O Rock Sob O Sol da Meia Noite
Por Marco Gaspari
(Matéria originalmente publicada na revista poeiraZine nº 26)
País curioso a Finlândia. Para a maioria das convenções geográficas, é um país nórdico, mas alguns geógrafos mais meticulosos preferem incluí-la na Península Escandinava.
República cercada de monarquias por todos os lados, sua densidade populacional é a menor do planeta: apenas 15 habitantes por km2, sendo que 75% da sua área terrestre são ocupadas por densa floresta boreal. Como um quarto do seu território está ao norte do Círculo Polar Ártico, nas regiões mais setentrionais o sol não se põe durante 73 dias no verão e não nasce durante 51 dias no inverno. É o sol da meia noite, iluminando três dos filhos mais diletos do rock finlandês.
Blues Section. O blues que veio do frio.
Nossa história começa com uma revolução, a formação do Blues Section em 1967.
Revolução sim, porque os ouvidos da juventude finlandesa estavam mais do que entupidos daquele beat pop comercial copiado sem muita inspiração das bandas inglesas e o Blues Section veio com uma proposta absolutamente nova e ousada para o cenário do país: exorcizar o culto à grana pelo qual oravam todos os executivos musicais, gravar sem pressões e investir num som de vanguarda, respaldado pelo que de melhor a tecnologia sonora local tinha a oferecer.
Lógico que algo assim não acontece apenas porque cinco rapazes cheios de idéias na cabeça querem. Os grandes responsáveis por bancar essa revolução foram Atte Blom e Otto Donner, que estavam lançando um novo selo musical, o Love Records, e procuravam justamente uma banda nos moldes do Blues Section.
Formada a princípio pelo guitarrista Hasse Walli e pelo baixista Mans Groundstroem, o Blues Section surgiu do entusiasmo desses dois músicos pela nova corrente do blues elétrico inglês, particularmente pelo trabalho de John Mayall, Yardbirds, Jimi Hendrix e Cream. Outros músicos provenientes do jazz e de outras bandas de rock locais também se identificaram com a nova proposta musical de Walli e Groundstroem e eventualmente se juntaram à banda em suas primeiras apresentações. Mas a formação definitiva, aquela que aparece nas fotos do único álbum da banda, lançado naquele mesmo ano de 1967, é composta por Hasse Walli na guitarra, Mans Groundstroem no baixo, Eero Korvistoinen no sax alto, Ronnie Osterberg na bateria e pelo britânico Jim Pembroke, cantor e compositor de altos vôos e que aterrissou na cena de Helsinque em 1965 para encontrar-se com uma namorada finlandesa que ele conhecera na Inglaterra.
E seguindo a regra de toda revolução que se preze, o Blues Section foi fugaz e intenso, durando apenas um ano e meio e deixando de herança seu álbum de estúdio, um par de singles e a participação na compilação Some of Love 1969. Mas de sua autocombustão surgiram os dois principais grupos do prog rock finlandês dos anos 70, o Wigwam e o Tasavallan Presidentti, cujos membros, se fossem submetidos a algum teste do bafômetro, acusariam altas dosagens de Canterbury Sound, West Coast Sound, Traffic e jazz rock no organismo.
Wigwam – Os caçadores do crepúsculo.
Oficialmente, o Blues Section acabou em 1968, com uma formação que mantinha apenas o baterista Ronnie Osterberg como músico remanescente do único disco gravado pelo grupo. Assim que a banda fechou suas portas, Ronnie logo foi convidado a formar uma banda que serviria de apoio para um conhecido cantor pop finlandês chamado Kristian. Ronnie trouxe para o grupo o guitarrista Vladimir ‘Nikke’ Nikamo e o baixista Mats Huldén e os três permaneceram tocando para Kristian até janeiro de 1969 quando decidiram cair fora e montar uma banda que desse vazão aos seus projetos pessoais. Convidaram então Jim Pembroke para assumir os vocais e estava completa a primeira formação do mais famoso e querido grupo de rock progressivo da Finlândia nos anos 70, o Wigwam.
Imediatamente Pembroke compôs duas canções para o primeiro single do grupo (Must Be The devil / Greasy Kid’s Stuff), lançado pela Love Records nos primeiros meses de 1969, ainda com uma sonoridade fortemente vinculada ao trabalho anterior do Blues Section.
