forma de unir sua paixão pela música, cinema e teatro, culminou na produção de um filme a partir de fotos e stock shots de documentários sobre o Holocausto, transformando assim sua apresentação ao vivo em um espetáculo multimídia. A estreia se deu em grande estilo no Festival Internacional Belluard Bollerk, na Suiça, em julho de 1994, arrebatando tanto a plateia quanto a crítica que cobria o evento.
A partir daí foram dois anos de apresentações ao vivo em cidades como Viena, Moscou, Varsóvia, Budapeste, Londres e em turnês por países como Espanha, Alemanha e Estados Unidos, entre outros. O reconhecimento ao trabalho dos dois também foi imediato, ganhando menção nas principais revistas de música da época como um dos maiores triunfos musicais do ano. Com esse handcap e mais os esforços de Brian Eno em divulgar e defender o Towering Inferno junto às principais gravadoras inglesas, no ano seguinte Andy e Richard assinam contrato com a Island e Kaddish é lançado com pompa e circunstância em agosto de 1995.
Longe de ser mais um pastiche da pirataria cultural perpetrada pelos ecléticos da worldmusic, tão em voga nos anos 80 e 90, Kaddish, o CD, tem virtudes inegáveis. Primeiro que é um desfile de influências bem definidas: da canção folclórica e poesia húngaras aos riffs pesados do heavy metal, passando pela oração judaica, pela engrenagem industrial e até mesmo pela grandiloquência do progressivo setentista. Ouvimos ecos do Metallica, das loucuras do Throbbing Gristle e do This Heat, do minimalismo de Steve Reich e Erik Satie, umas colagens incidentais a la Brian Eno aqui e trechos de discursos de Hitler ali, corais impressionantes em contraste com harmonias delicadas e até mesmo uma faixa que qualquer desavisado juraria ser um out take de algum disco da safra anos 70 de Mike Oldfield. E segundo que, apesar de ser um disco conceitual e de vanguarda em plenos anos 90, tudo nele funciona e é digerido sem maiores traumas pelo ouvinte comum.
São 75 minutos divididos em 4 partes onde o Towering Inferno conseguiu explorar o tema histórico e catastrófico do genocídio judeu sem soar oportunista; o Holocausto que ouvimos ao longo da obra tem uma complexidade sutil, porém envolvente. Sua trama de elementos conflitantes em momento algum soa disparatada, muito pelo contrário: é arte sublime, emocional e catártica.
Bom, antes que eu fique me debulhando em elogios ao Kaddish, melhor que ele se apresente completo aqui. Pois se tudo já foi dito sobre o Holocausto, nem tudo foi ouvido.
Essa seção sempre me deixa curioso para ouvir os discos… Preciso dar uma busca nesse disco.
Alguma razão para usarem como nome do grupo o título do filme-catástrofe exibido no Brasil como “Inferno na Torre”?