Datas Especiais: 40 Anos de Script for a Jester’s Tear [1983]

Datas Especiais: 40 Anos de Script for a Jester’s Tear [1983]

Por Marcello Zapelini

O começo dos anos 80 foi difícil para os fãs do rock progressivo. O Pink Floyd entrou em animação suspensa após a curta turnê de The Wall, o King Crimson voltou com nova formação – e novo som, mais próximo da New Wave, o Yes tinha partido desta para melhor após Drama, Emerson, Lake & Palmer tinham desaparecido, o Genesis lançara Abacab”, seu disco mais pop até então, enfim, tudo fazia crer que o gênero tinha acabado. Nos EUA, bandas como Journey e Styx lotavam estádios e vendiam milhões, na Inglaterra, o movimento New Romantic ainda dava as cartas.

Em 1983, um veterano, David Bowie, dominou a cena pop com seu excelente, mas descaradamente comercial, Let’s Dance. Mas, nesse mesmo ano, o Yes lançou nesse ano seu maior sucesso (90125), o Genesis, um disco autointitulado, e o Pink Floyd saiu-se com The Final Cut, todos discos bem-sucedidos, mas que não tinham muita semelhança com o progressivo clássico. Era contra esse pano de fundo que um grupo que tivera um hit menor em 1982 (“Market Square Heroes” atingiu o 53º posto na parada de singles na Inglaterra) lançaria o primeiro álbum; formado em 1978 como Silmarillion – com o nome abreviado para Marillion para evitar problemas com direitos autorais, já que a palavra fora criada por J. R. R. Tolkien, esse grupo passaria por mudanças de formação, críticas negativas, shows com baixo público, até conseguir juntar um grupo de fãs suficientemente grande para justificar um contrato com uma gravadora.

Esse primeiro álbum foi lançado em 14 de março de 1983 com o título Script for a Jester’s Tear. Na época, o grupo era formado por Fish (vocal), Steve Rothery (guitarra), Mark Kelly (teclados), Pete Trewavas (baixo, vocal) e Mick Pointer (bateria). Com seis composições creditadas aos cinco músicos (sendo que quatro traziam a coautoria de Brian Jelliman e Diz Minitt, ex-integrantes da banda, e outra apenas a Minitt), o álbum dava a entender que seu processo de gestação fora longo… Mas a espera compensou. Com produção de Nick Tauber e embalado em capa magistral (em gatefold, com as letras de Fish impressas na parte interna) de Mark Wilkinson, o LP de estreia do Marillion é presença obrigatória na coleção de qualquer fã de rock progressivo.

O LP começa somente com a voz emocionada de Fish, logo seguido pelo piano, e depois, pela banda como um todo: “Script for a Jester’s Tear” coloca na mesa todos os elementos do som do Marillion original, ou seja, a seção rítmica segura (com o baixo palhetado de Trewavas), os teclados que misturam o som dos anos 80 com o clássico prog da década anterior, a guitarra gilmouriana de Rothery, e a expressiva voz de Fish, com seu sotaque escocês carregado. Dizer que a música é uma das melhores da carreira do grupo, ou que é uma das obras-primas do progressivo pós-75 não é nenhum exagero! Um verdadeiro mini-épico para os anos 80, “Script for a Jester’s Tear” traz a letra introspectiva e sentimental de Fish carregada com muito feeling por todos os músicos, e é a única sem participação dos ex-integrantes na composição.

Em seguida, tem-se “He Knows You Know”, que inicia com os acordes de guitarra de Rothery contra o sintetizador de Kelly. A composição se desenvolve em pouco mais de cinco minutos, sendo a mais curta do LP, e traz um acento um pouco mais pop do que a anterior. A letra trata de problemas com drogas, e a música se encerra com o telefone tocando, e Fish gritando “Don’t give me your problems”. Lançada como single em janeiro, atingiu o 35º lugar na parada britânica. O grande problema dessa bela canção é estar entre “Script for a Jester’s Tear” e a impressionante “The Web”. Com quase nove minutos de duração, “The Web” é provavelmente minha favorita do álbum; o solo de Steve Rothery foge bastante da inspiração floydiana que caracteriza o guitarrista, e os últimos minutos da música (após 6’28”) são simplesmente maravilhosos, emulando um pouco o som do Genesis de Selling England by the Pound – mas para mim isso não é problema, embora o estigma de “filhotes do Genesis” fosse acompanhar a banda por anos. O título da música seria adotado pelo fã-clube oficial inglês, como atestam os encartes dos discos subsequentes.

A alegre “Garden Party” abre o lado B do LP original com o som de pássaros no jardim e o majestoso sintetizador de Mark Kelly; “alegre” por causa do ritmo e do arranjo, porque a letra é meio pesada e fala de desigualdades sociais. Terceiro single do álbum (atingiu o 16º lugar na parada britânica), é a música mais tocada pela banda em seus shows, com 789 execuções até novembro de 2022. Outro single retirado do álbum, “Garden Party” chegou ao 16º lugar na Inglaterra. A linda balada “Chelsea Monday” é a segunda música do lado B, começando lenta e ambiental, com os instrumentos fazendo a cama para mais uma interpretação emocionada de Fish. Após mais de dois minutos, a música ganha mais força, com belo solo de guitarra de Rothery, e Fish retomando a letra com mais ênfase. Na época que comprei o LP, ela não me chamou muito a atenção, mas posteriormente acabei dando-lhe o devido valor. O disco se encerra com “Forgotten Sons”, outro épico com diversas variações, uma letra que trata dos problemas da Inglaterra na Irlanda do Norte – ainda que o vocalista a anunciasse como não sendo uma canção política – e a presença de um coro de crianças. E o disco termina como começou, ou seja, com Fish sozinho, que grita o título da música.

