Shows Inesquecíveis: The Cure (Buenos Aires, 12 de abril de 2013)
Por Antonio da Silva
Eram 9:30 da noite quando o estádio do River Plate escureceu anunciando o retorno do The Cure à Argentina. Após mais de 25 anos dos shows que culminaram em uma batalha campal, deixando o saldo de uma morte e vários feridos (para saber mais sobre esses shows, clique aqui.), Robert Smith estava de volta a Buenos Aires. O frio na arquibancada do Monumental de Nuñez era de inverno, mas The Cure e frio combinam. Assim, tudo compactuava para uma apresentação, onde o público portenho poderia se redimir da barbárie de 87. E a barbárie estava presente na memória coletiva da capital.
Nenhuma das noticias,matérias ou intervenções da mídia deixou de resgatar o triste episódio. Entre as várias explicações apresentadas para a causa dos tumultos nos concertos dos britânicos em 87 (o momento político de retorno da democracia, a cultura pós-punk/no future que reinava entre os jovens portenhos da época, a revolta contra os ingleses por causa das Malvinas) a que mais encontra respaldo é a menos poética: uma briga entre produtoras de shows teria feito com que a produtora que perdeu a disputa para trazer a banda teria contratado “Barra-bravas”, os hooligans argentinos, para tumultuar o show. Porém mais de 25 anos haviam se passados, e o clima era de uma celebração, quase religiosa.
Enquanto o estádio lotava (o público final ultrapassou os 40.000) lembrei de como cheguei até ali. Havia perdido o The Cure em 1987 em Porto Alegre, pelo simples motivo de ter 11 anos e nem conhecê-los direito (cresci ouvindo meus primos da capital contarem que o show abriu com “The Top”, e que à frente do palco, dois caras seguravam velas negras de sete dias, o que se era verdade ou não, nunca soube). Em 1996 me faltou dinheiro. Em 2013 não perderia. Eu não estava lá para ver uma das maiores bandas de rock mundial, ou para ver um baita show. Estava lá da mesma forma que um muçulmano tem que ir a Meca uma vez na vida, como quem escala o K2, estava lá como quem faz o caminho de Santiago de Compostela, pra mim era tudo isso, junto.
E se há um lugar na América Latina onde se deva ver um show de rock, este lugar é Buenos Aires. Rivalidades à parte, os argentinos (pelo menos os portenhos) são muito mais rock do que jamais seremos. O restaurante do hotel onde fiquei tocava de fundo R.E.M, Radiohead entre outros. No ônibus que me levou a capital, podia escolher entre ouvir nos arquivos disponibilizados Joy Division, Smashing Pumpkings, The Beach Boys ou outras centenas de bandas de rock. Por sinal, há de se ressaltar a ótima apresentação da banda argentina que abriu o show. Os Utopians, comandados pela vocalista Barbi Recanati, tocaram um rock rápido e sujo, e prepararam os ouvidos para um retorno aos anos oitenta com um cover de The Jesus and Mary Chain (“Head on”). Vale a pena ver a surpresa que eles tiveram após o show, captada neste video .
Portanto eu estava lá, prestes a assistir a banda que me fez gostar de música, quando tudo escureceu. No céu, Boeings desciam no aeroporto internacional de Buenos Aires, dando a impressão que a cada cinco minutos um avião colidiria com o anel superior do Monumental. Mas não era uma noite de desgraças, nem brigas, nem tumultos. No palco, um a um, os integrantes foram tomando seus lugares: Primeiro Roger O’Donnel (teclados), depois o guitarrista Reeves Gabrels (que já tocou com David Bowie), então ele, Robert Smith, mais gordo, mais inchado, não que isso importasse, e após, Jason Cooper (bateria) e Simon Gallup (baixo, teclados).