Começaram então a excursionar pelo norte da Finlândia com um outro grupo de Helsinque chamado The Rooster, do compositor, vocalista e ótimo tecladista Jukka Gustavson. Assim que acabou a excursão, Jukka é convidado a integrar o Wigwam e os cinco rapazes passam a trabalhar no material que viria a compor o primeiro LP da banda.
O que contribuiu muito para tornar essa estréia tão especial foi o fato do grupo ter dois ótimos compositores, Gustavson e Pembroke, trabalhando de forma isolada e com visões absolutamente diferentes, tanto que o lado 1 do disco é todo dedicado às composições de Gustavson, cantadas em finlandês e o lado 2 comporta uma suíte de Pembroke dividida em 9 partes, cantada em inglês.
Outra curiosidade: como o grupo estourou o orçamento dedicado ao estúdio de gravação, não sobrou dinheiro para a confecção da capa do disco. Consequentemente, a primeira edição, de apenas 400 cópias, saiu com as capas feitas pelo próprio grupo, com desenhos e textos à mão, o que fez dessa edição um cobiçado item de colecionador.
Entre dezembro de 69 e abril de 70, o Wigwam lançou dois singles de muito sucesso no mercado finlandês e teve a primeira mudança em sua formação, com a saída do baixista Mats Huldén e sua substituição pelo excelente Pekka Pohjola.
Kim Fowley entra em cena
Quando Lester Bangs comentou Hard’n’Horny nas páginas da Rolling Stone, ele não poupou adjetivos. Para o crítico, o Wigwam estava tomado do mesmo espírito que conduziu o álbum Tommy do Who e o Abbey Road dos Beatles. Exageros à parte, essa resenha caiu nas mãos de Kim Fowley, produtor, músico e figurinha fácil na cena californiana desde o surgimento do Flower Power.
Pressionados pela chegada do americano, os músicos do Wigwam trataram logo de compor o material desse novo disco e, antes do Natal de 1970, ele já estava nas ruas para a alegria (e também em grande parte decepção) dos fãs.
O problema é que Fowley estava tão determinado a transformar a banda na nova sensação do mercado que mexeu bastante no conceito original do álbum, encurtando as músicas, dispensando o guitarrista Nikke Nikamo e dando ênfase especial às guitarras dos recém chegados Heikki Laurila e Jukka Tolonen (este o guitarrista da banda Tasavallan Presidentti, convidado para este álbum e colaborador eventual de outros futuros trabalhos do Wigwam ).
Talvez a maior contribuição de Kim Fowley nessa sua passagem pelo Wigwam tenha sido seu esforço sincero em promover a banda. Graças a ele, um disco duplo foi lançado pela MGM/Verve nos EUA, contendo todo oTombstone Valentine mais três músicas do primeiro LP e nove faixas do Blues Section. O engraçado é que, devido à popularidade que a banda vinha conquistando na vizinha Suécia, esse álbum duplo importado da América podia ser comprado nas lojas de lá por um preço dos mais salgados.
Próxima parada: rock progressivo
Em 1971, Genesis, Yes, ELP, Pink Floyd, King Crimson e Gentle Giant já estavam dando uma nova dimensão ao mundo da música. Depois de passar o ano todo envolvido na composição e produção de seu terceiro LP, o Wigwam lança o álbum duplo Fairyport em dezembro, com uma sonoridade totalmente identificada com o novo rock progressivo.
Comparado aos seus trabalhos anteriores, este novo disco se revelava muito mais ambicioso, tanto nas cativantes letras conceituais quanto nos arranjos, que passaram a contemplar os músicos com generosos momentos para demonstrar todo o seu virtuosismo. O quarto lado do álbum duplo foi gravado durante uma jam session ao vivo, tendo novamente como convidado o guitarrista Jukka Tolonen, do Tasavallan Presidentti. Pena que a qualidade de som desta jam não seja das melhores.
O álbum também ganhou uma capa à altura do seu conteúdo, mostrando uma linda pintura feita especialmente para o disco pelo artista Jorma Auersalo. Dentro, um encarte de 18 páginas mostrava fotos e todas as letras, sob a direção de arte do artista underground Peter Widen. Tanto capricho transformou Fairyport no LP do ano na Finlândia e um dos mais interessantes discos europeus daquele ano mágico.
