The Clash – Combat Rock + The People’s Hall [2022]
Por Micael Machado
Combat Rock, lançado em 1982, é o quinto álbum de estúdio da banda britânica The Clash, e seu maior sucesso comercial (tanto em número de vendas quanto em posições nas paradas, onde alcançou a segunda posição na Inglaterra e a sétima nos Estados Unidos) ainda hoje. Vindo de uma verdadeira “exploração sonora” em termos de estilos musicais na forma de seu álbum anterior, o triplo Sandinista!, de 1980, o grupo continuou e incrementou ainda mais as experimentações neste registro, o qual deixaria para a história duas das mais conhecidas músicas da carreira do grupo, as faixas “Rock The Casbah”, que eu sempre considerei como uma espécie de “filha tardia” da época da disco music (algo bastante estranho para uma banda que iniciou no movimento punk, convenhamos), e que foi quase que inteiramente composta, tocada e gravada pelo baterista Topper Headon durante as sessões de gravação para o álbum, e “Should I Stay Or Should I Go?”, possivelmente a música mais conhecida do Clash fora do “circuito” de seus seguidores mais habituais (e a única faixa onde o baixista Paul Simonon consegue algum destaque ao longo do álbum).
O disco ainda contém no seu lado A (isto nos bons tempos do vinil, claro) duas outras faixas que eu sempre considerei como destaques, a “roqueira” “Know Your Rights” (um dos poucos lembretes em todo o álbum, ainda que sem muita convicção, de que a banda tinha um passado ligado ao punk rock) e o reggae malemolente de “Straight To Hell”, uma das melhores letras do disco, e que teria uma versão ampliada lançada muitos anos depois no box set Clash On Broadway, já resenhado aqui no site.
No restante das composições, temos algumas das melhores letras da carreira do grupo, com muita acidez e críticas a tudo e a todos, mas com ênfase à Guerra do Vietnã e ao declínio moral da sociedade norte-americana à época. Uma pena, para mim, que o cuidado do grupo com as letras não se reflita nas músicas, pois, se as duas faixas restantes do Lado A, a “chacoalhada” e repetitiva “Car Jamming” e a “quase reggae” “Red Angel Dragnet”, com participação nos vocais do MC Kosmo Vinyl (amigo de longa data da banda e seu manager eventual, e que reproduz durante a música algumas falas do personagem de Robert De Niro no filme Taxi Driver), se deixam ouvir sem maiores problemas (mas também sem maiores emoções), dos sulcos do lado B pouca ou quase nenhuma coisa se aproveita…
“Overpowered By Funk” é uma tentativa dançante de fazer um “funk de branco com um pouco de hip hop”, estilo este representado por um proto-rap ali pelo meio executado pelo grafiteiro Futura 2000, amigo do grupo e que se apresentava ao vivo com a banda pintando “backdrops” no fundo do palco desde a turnê europeia do ano anterior. “Atom Tan” possui um interessante riff de guitarra, cuja repetição e a falta de maior “animação” no ritmo da faixa acaba cansando o ouvinte ainda antes da metade de sua duração (de apenas dois minutos e meio). “Sean Flynn” (o protesto da banda contra a captura e possível morte do jornalista de mesmo nome pelos vietcongs no Camboja) é uma experiência psicodélica musical, aumentada pelos sopros do músico convidado Gary Barnacle, mas cujos efeitos da viagem podem não ser tão agradáveis assim quando chegamos ao final. “Ghetto Defendant” (com participação especial nos vocais do poeta beat Allen Ginsberg) quase me faz repensar a ideia de que o Clash nunca gravou um reggae ruim na carreira, mas acaba se salvando na média, enquanto “Inoculated City” lembra algumas faixas medianas já gravadas em Sandinista!, o que, no contexto das faixas de Combat Rock, acaba não sendo tão ruim. São estas duas composições que me impedem de afirmar que o lado B deste disco é um total desperdício de vinil, pois o encerramento com a lenta e repetitiva “Death Is A Star” não empolga ninguém, com sua melodia levada ao piano (tocado pelo músico convidado Tymon Dogg, que já havia participado em Sandinista!, e que futuramente faria parte da banda Joe Strummer and The Mescaleros) e os vocais mais falados que cantados de Joe Strummer.