Com os primeiros acordes de “Plainsong” o transe começou. Eu já sabia que o álbum que teria mais músicas no show seria Disintegration, e eu concordo com a opinião do Kyle Broflovski que este é o melhor disco de todos os tempos, mas mesmo assim não estava preparado para o que vinha. Confesso que foi difícil não me emocionar (boys don’t cry, Toninho, Boys don’t cry…). Quando a voz de Robert Smith rompeu a melodia inicial, milhares de pessoas acordaram e em uníssono gritaram. Creio que todos ali tiveram o mesmo pensamento. Era verdade, estávamos vendo a banda que foi considerada pela Q Magazine como a mais influente da historia, a maior banda independente da história do rock (o Cure foi a única banda do selo Fiction, de Cris Parry, durante a maior parte de sua carreira, sendo a melhor parte por sinal, saindo apenas no final da decada de 1990, quando assinou com a Universal). E era apenas a primeira música.
Na sequência mais dois clássicos do mesmo álbum, que levou o The Cure a receber Brit Award de banda do ano em 1991. “Pictures Of You” , “Lullaby” (junto com “High” do disco Wish) embalaram os fãs ate o limiar de um pré-sonho. Dispensável dizer que estes hits foram cantados em coro por boa parte dos presentes. Deste momento em diante Robert Smith e seus comandados desfilaram uma diversidades de canções que abrangiam quase todos os álbuns, fazendo que o estádio inteiro… dançasse? Sim, a audiência toda dançava, uns um tanto quanto desajeitados e discretos como Smith, outros mais empolgados, mas todos, dos mais velhos (e haviam muitos, atrás de mim havia uma senhora que não podia ter menos de setenta anos) até as crianças (avistei algumas no campo) todos dançavam. “The End of the world” apresentou o Cure anos 2000, quando a banda saiu do limbo pós Wild Mood Swings, e logo após “Lovesong”, um presente de casamento de Smith para sua esposa Mary Poole, com quem esta junto desde o inicio do The Cure.
Quando o teclado tocou “Push“, música que era cortina do meu finado programa de rádio, no íntimo menti pra mim mesmo que era uma homenagem da banda, um “atendendo à pedidos”, e mais um hit do The Head on the Door, “In Between Days“, um dos maiores sucessos da banda. E então, mais uma música-homenagem a Mary, “Just Like Heaven”. O estádio do River tornou-se uma grande danceteria.
Mas The Cure não ficou conhecido só por ritmos dançantes. “From the Edge of Deep Green Sea“, com seus mais de sete minutos, nos introduziu às atmosferas lúgubres e tristes que caracterizaram a banda. Seguida pela não tão conhecida “Sleep When i’m Dead”, que serviu de base para um aprofundamento na depressão claustrofóbica de Smith. “Play for Today “, “A Forest”, “Primary“,” Bananafishbones” e “Charlotte Sometimes” (baseada no livro homônimo de Penelope Farmer) formaram um bloco histórico, passando por clássicos que explicam o culto a imagem gótica que Smith tanto repudia.
Mais uma vez as selvagens oscilações de humor retornaram. A dança voltou com “The Walk”, “Mint Car“,” Friday i’m In Love” e “Doing the Unstuck”. E foi com “Friday i’m In Love“ um dos melhores momentos da noite, afinal era uma sexta-feira em Buenos Aires e Robert Smith, com seu inglês britânico incompressível sentenciou algo como “É o dia certo para tudo!”. Não havia mais do que reclamar, se o show terminasse ali já teria valido a pena, mas estávamos apenas na metade do espetáculo. Mais uma vez Robert dava uma guinada de humor, e retornamos aos temas sombrios e desesperados. “Trust” (uma das canções mais belas do injustiçado Wish, “Want”, “Fascination Street” e “Hungry Ghost” soterraram qualquer resquício de “facerice”.
Então uma “Wrong Number” destoando para novamente sermos jogados nos pesadelos Smithianos de “One Hundred Years“, (“não importa se todos morremos”) retirada de Pornography (reza a lenda que Robert Smith se trancou no quarto entupido de LSD para escrever as letras do disco, não saindo nem para suas necessidades fisiológicas) e terminando com “Disintegration“. Ao sair do palco, Robert pareceu chorar. Não seria algo raro, frequentemente o vocalista do The Cure acaba as músicas mais antigas chorando. Segundo o próprio, ao tocá-las, ele se recorda da época que as escreveu. Impossível não comparar (há comparação??) com certos artistas nacionais que se especializam em tocar canções compostas por outros, o que os impede de saber realmente o que a canção queria dizer, e por conseguinte, sentir algo.
