Um dos principais álbuns do hardcore norte-americano (e, para mim, o melhor), Fresh Fruit For Rotting Vegetables, registro de estreia dos Dead Kennedys lançado em 1980, é, sem sombras de dúvidas, um clássico do punk rock mundial. Mas, como já se provou muitas vezes no mundo das artes, clássicos nem sempre nascem prontos, precisando de muito refino e trabalho para chegarem a este elevado patamar. Uma evidência de que isto também ocorreu com este disco está em Iguana Studios Rehearsal Tape – San Francisco 1978, lançamento especial em vinil do Record Store Day de 2018 (no ano seguinte, também disponibilizado em CD, devido à demanda do público) que finalmente disponibiliza oficialmente parte de uma sessão de ensaios da banda feita, como indicado no título, nos estúdios Iguana, de San Francisco (cidade natal do grupo) no ano de 1978, antes ainda do lançamento de seu primeiro single, a também clássica “California Über Alles”, e quando os Kennedys ainda eram um quinteto, com a formação do primeiro disco (Jello Biafra nos vocais, East Bay Ray nas guitarras, Klaus Flouride no baixo e backing vocals e Ted na bateria) complementada pelo guitarrista base 6025, que deixaria a turma logo depois destas gravações (as quais, segundo o excelente livro Fresh Fruit For Rotting Vegetables – Os Primeiros Anos, de Alex Ogg, foram registradas em fita cassete por East Bay Ray no último ensaio de 6025 com a banda, “porque queríamos ter tudo o que sabíamos gravado para a posteridade”, segundo Jello Biafra – o mesmo texto ainda afirma que a sessão teria ocorrido em 1979, e não em 1978, como se acredita). Clandestinamente, estas gravações circulavam entre os fãs do grupo já há algum tempo, mas foram “oficializadas” pela primeira vez para este lançamento especial, e, pelo que se pode ouvir, sem muitos tratamentos digitais ou aperfeiçoamentos técnicos para “mascarar” as limitações tecnológicas da época (o som é, no geral, abafado e por vezes bem embolado, como seria de esperar de uma gravação amadora de um ensaio de uma banda também praticamente amadora, e o som, por vezes, chega a “enrolar”, como se houvesse uma falha na reprodução da fita K7, num “efeito de som” bastante comum àqueles criados ouvindo este tipo de mídia nos anos de 1980).
Das quatorze faixas de Fresh Fruit For Rotting Vegetables, seis aparecem em versões embrionárias aqui. A mais “surpreendente” delas é “Holiday In Cambodia”, onde Jello canta num tom muito mais grave que no disco de estreia, e em um volume muito baixo, como se ainda não tivesse a letra finalizada ou decorada, e estivesse ainda “experimentando” com a mesma e sua melodia (a não ser no refrão, onde sua voz soa alta e potente). A citada “California Über Alles” também traz vocais mais graves do cantor, e sua parte final não é tão acelerada quanto as versões posteriores. Outra que tem sua velocidade bastante reduzida é “Kill The Poor”, que também possui um solo de guitarra bem mais simples que o de sua versão posterior. Em “I Kill Children”, alguns trechos da letra foram alterados, e falta a controversa frase inicial “God told me to skin you alive” (“Deus me disse para esfolá-lo vivo”, em tradução livre), assim como alguns trechos de guitarra foram suprimidos (enquanto outros foram acrescidos) em “Forward To Death”, mas as duas soam bem próximas de suas “versões finais” no disco de estreia, assim como “Your Emotions”, que, das seis, é a que mais se aproxima de sua versão mais conhecida e apreciada pelos fãs.