1972, porém, passou em branco para a discografia do Wigwam. O grupo dedicou-se às apresentações ao vivo e tanto Pembroke quanto Pohjola lançaram seus primeiros discos solo. Sobrou para Gustavson a tarefa de compor músicas para o próximo álbum do grupo e ele passou a ano trabalhando nisso.
Being, o próximo trabalho do Wigwam, em grande parte baseado em composições de Gustavson, só ficou pronto no segundo semestre de 73. Foi um parto difícil e demorado, mas se revelou a obra prima do grupo, um dos mais brilhantes frutos do rock progressivo. As letras de Gustavson, que aparecem no encarte do disco em finlandês e com tradução para o inglês, já dão um bom exemplo da complexidade deste novo trabalho: uma sátira à sociedade de classes e uma crítica profunda às ideologias políticas, como o comunismo, o capitalismo e o fascismo.
Embora o melhor trabalho da banda até o momento, Being não alcançou em vendas o sucesso que teve por parte da crítica. Nas páginas do New Musical Express, por exemplo, o crítico Ian McDonald, empolgado, chegou a afirmar com todas as letras que o Wigwam era a melhor banda de rock fora da Grã Bretanha e dos Estados Unidos.
Um disco ao vivo antes de pedir a conta
Justo quando tudo parecia ir bem, Gustavson lança a bomba: queria deixar o grupo. Outro que aderiu a onda foi o baixista Pekka Pohjola. Ambos alegaram preferir tocar seus próprios projetos e dar um tempo dos compromissos com o Wigwam. Como contrapeso, entra na banda um novo guitarrista, Pekka Rechardt, que já havia colaborado antes em alguns trabalhos do grupo.
O que acabou adiando um pouco a saída dos dois músicos foi a oportunidade do Wigwam excursionar pelo Reino Unido junto com a banda Tasavallan Presidentti. No final dessa excursão, três apresentações em Helsinque, em junho de 1974, marcaram o adeus de Gustavson e Pohjola.
Uma peculiaridade dos shows do Wigwam desde os seus primeiros dias, é que a banda não focava apenas no seu próprio repertório. Músicos exímios, eles costumavam privilegiar materiais de outros artistas, compondo arranjos novos e com muita personalidade, onde costumavam brindar o público com solos e jams arrasadoras. Traffic, Procol Harum, Beatles, The Band, John Lennon e até mesmo Jean Sibeluis eram sempre homenageados nos shows.
Uma prova disso fica evidente no próximo LP da banda, o duplo ao vivo Live Music From The Twilight Zone, o último álbum a apresentar a formação clássica do Wigwam. Depois de ouvirem todo o material gravado nos três últimos shows e selecionarem as músicas que responderam melhor tanto no aspecto técnico da gravação quanto na performance da banda, não sobrou nenhuma música que já tivesse sido gravada nos álbuns de estúdio. E metade das faixas são de versões para músicas dos Beatles (Let It Be), John Lennon (Imagine), Sonny Boy Williamson (Help Me / Checkin’ Up On My Baby) e The Band (os estonteantes 17 minutos de The Moon Struck One).
Surge um novo Wigwam
Jim Pembroke nos vocais e teclados, Pekka Rechardt na guitarra, Mans Groundstroem no baixo e Ronnie Osterberg na bateria. Com essa formação começa uma nova vida para o Wigwam e em 1975 eles lançam o álbum Nuclear Nightclub, o mais bem sucedido comercialmente de toda a carreira da banda.
Esse disco marca também o início de um contrato de cinco anos com a Virgin Records para o lançamento e promoção de seus LPs na Inglaterra, onde até mesmo um “Wigwam Evening” foi criado no Marquee Club para a venda de toda a sorte de material promocional da banda.
Depois de excursionar pela Escandinávia e fazer seu primeiro show em Londres, no Hyde Park, a banda volta ao estúdio para a gravação de seu próximo disco, Lucky Golden Stripes And Starpose, produzido pelo ex-Stone the Crows Ronnie Lehay e com a adição de um segundo tecladista, Hessu Hietanen.
O álbum foi lançado na Inglaterra em 1976 durante uma excursão do Wigwam pelo país juntamente com o Gong. Na sequência a banda foi para a Suécia e terminou o verão se apresentando no Roskilde Festival, na Dinamarca, ao lado do Magma e do Weather Report.