A plateia até ensaia um pedido de retorno, mas nem se esforça muito. Todos no estádio sabiam que os shows do The Cure duram mais de três horas. Smith explicou à uma rede de TV brasileira que uma vez, aos 14 anos, foi de sua cidade até Londres para assistir um show do Bowie, e que o show durou apenas 45 minutos. Desde então sempre lembra que na plateia pode haver um fã que como ele veio de longe para assistí-lo. Eu havia viajado quase 12 horas para estar lá. Robert estava certo.
A banda retornou ao palco e executa “The Kiss”,” If Only Tonight (We Could Sleep)” e “Fight”, todas do álbum Kiss me, Kiss me, Kiss me. O set atordoa a plateia, que esperava algo mais pop, mas nada que desanime. Imersos em um pesadelo a plateia absorve toda a angústia sufocante de “If Only Tonight” para então libertá-la com socos no ar enquanto gritam “Fight“. Mais uma vez a banda se retira, e mais uma vez o público demonstra confiança no retorno.
“Dressing Up“, com suas “flautinhas peruanas”, “The Lovecats “ e “The Caterpilar” (apesar de ainda achar que ninguem substira Porl Thompson nas guitarras do Cure, Mr.Reeves garante a qualidade e dá uma palinha do seu virtuosismo em uma das poucas oportunidades que tem para se “exibir”) abrem o segundo “bis”, dando uma pista do que viria. Então o que se vê é uma avalanche de hits. “Close to Me“, “Hot Hot Hot”, “Let’s Go to Bed” e “Why Can’t I Be You?” espantam qualquer cansaço que poderia existir após mais de duas horas de show. E enfim o momento mais esperado pelo público chega.
Uma vez, Ian McCulloch, líder do Echo & The Bunnymen, disse que queria compor a canção-pop perfeita, e que com “The Killing Moon” havia chegado muito perto. Robert Smith não errou o alvo quando compôs “Boys don’t Cry”. Se existe uma música que deva levar o título de canção-pop perfeita, a música é esta. Com seu inicio, simples mas grudento, a letra de amor adolescente, o pedido mais sincero de perdão, e o refrão que virou símbolo de uma década, “Boys don’t Cry” é tudo que uma banda de rock busca expor em menos de três minutos. Quando a música, começa o estádio se torna uma única massa humana, cantarolando junto e pulando.
Por fim, “10:15 Saturday Night” e “Killing an Arab“(inspirada no livro O Estrangeiro, de Albert Camus ) completam a noite. Robert olha para nós e ergue os ombros, como quem diz “É o suficiente, não?”. Sim Mr. Smith, três horas e dez minutos depois é o suficiente. Todos saíram felizes e satisfeitos. Um show inesquecível, e que ainda guardo nas memórias um argentino gritando para outro “Querias a cura? Agora estás curado!”. Estávamos todos curados.
PSs: No dia 21 de abril de 2013 o The Cure terminou sua Tour pela América Latina apresentando-se na Cidade do México. Nesta data Robert Smith completou 54 anos. O show durou mais de quatro horas, e cinquenta canções foram executadas.
Set list
1. Plainsong
2. Pictures of You
3. Lullaby
4. High
5. The End of the World
6. Lovesong
7. Push
8. In Between Days
9. Just Like Heaven
10. From the Edge of the Deep Green Sea
11. Sleep When I’m Dead
12. Play For Today
13. A Forest
14. Primary
15. Bananafishbones
16. Charlotte Sometimes
17. The Walk
18. Mint Car
19. Friday I’m In Love
20. Doing the Unstuck
21. Trust
22. Want
23. Fascination Street
24. Hungry Ghost
25. Wrong Number
26. One Hundred Years
27. Disintegration
1º BIS
28. The Kiss
29. If Only Tonight We Could Sleep
30. Fight
2º BIS
31. Dressing Up
32. The Lovecats
33. The Caterpillar
34. Close To Me
35. Hot Hot Hot
36. Let’s Go To Bed
37. Why Can’t I Be You?
38. Boys Don’t Cry
39. 10:15 Saturday Night
40. Killing An Arab