 

Após este álbum, que alcançou o sétimo lugar na parada britânica, o Marillion perdeu Mick Pointer (que, ou saiu a pedido de, ou foi expulso por Fish, que considerava que ele não tinha progredido como os outros músicos). Uma sucessão de bateristas o substituiu: Andy Ward (ex-Camel), John Martyr e Jonathan Mover (que participaria do projeto GTR ao lado de Steve Howe e Steve Hackett), até que Ian Mosley (ex-membro da banda de Steve Hackett), assumir de vez a banqueta e as baquetas. Essa formação (Fish, Rothery, Kelly, Trewavas, Mosley) lançou mais três discos de estúdio e dois ao vivo, até o cantor decidir sair no final de 1988, o que fez os fãs temerem pelo futuro do grupo, que perseverou com Steve Hogarth, lançando tanto bons discos como Brave e Marbles quanto bombas como Holidays in Eden. O novo vocalista estabeleceu desde cedo sua personalidade, pois a maior parte das músicas gravadas com Fish foram deixadas de lado nos shows.

Falando especificamente deste álbum, “He Knows You Know”, “The Web”, “Chelsea Monday” e “Forgotten Sons” já não eram mais tocadas ao vivo antes mesmo de Fish deixar o Marillion. “Script for a Jester’s Tear” foi tocada poucas vezes com Hogarth no vocal, tendo sido interpretada pela banda pela última vez em 2013; honestamente, essa música tem toda a cara de Fish, mas tenho que admitir que Hogarth não faz feio nela, conforme gravação pirata que pude ouvir.

Script for a Jester’s Tear foi relançado em CD em 1985 e, junto com os oito primeiros álbuns da banda, que tinham sido lançados pela EMI, saiu em edição dupla, com o segundo disco dedicado a singles da época do álbum original. Mais recentemente, em 2020, uma Deluxe Edition foi lançada com o LP original remixado no primeiro CD, com o segundo dedicado ao single “Market Square Heroes”, mais “Charting the Single”. Outros dois CDs trazem um show no Marquee em 29/12/1982 (em que o LP inteiro é tocado), e um DVD completa o pacote, contendo o documentário Sackcloth and Greasepaint, bem como o vídeo ao vivo Recital of the Script, os clips da época e outras surpresinhas. A nova edição tornou o som mais claro, com melhor separação entre os instrumentos, fazendo desta a mais adequada para quem prefere o disquinho prateado ao bolachão preto – como eu, aliás. O livreto é muito bom, com muitas fotos do começo da carreira, trechos de entrevistas com os músicos e as letras reproduzidas na mesma arte da capa interna original. Quem preferir o LP pode buscar a reedição de 2012, remasterizada e em vinil de 180 gr.

Para encerrar, uma nota pessoal: lembro-me de um comentário feito na antiga revista Bizz, da editora Abril, na resenha de Misplaced Childhood: “se você acha que os anos 80 são uma reedição dos 60, o Marillion é uma banda à frente do seu tempo; mas se considera que isso não tem nada a ver, eles não passam de uma ‘xaropada retrô’”. O progressivo nunca mais atingiu os níveis da primeira metade dos anos 70 – o que seria impossível, aliás – mas não foi por culpa do Marillion. A banda não teve imitadores nem rivais, mas conseguiu manter uma boa base de fãs e está ativa a quarenta anos fazendo um som que, embora derivado de suas grandes influências, tem sua personalidade.

Track list

  1. Script For A Jester’s Tear
  2. He Knows, You Know
  3. The Web
  4. Garden Party
  5. Chelsea Monday
  6. Forgotten Sons

2 comentários sobre “Datas Especiais: 40 Anos de Script for a Jester’s Tear [1983]

  1. Disco maravilhoso do Marillion!
    Curioso que dos quatro primeiros discos todos já vi citados como o preferido de alguém. Por outro lado dia desses vi um vídeo de um canal que não me lembro o nome colocando os dois primeiros como os piores da discografia toda. Aí tb não!!!
    Curioso que nesse período do início da banda eles já tinham lançado um EP com 3 faixas e nos lados B dos singles de He Knows You Know e Garden Party mais duas músicas que não saíram no álbum, ou seja, quase um disco a mais só faixas inéditas. Mostrando que eles estavam trabalhando bastante até conseguirem um contrato.
    Não posso deixar de discordar sobre a opinião do Marcelo sobre Holiday in Eden. Um disco com No One Can, Cover My Eyes e Dry Land (por sinal os 3 singles do disco) não pode ser considerado uma bomba. Alías, eu tenho saudades desses tipos de músicas ganchudas cheia de refrãos assobiáveis dessa época do Marillion quando ouço os discos mais contemplativos que são lançados atualmente.
    No mais parabéns pelo resgate e pelo texto….

    1. Obrigado, Fernando!! Eu passei por experiência semelhante, porque conversando com alguns amigos que curtem Marillion, em cinco pessoas também tivemos quatro discos diferentes. Agora, para dizer que os dois primeiros discos são os piores, a pessoa tem que detestar prog, ou não ter ouvido direito… Quem sabe ano que vem rola um 30 anos do Fugazi!
      Eu gosto muito da maioria dos discos do Steve Hogarth com o Marillion, e dois deles estão no meu top 5 da banda (Brave e Marbles), mas o Holidays in Eden meio que me traumatizou – vinha comprando os lançamentos da banda desde o Misplaced Childhood, e achava que a banda estava indo muito bem. Aí veio o Holidays com uma sonoridade bem mais pop e fiquei decepcionado – mas Dry Land é uma das minhas favoritas do grupo em todos os tempos!!

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