Sendo assim, o fato deste ser o álbum de maior sucesso comercial da carreira da banda é, para mim, quase incompreensível (a turnê de divulgação de Combat Rock levou o grupo a excursionar pelos Estados Unidos abrindo para o The Who, com um show no Shea Stadium em Nova Iorque, a 13 de outubro de 1982, sendo lançado oficialmente como um disco ao vivo da banda em 2008), ainda mais que a versão “oficial” nem é a “melhor” versão que o álbum poderia ter, pois, bem no início das gravações que resultariam no disco, o grupo se instalou no People’s Hall, um estúdio localizado no squat do movimento Frestonia, formado por moradores sem teto de Londres que ocuparam casas abandonadas em uma certa área da capital inglesa, e tentaram a independência do país para sua comunidade. Um álbum duplo chamado Rat Patrol from Fort Bragg, com produção do guitarrista Mick Jones, chegou a ser gravado ali, mas tanto o restante da banda, quanto seus empresários e o pessoal da gravadora, acabaram rejeitando a versão final montada pelo músico, o que o levou a um estado de frustração que culminaria em sua demissão do grupo poucos meses depois (para registro, o baterista Topper Headon também seria demitido da banda devido ao seu crescente vício em heroína, isto antes ainda do lançamento de Combat Rock). Para tentar “salvar” o resultado das gravações feitas no squat, a gravadora contratou o renomado produtor Glyn Johns para “retrabalhar” as faixas já gravadas, o que foi feito nos Electric Lady Studios de Nova Iorque, com participação dos membros da banda, exceto Jones, que, praticamente, não participou deste processo de “desconstrução” da obra que ele havia criado.
Em 2022, a gravadora Columbia anunciou o lançamento de uma edição especial em CD duplo e vinil triplo para comemorar os quarenta anos do álbum, chamada Combat Rock + The People’s Hall, além de um compacto de 7 polegadas com duas colaborações inéditas do Clash com o cantor britânico Ranking Roger (versões alternativas para “Rock The Casbah” e “Red Angel Dragnet”). Como muitos, imaginei que, finalmente, o “rejeitado” Rat Patrol from Fort Bragg finalmente seria “oficializado”, mas, infelizmente, não foi isto o que aconteceu.
As três primeiras faixas de The People’s Hall (ou o lado A da versão em vinil) são um desperdício quase tão grande quanto o lado B do disco original. A faixa de abertura, “Outside Bonds”, consiste em quase cinco minutos de conversas aleatórias e sons de tráfico registrados, como o nome diz, no lado de fora do Cassino Bonds de Nova Iorque, onde o grupo fez uma estadia de 17 noites em sequência durante a turnê de Sandinista! em 1981, em um dos momentos mais importantes da carreira da banda. “Radio Clash” é uma versão alternativa da faixa lançada apenas em single em 1981 (e que já apontava a tendência da sonoridade mais “dançante” que apareceria no álbum de 1982), e “Futura 2000” é uma versão alternativa para o single “The Escapades of Futura”, lançado em 1982 pelo artista Futura 2000 (o mesmo que participa de “Overpowered By Funk”), onde ele faz um rap sobre uma base funk/hip hop executada pelo Clash.
A coisa melhora bastante no lado B de The People’s Hall, pois, mesmo que o ritmo “malemolente” de “First Night Back In London” não empolgue tanto, que o reggae “Radio One” (com vocais do músico jamaicano Mikey Dread) não seja exatamente uma novidade (pois uma versão da mesma já havia aparecido como lado B do single “Hitsville U.K.”, em 1980), e que “Long Time Jerk” já houvesse aparecido em compilações posteriores da banda (além de ser originalmente o lado B do single “Rock The Casbah”), a qualidade das três é bem superior às músicas do outro lado do vinil, ainda mais quando acrescidas dos outtakes “He Who Dares Or Is Tired” (excelente instrumental com marcantes passagens de saxofone, suponho eu que, novamente, a cargo de Gary Barnacle, pois as notas de produção deste registro são quase nulas ou inexistentes) e “The Fulham Connection” (faixa que abriria Rat Patrol…, anteriormente conhecida pelo nome “The Beautiful People Are Ugly Too”, e que, mesmo em seu formato demo, e com um timbre de teclado “fuleiro” e bem próximo do ridículo, ainda é melhor que pelo menos sessenta por cento do disco oficial lançado em 1982).
No lado C da versão em vinil, temos a excelente “Midnight To Stevens”, faixa “perdida” das sessões do squat, mas que havia sido “recuperada” para o já citado box set Clash On Broadway, além de versões alternativas para “Sean Flynn” e “Know Your Rights”, e do que teria sido a segunda faixa do disco Rat Patrol…, a divertida “Idle In Kangaroo Court”, previamente conhecida pelo nome “Kill Time”, outra que precisava apenas de uma atualização nos timbres de teclado e algumas linhas mais impactantes de guitarra para ter posição de destaque no disco “oficial” lançado após a “intervenção” de Glyn Johns, mas que, assim como “The Beautiful People Are Ugly Too”, inexplicavelmente acabou ficando de fora da seleção final.
