Shows Inesquecíveis: Dez anos de Macca em Fortaleza
Por Eudes Baima
Lembro até hoje como tinha tudo para dar errado. O caos no trânsito daquele dia 09 de maio de 2013 era uma boa mostra da inviabilidade viária de Fortaleza, da incompetência dos órgãos de trânsito e da “excelência” dos serviços privados licitados que substituíram, parece que para sempre, as agências estatais de infraestrutura. O amadorismo e irresponsabilidade da produtora do evento se mostrou na “organização” das filas de entrada que ameaçou virar um caos dada o total vale-tudo que rolou para ter acesso ao estádio.
Eu que não tinha tido ânimo ainda para ir ao Castelão (particularmente, não consigo curtir um negócio construído com dinheiro público e entregue de mão beijada a um gestor privado) fui apresentado ao então novo estádio, pronto para a Copa do 7 x 1. Bonito, mas um exemplo desta praga histórica da arquitetura e da engenharia brasileiras: o transplante de modelos estrangeiros para o meio local sem qualquer adaptação às peculiaridades regionais. Dizer que o estádio é feio é um absurdo, mas foi feito para terras em que neva e cai granizo. A cobertura quase total transformara o antes ventilado estádio numa estufa sufocante, sem entrada de ar nem aberturas de ventilação.
Ao mesmo tempo, a reforma futurista do estádio não havia chegado aos bares e banheiros. Os bares eram a mesma porcaria do velho castelão, coisa de pinguço vendendo só água e cerveja, e os caixas eram caixas mesmo, de papelão, onde o funcionário que manipulava o dinheiro era o mesmo que serve a bebida. Comida? Banquinha de “cai duro”1 e pipoca.
Mas a graça distribuída por Paul McCartney tornou tudo isso secundário, e saí cheio de felicidade do show. Ou seja, Paul salvou uma noite que tinha todo os ingredientes para ser o mico do ano. Pois bem, e o show? Esqueçam a excelência da produção, a perfeição do som, o repertório de clássicos, a destreza de Paul como showman, a competência da banda.
Tudo isso teve, mas o que que ficou mesmo é a vida da gente resumida ali em 2 horas e meia de canções dos Beatles e da carreira de Paul McCartney, com os Wings e solo, a massacrante emoção da sequência final de Abbey Road que fechou o show, o clima “vamos quebrar tudo” de “Helter Skelter”, a epifania de “Live and Let Die”, o sentimento blues de “Let me Roll It” … enfim, a comoção que, apesar da maioria de curiosos que não conhecia senão os standards mais populares dos Beatles, reuniu velhos amigos, pais e filhos que têm passado a vida sob a influência benfazeja da música do Fab Four.
Paul entrou britanicamente às 21:30 para um espetáculo que não terminaria até as 00:30, três horas que voaram e que não pareceram desgastante nem para aquele educadíssimo senhor de então 71 anos que, aliás, não se fez de rogado nem quando teve o carro cercado de fãs na saída do hotel para o Castelão: saltou e distribuiu cumprimentos aos fãs.
Como de praxe, abriu com uma versão pesada de “Eight Days a Week” que sacudiu os fundamentos da arena, e na qual Paul foi logo dizendo a que veio. Para perplexidade de alguns e gozo dos fãs autênticos, emendou com “Junior’s Farm”, de um single de 74 (encontrável na antologia Wings Greatest, bastante conhecida no Brasil), mantendo o tom rock’n’roll da coisa. Evidentemente o perfil do show foi o de uma coleção onde se alternam inevitáveis faixas dos Beatles e hits da carreira solo (Paul, contudo, tem material para montar infinitos set lists, sem se repetir). Por isso, a uma cativante “All My Loving”, cantada em coro por dezenas de milhares de vozes, se seguiu a emblemática “Listen to What Man Said” e o primeiro momento acima da média da noite (e foram muitos), uma detonante versão para o blues “Let me Roll It”, com a cozinha baixo-bateria tonitruando noite à dentro. Aí, todo o perrengue da chegada ao Castelão já tinha valido a pena, com sobras.
Após uma bela “My Valentine”, única canção com menos de 15 anos executada no show, de novo, a multidão de curiosos atraídos pelo ex-beatle ficou a ver navios, mas os fãs atingiram novo nirvana com a também inesperada “Nineteen Hundred and Eighty Five”, do genial álbum Band on The Run que, aliás, foi o disco solo mais lembrado no set list. Para rebater e trazer o público de novo para seu controle, Paul tirou do bolso os lindos acordes de “The Long and Winding Road”, que preparou nossos corações para o segundo momento de massacre emocional do show, “Maybe I’m Amazed”, dedicada à memória de Linda Eastman. A escrupulosa reprodução do arranjo original, de McCartney I (1969), arrancou lágrimas de muito sessentão, mas também da nova geração de beatlemaníacos.
