Selos Lendários: Deram
Por Ronaldo Rodrigues
Hoje nossa pauta é sobre o selo Deram, que ajudou a sedimentar a linguagem art-rock no Reino Unido, para daí se espalhar pelo mundo.
A Deram rivalizava com a Harvest e Vertigo. Os três selos tem em comum o fato de terem sido os pioneiros no novo nicho de mercado que despontou em meados dos anos 60, para atender o público que queria algo mais do que chacoalhar o esqueleto com a música beat; algo que mexesse mais com os sentidos e a percepção, a tal música progressiva. Também tem em comum o fato de serem gestados como subsidiários de selos maiores, no caso da Deram, o selo Decca. E dentre os três, a Deram é o mais antigo.
A Decca começou pelos idos de 1914 na Inglaterra, e lá pela década de 30 já era uma gigante na indústria fonográfica. Depois da aquisição de alguns selos menores, tornou-se junto com a EMI, o único selo em operação em todo o Reino Unido. Também mais ou menos por esse período, abriu uma filial nos EUA, mas com operações distintas e independentes. Tanta era essa distinção, que a Decca EUA foi vendida e a Decca do Reino Unido lançava os trabalhos ingleses nos EUA através de um selo de distribuição, a London Records.
Lá pelo início dos anos 60, a Decca tinha em seu cast bandas de rock do naipe de Rolling Stones, The Who, Them, Zombies, Screaming Lord Sutch and the Savages, entre outros. Hoje, a Decca (e por consequência, a Deram) são parte do grupo da “major” Universal Music.
Em 1966, surge a Deram. O objetivo inicial era ser uma vitrine para um novo sistema de som que os técnicos da Decca estavam lançando, o “Deramic Sound”. Ainda com os gravadores de 4 pistas, o Deramic Sound buscava ampliar os “espaços” entre os instrumentos gravados, mudando levemente a forma de captação dos instrumentos nas salas de gravação, de modo a tornar a audição mais agradável. Vale lembrar que, ao contrário dos nossos dias, chegar em casa, se sentar na poltrona e ouvir música em sistemas “hi-fi” era um hábito muito apreciado pelas pessoas em geral. Esse conceito foi aplicado e testado para discos de orquestras, seja de música erudita ou as orquestras “pop” (easy listening), até porque devido a grande quantidade de instrumentos, as diferenças poderiam ser melhor apreciadas, face as técnicas de gravação convencional.
Os discos vinham cravados com a sigla “DSS” – Deramic Sound System. Com o advento das gravações em 8 canais por volta de 1968, o conceito DSS foi superado e se tornou obsoleto.
Em paralelo ao som das orquestras, a Deram já começou apostando em novos nomes da música jovem, seja do folk, do blues-rock ou do rock psicodélico. Seu primeiro lançamento foi um compacto do cantor folk Cat Stevens, que adquiriria grande fama e status poucos anos depois. O compacto, lançado em setembro de 1966, com as músicas “I Love my Dog/Matthew and Son” chegou até a pintar em boas posições nas paradas britânicas e ter alguma repercussão nos EUA.
Também uma das primeiras bandas a ter seus compactos lançados pela Deram foi o The Move, banda seminal dos anos 60, que revelou o multi-facetado Roy Wood e foi a base para a famosa Electric Light Orchestra (que curiosamente integrava o cast da concorrente, a Harvest). A Deram também tem por façanha o lançamento do primeiro trabalho do então quase anônimo David Bowie, com um compacto em dezembro de 1966 e seu primeiro álbum em junho de 1967.
A Deram recebe os louros também por em 1967 botar pra rodar nas vitrolas mundo afora dois trabalhos lendários e importantíssimos para o desenvolvimento da nova linguagem art-rock – o compacto que continha “White Shade of Pale” do Procol Harum, em maio (uma das músicas de maior sucesso da história do selo e daquele ano de 67) e o disco “Days of Future Passed” do Moody Blues, em novembro (considerado por muitos o primeiro disco de rock progressivo da história), apresentando as inovações do rock com orquestra, do uso do mellotron e da flauta. Resumindo: dois golaços! Além disso, lançou o primeiro disco do Ten Years After, The Syn (primeira banda de Chris Squire, futuro baixista do Yes) e Amen Corner. Em 68, lançou outra semente para o som progressivo da década seguinte: o disco do grupo Giles, Giles and Fripp.
Apesar desses sucessos, a Deram teve como uma característica em sua trajetória o fato de apostar em artistas que depois fariam fama e dinheiro em outros selos, como é o caso de David Bowie (o multiplatinado The Rise and Fall of Zyggy Stardust and The Spiders from Mars saiu pela RCA Victor), Cat Stevens (que foi para a Island), Procol Harum (A&M Records), e o Moody Blues, que formou o próprio selo, chamado Threshold, e a partir de 1969 começou a lançar seus próprios trabalhos.
No início da década seguinte, a Deram tinha em seu catálogo uma diversidade de lançamentos muito interessantes, mas que ficaram restritos a uma pequena parcela do público ou que adquiriram status de “cult” – Web, Egg, Keef Hartley Band, East of Eden, Chicken Shack, Khan, Clouds, Clark Hutchinson, Darryl Way’s Wolf, Hemlock, etc. Sucesso mesmo ela teve com o Ten Years After, com o Caravan e depois de algum tempo, com o Camel.
Um caso confuso é o lançamento da Decca/Deram Nova Series, uma outra tentativa de aposta da Decca de lançar artistas de propostas ousadas e do rock contemporâneo, pelos idos de 70 e 71. Alguns lançamentos vinham estampados “Deram Nova Series”, como é o caso de Sunforest, Aardvark, Bulldog Breed, Pacific Drift, e outros vinham como “Decca Nova Series”, como é o caso de Black Cat Bones, Ashkan, Jan Dukes de Grey, Peter Collins, etc. O que todos tem em comum é o fato de que essa aposta não deu certo e nenhum desses artistas deslanchou (a maioria debandou depois do primeiro e único lançamento).
A Deram não tinha mais aquele fôlego para competir no mercado do rock após repetidas apostas fracassadas. Uma mudança de rumo iniciou-se a partir de 1973, e houve uma drástica diminuição de atividades a partir de 1974, quando passou a se concentrar mais em relançamentos do que em novos nomes ou novas apostas, e a maior parte do material novo sendo lançado sobre a alcunha da Decca Records.
Apesar do logotipo discreto, uma outra característica dos lançamentos da Deram era a preocupação com as capas e os trabalhos de arte dos discos. O selo tem uma coleção de capas fantásticas e que figuram na lista dos melhores trabalhos gráficos dos anos 60 e 70. Designers como David Anstey, Dickinson, Philip Travers, entre outros, foram muito importantes para dar uma identidade visual forte aos lançamentos do selo.
A Deram contribuiu, com seu senso visionário e ousadia, para impulsionar o rock progressivo e todo aquele período fértil de possibilidades dentro do rock. Hoje, tem lugar de destaque e faz a alegria de colecionadores de discos dessas vertentes.