The End
Esse período de grande agitação para o grupo infelizmente não durou muito, uma vez que com a chegada de 1977 a Virgin passou a focar seus holofotes na nova onda punk.
Entre o final de 76 e boa parte de 77, o Wigwam experimentou um sério período de ostracismo, sem shows agendados e com um certo pouco caso por parte da Virgin, já que Lucky Golden Stripes And Starpose não vingou comercialmente.
Um novo álbum foi gravado na Finlândia, mas teve duas recusas seguidas da gravadora inglesa em aprovar o material. Finalmente, a Virgin dispensou a banda e o Dark Album, o derradeiro LP do grupo, foi lançado apenas pela Love Records.
Foi o fim do Wigwam.
Surpreendentemente, em 1979, a Virgin lançou na Inglaterra a coletânea dupla Rumours On The Rebound, com faixas tiradas dos dois LPs lançados pela gravadora, do Dark Album e do terceiro disco solo de Jim Pembroke. Tanto o New Musical Express quanto o Melody Maker cobriram o lançamento de elogios, mas isso serviu apenas como um belo epitáfio para uma das melhores bandas de rock progressivo de todos os tempos.
Tasavallan Presidentii – Cinco anos de mandato e nenhum protocolo.
O outro grupo a surgir das cinzas do Blues Section foi o Tasavallan Presidentti (Presidente da República), formado em 1969 por Mans Groundstroem no baixo,
Jukka Tolonen na guitarra, Vesa Aaltonen na bateria, seu irmão Juhani Aaltonen no sax e flauta e por Frank Robson, cantor e tecladista que havia substituído Jim Pembroke no BS.
Seu primeiro LP homônimo saiu pela Love Records no mesmo ano e lembra muito o Traffic e o Spooky Tooth, com pitadas de Jimi Hendrix e psicodelia americana. A alta qualidade de seu som logo conquistou o público finlandês que elevou o Tasavallan Presidentti ao mesmo patamar ocupado pelo Wigwam. Foram, sem dúvida, as duas melhores bandas finlandesas dos anos 70.
Apesar do bom início, Juhani Aaaltonen decide abandonar o grupo e é substituído por Pekka Pöyry. Estamos em 1970 e o TP já é uma das bandas ao vivo mais excitantes do país, tanto que em um de seus shows eles são observados pelo produtor Bob Azzam que oferece aos rapazes um contrato de gravação com a EMI da Suécia.
Tasavallan Presidentti II foi gravado em Estocolmo e teve o mesmo produtor que ficaria famoso anos mais tarde por produzir os discos do Abba. Lançado apenas na Suécia, o resultado foi um excelente álbum, uma jóia perdida dos primeiros anos do progressivo, misturando músicas inéditas a regravações de algumas faixas de seu primeiro LP.
Em 1972, a banda assina com o selo sueco Sonet Records e lança seu terceiro álbum no segundo semestre. Frank Robson não faz mais parte da formação, sendo substituído por Eero Raittinen. Lambertland já não tem nada a ver com o som dos dois primeiros discos, enveredando agora por um jazz fusion repleto de boas conversas entre a guitarra de Tolonen e o sax de Pöyry.
Lambertland foi distribuído também na Inglaterra, onde o Tasavallan Presidentti começa a construir uma boa reputação, excursionando pelo país em novembro de 72. Infelizmente o álbum também marca a saída de Groundstroem que é substituído no baixo por Heikki Virtanen.
Em agosto de 1973 acontece o ponto alto da banda em solo inglês, com sua apresentação no Reading Festival, sendo apontada como responsável por um dos melhores shows do festival. O New Musical Express definia o som do grupo como um jazz rock embriagado nas destilarias sonoras de Frank Zappa e Jukka Tolonen como um guitarrista tecnicamente alma gêmea de McLaughlin e Coryell.
Tanto cartaz, contudo, não impediu o final da banda em 1974, logo após o lançamento de seu quarto LP,Milky Way Moses, que foi licenciado para os Estados Unidos pela Janus Records e que seguia o caminho trilhado por Lambertland.
O Tasavallan Presidentti, assim como o Wigwam, foram os grandes responsáveis por colocar a Finlândia no mapa do progressivo europeu dos anos 70 e acabar de vez com o mito de que a boa semente do rock não germinava sob o sol da meia noite.