Apesar de lançado em vinil duplo, o lado D de The People’s Hall não traz nenhuma faixa (não sendo nem mesmo o que se costuma chamar de “etched”, quando uma figura é “impressa” no vinil para marcar que ele está vazio… o lado D simplesmente não apresenta nada em sua superfície…), com certeza para não tornar o track list diferente da versão em CD duplo. Apesar de eu compreender os motivos da gravadora, esse tipo de atitude das companhias sempre me irrita, pois quem compra o produto em vinil paga um preço bem diferenciado (sempre para cima), e merecia um tratamento mais adequado ao custo do mesmo. Poderiam, por exemplo, ter incluído as duas músicas do compacto lançado junto com esta edição, ou a versão “completa” de “Straight To Hell” presente no box set, ou algum dos “lados Bs” do single “Radio Clash” (todos versões alternativas da faixa original, mas que, mesmo assim, ao menos preencheriam este lado do disco), ou a versão original de “Inoculated City” (que incluía uma sátira a um comercial do limpador de vasos sanitários 2000 Flushes, cuja empresa, à época, ameaçou processar a banda, o que a fez retirar este trecho da composição final, embora a versão original tenha aparecido em alguns bootlegs), ou algumas das muitas versões demos do “infame” Rat Patrol from Fort Bragg que permanecem inéditas ainda hoje. Enfim, haviam várias opções para preencher este lado D, mas a mais fácil (e, a meu ver, preguiçosa) acabou sendo a escolhida.
Preguiçosa também parece ter sido a atuação da área de arte da gravadora para este lançamento. Apesar de contar com envelopes individuais para cada vinil (todos reproduzidos na versão em CD, e trazendo algumas fotos inéditas da banda, sendo o do primeiro vinil uma reprodução da versão original do encarte de 1982) e de um enorme pôster do grupo (na versão em vinil, o mesmo tem o tamanho de seis capas normais), as notas de produção das faixas bônus, como disse, são muito fracas, e ficamos sem saber quem toca o quê, quem produziu, quem compôs o quê, em resumo, essas informações “técnicas” que pouco acrescentam ao produto final, mas que são tão importantes ao colecionador realmente dedicado. Pelo que poderia ter sido, Combat Rock + The People’s Hall acaba sendo um tanto decepcionante ao final da audição, mas acaba “oficializando” alguns momentos realmente interessantes da história do Clash para seus fãs. Além de mostrar, mais uma vez, que, com as faixas que haviam sido registradas para Rat Patrol from Fort Bragg, o quarteto poderia ter saído do Electric Lady com um disco muito melhor do que Combat Rock, algo que, infelizmente, não aconteceu (fato que se repete pela segunda vez nesta edição de quarenta anos). Lamentável.
Track List (versão em CD):
Combat Rock
1. Know Your Rights
2. Car Jamming
3. Should I Stay Or Should I Go?
4. Rock The Casbah
5. Red Angel Dragnet
6. Straight To Hell
7. Overpowered By Funk
8. Atom Tan
9. Sean Flynn
10. Ghetto Defendant
11. Inoculated City
12. Death Is A Star
The People’s Hall
1. Outside Bonds
2. Radio Clash
3. Futura 2000
4. First Night Back In London
5. Radio One
6. He Who Dares Or Is Tired
7. Long Time Jerk
8. The Fulham Connection
9. Midnight To Stevens
10. Sean Flynn
11. Idle In Kangaroo Court
12. Know Your Rights
“Combat Rock” foi o primeiro disco que ouvi do Clash, numa época em que a crítica brasileira idolatrava a banda, e me lembro de ter tido a mesma sensação: o lado A era muito legal, o lado B não chamava quase nada a atenção! Infelizmente a Sony não tem com o Clash o mesmo cuidado que tem com outras bandas do seu catálogo… Quem sabe um dia isso muda!
Realmente, é um pena que uma banda com tanta coisa inédita já lançada em bootlegs e em sites pela internet não tenha uma atenção maior para com seus fãs e libere essas “preciosidades escondidas” para nós… não sei se é a gravadora, ou o pensamento dos membros remanescentes, mas o certo é que poderíamos ter muito mais material do Clash no mercado do que temos hoje… ficamos na esperança de que, um dia, como você disse, isso venha a mudar! Valeu pelo comentário, Marcello!
Muito legal, Micael. Esse LP foi minha introdução no universo do The Clash, junto com a coletânea The Story Of The Clash Volume 1. Não conhecia essa edição.