“Man With The Dogs”, que seria regravada para ser o “lado B” do primeiro single, também não apresenta muitas diferenças em relação à sua versão posterior, assim como a versão para “Rawhide”, que seria regravada posteriormente para o primeiro EP da banda, o também indispensável In God We Trust, Inc., de 1981. Outra faixa deste EP, “Kepone Factory”, tem uma espécie de “rascunho” neste registro, na forma de “Kepone Kids”, e o pastiche debochado ao reggae (estilo abominado pelos Kennedys, mas que estava em alta à época pelo mundo) na forma de “Dreadlocks Of The Suburbs” já era há tempos conhecido pelo fãs que escutaram o bootleg Live at The Old Waldorf 1979. Sendo assim, as únicas faixas realmente “inéditas” deste ensaio são “Cold Fish”, uma espécie de mistura de punk rock com rockabilly, permeada por muitos mini-solos de East Bay Ray, “Kidnap”, um veloz hardcore que se encaixaria muito bem no primeiro registro da banda, caso tivesse sobrevivido até lá (e que tem um trecho no meio onde aparece um “hey hey hey” que parece copiado diretamente de um dos primeiros discos dos Ramones) e a estranha, sombria, quebrada, experimental e longa (uma das poucas na carreira da banda a passar dos cinco minutos de duração) “Mutations Of Today”, totalmente diferente das demais, mas que, curiosamente, não soa totalmente estranha aquilo que os Kennedys fariam em seus dois últimos registros de estúdio. O citado livro de Alex Ogg ainda afirma haver algumas outras músicas “inéditas”, como “B-Flag”, “Take Down” “Undercover” e a instrumental “Psychopath”, as quais, por motivos que desconheço, acabaram de fora dos pouco menos de trinta e oito minutos que compõem este lançamento.As versões de Iguana Studios Rehearsal Tape – San Francisco 1978 deixam à mostra várias considerações sobre este Dead Kennedys em quinteto: East Bay Ray ainda não tinha desenvolvido plenamente seu estilo particular de solos de guitarra (onde, segundo li certa vez, cada solo de seu instrumento deveria soar como uma música independente dentro de sua própria música), Klaus e Ted formavam uma bela “cozinha” para o grupo (embora o baixo do primeiro tenha aqui um destaque menor do que aquele registrado no disco de estreia), Jello Biafra ainda não tinha desenvolvido seu característico vocal de “personagem de desenho animado” (cantando, como citado algumas vezes, em tons muito mais graves que posteriormente, e sem a mesma segurança e os característicos tons debochados que adotaria em sua versão posterior), e que 6025, como guitarrista base, infelizmente não acrescentava muito à banda, limitando-se a maior parte do tempo a copiar as mesmas linhas do baixo de Klaus, e aparecendo sem muito destaque na execução da músicas, mesmo durante os solos de East Bay Ray. Um pouco depois destas gravações, ainda segundo o livro de Ogg, ele faria mais um show com a banda (a três de maio de 1979, no Deaf Club de San Francisco, em gravação também disponibilizada em um registro oficial em 2004) e “abandonaria o barco”, embora tenha retornado como convidado durante as gravações de Fresh Fruit For Rotting Vegetables (ele aparece como guitarrista base na versão de “Ill in the Head” daquele disco).
Se você for fã dos Dead Kennedys, Iguana Studios Rehearsal Tape – San Francisco 1978 é altamente recomendável, ainda mais se você for apreciador de Fresh Fruit For Rotting Vegetables (e existe algum fã dos Kennedys que não idolatre este disco?). Se você não conhece a banda, melhor começar por um dos outros registros citados ao longo do texto, deixando a audição destes ensaios para depois de ter feito sua “lição de casa” no que se trata da banda. Para mim, pessoalmente, que escuto várias dessas músicas há mais de trinta anos, é um prazer enorme conhecer “novas versões” para canções tão familiares a mim, e tão importantes para a minha formação musical na adolescência. Longa vida aos Kennedys Mortos!Track List (versão em vinil):
2 comentários sobre “Dead Kennedys – Iguana Studios Rehearsal Tape – San Francisco 1978 [2018]”
“Fresh Fruits…” era um daqueles discos que a gente só “ouvia falar” até que foi lançado no Brasil na metade dos anos 80 – primeira vez que eu tinha visto um LP branco na vida! Não sou fã de punk e hardcore, mas esse disco é audição obrigatória para todo mundo que conhece um pouco de rock. Muito legal a reportagem!
Valeu, Marcello! O mítico vinil branco nacional também foi o primeiro vinil colorido que eu vi, e fiquei em choque, pois só conhecia vinis pretos… quem diria que, 40 anos depois, eu iria ter vinis de diversas cores, splatters, marble sei lá o que, com cores misturadas no mesmo disco…
“Fresh Fruits…” era um daqueles discos que a gente só “ouvia falar” até que foi lançado no Brasil na metade dos anos 80 – primeira vez que eu tinha visto um LP branco na vida! Não sou fã de punk e hardcore, mas esse disco é audição obrigatória para todo mundo que conhece um pouco de rock. Muito legal a reportagem!
Valeu, Marcello! O mítico vinil branco nacional também foi o primeiro vinil colorido que eu vi, e fiquei em choque, pois só conhecia vinis pretos… quem diria que, 40 anos depois, eu iria ter vinis de diversas cores, splatters, marble sei lá o que, com cores misturadas no mesmo disco…