Jogo ganho de goleada aos 15 minutos do primeiro tempo, Paul se deu ao luxo de encaixar talvez a única faixa memorável de Off The Ground, esquecível álbum de 1993, “Hope of Deliverence”, para deslanchar a seguir uma sequência que incluiu hits adolescentes dos Beatles, passando por gemas setentistas como a belíssima “Another Day”, conduzida à viola, e “Here Today”, de 1982, escrita sob o impacto da morte de John Lennon. “Your Mother Should Know”, “Lady Madonna” e “All Together Now”, dedicada às crianças que eram muitas no Castelão, compuseram uma sequência de canções dos Beatles onde a primeira, pouco lembrada até por fãs medianos, cobriu o estádio de fog londrina e imagens lisérgicas, reforçadas pelas cenas de Magical Mistery Tour projetadas no cenário.
A popularidade perene de “Mrs. Vandebilt” preparou o público para a grande surpresa da noite, “Being in Benefit of Mr. Kite”, a complicadíssima faixa de Sgt. Pepper’s Lonelly Hearts Club Band, raramente tocada ao vivo e, nesta turnê, incluída pela primeira vez no set list. Ouvi a canção pensando nas páginas de Paz, Amor e Sgt. Pepper, onde George Martin lembra da dificuldade de gravação desta faixa, que incluiu desde arrumar a gravação de um velho realejo de circo do princípio do século XX, até uma complicada colagem de fitas com oscilação de andamento, etc. Tudo isso se reproduz hoje facilmente, mesmo ao custo dos melhores e mais caros teclados eletrônicos. A canção terminou e eu ali pensando: “de que coisas seria capaz George Martin se tivesse essa tecnologia à mão…”.
Com “Live and Let Die” tivemos a terceira epifania da noite. Não adianta nada saber que há quase 50 anos Paul faz desta canção a hora mais intensa e explosiva de seus concertos. Nada te prepara para a experiência sonora e visual deste momento que deixou o público, dos mais escolados aos neófitos, suspensos por um momento, e com sérias dúvidas de se poriam os pés no chão de novo. A combinação de melodia espetacular e peso insuportável deste tema de James Bond foi arrebatadora, e um dos melhores momentos da carreira de Paul.
Não foram poucos os que, como eu, desejaram sem esperança, que Paul esquecesse “Yesterday” (pura ilusão, foi tocada em um dos encores), “Let It Be” e “Hey Jude”. Mas vamos ser francos: o concerto de Paul McCartney vai muito além de um simples rock show. Aqui se jogam a fé nos Beatles, dezenas de anos de vida ao som da banda, o imaginário coletivo em torno deles. Estas canções catalisam tudo isso. São inevitáveis. Surpresa mesmo é encher os olhos d’água vendo o público tomar a cena e se tornar protagonista, como em “Hey Jude”, com milhares de balões dançando sobre a cabeça da massa, nitidamente emocionando o próprio Paul.
Já é de lei. Depois de umas 2 horas e meia de show, Paul volta para dois encores. Todo mundo já sabe e o delírio nem é pra pedir que ele volte. É só delírio mesmo. “Helter Skelter”, no primeiro encore, mostra para molecada como é que se faz, e a sequência clássica “Golden Slumbers/Carry that Weight/The End” se encarrega de acabar com minhas últimas resistências e eu acabo o show chorando feito menino do buchão nos braços de meu filho. Ainda houv eum tal pedido de casamento feito no palco, sob as bênçãos de Paul, mas que foi incapaz de quebrar o encantamento de uma noite inesquecível.
Set List
1. Eight Days a Week
2. Junior’s Farm
3. All My Loving
4. Listen to What the Man Said
5. Let Me Roll It
6. Paperback Writer
7. My Valentine
8. 1985
9. The Long and Winding Road
10. Maybe I’m Amazed
11. Hope of Deliverance
12. We Can Work It Out
13. Another Day
14. And I Love Her
15. Blackbird
16. Here Today
17. Your Mother Should Know
18. Lady Madonna
19. All Together Now
20. Mrs. Vandebilt
21. Eleanor Rigby
22. Being For The Benefit Of Mr. Kite
23. Something
24. Ob-La-Di, Ob-La-Da
25. Band On The Run
26. Hi Hi Hi
27. Back In The USSR
28. Let It Be
29. Live And Let Die
30. Hey Jude
Bis
31. Day Tripper
32. Lovely Rita
33. Get Back
Bis 2
34. Yesterday
35. Helter Skelter
36. Golden Slumbers/Carry that Weight/The End
1 Sanduíche de “carne” moída típica dos estádios de futebol cearenses e, como indica o nome, só para os fortes.