Discos que Parece que Só Eu Gosto: John Lennon & Yoko Ono – Some Time in N. Y. C. [1972]
Por Marcello Zapelini
“Discos que Parece que Só Eu Gosto” sempre foi uma das minhas seções favoritas na Consultoria do Rock – até porque em alguns casos ela fazia com que eu não me sentisse muito deslocado, porque várias das obras resenhadas eram apreciadas por mim. Mas o álbum que escolhi para a seção é universalmente desprezado pela crítica e até mesmo pelos fãs mais ardorosos dos Beatles e de John Lennon, mas, para mim, os titulares lançaram coisa muito pior sem receberem críticas tão pesadas…
Em 1972, Lennon e Yoko estavam morando em New York já fazia alguns meses, e vinham sendo bastante ativos política e culturalmente na cena local. Lennon viera de um de seus maiores sucessos comerciais, o álbum Imagine (que eu pessoalmente detesto – mas isso seria objeto para uma hipotética seção “Discos que Parece que Só Eu NÃO Gosto), e contava já com seis álbuns fora dos Beatles – a trilogia avant garde com Yoko de 1968-69, o ao vivo Live Peace in Toronto, John Lennon – Plastic Ono Band e o já citado Imagine. Some Time in New York City é um álbum duplo, lançado exatamente há 51 anos, em 12 de junho de 1972, com um disco de estúdio (muito bom) dividido entre John e Yoko e um ao vivo (não tão bom assim…) gravado em 15 de dezembro de 1969 e no Fillmore em junho de 1971, com a participação de Frank Zappa e seus Mothers of Invention.
As músicas de estúdio são gravadas por John, Yoko, o baterista Jim Keltner e a banda Elephant’s Memory. O disco de estúdio é uma espécie de “jornal sonoro”, que reflete os problemas que o mundo – sobretudo os EUA – atravessava na época, e inspirou a arte da capa, que imita um jornal e traz as letras das músicas; aliás, a capa é muito semelhante à de Thick as a Brick, do Jethro Tull, que fora lançado três meses antes. E o envelope do LP ao vivo era baseado na capa do Fillmore 1971 do Frank Zappa & The Mothers of Invention, com anotações manuscritas de John. Antes de passar para as músicas, devo admitir que concordo com os críticos num aspecto: a qualidade sonora do disco de estúdio é ruim, com um som baixo e abafado.
O álbum começa com a música mais conhecida, “Woman is The Nigger of the World” (creditada a John e Yoko), com Lennon cuspindo fogo contra a subordinação das mulheres na sociedade. Lançada em compacto, a canção não atingiu muito sucesso (ficou de fora do Top 50), mas faria parte da coletânea Shaved Fish em 1975, o que lhe daria alguma exposição. Na sequência, “Sisters O Sisters”, de Yoko, mantém as mulheres em foco; aqui Yoko se concentra em cantar, e mesmo que você não goste da voz dela, é obrigado a admitir que ela se esforçou. A pesada “Attica State”, outra parceria entre John e Yoko, traz Lennon de volta em uma música que critica a repressão policial nessa prisão, e mostra o nosso herói num dos momentos mais roqueiros de sua carreira solo. Yoko assume a liderança novamente com “Born in a Prison”, mantendo a unidade temática com a anterior, e mais uma vez ela se esforça com sua voz quase infantil; entretanto, a música não é das melhores.
John ressurge com “New York City”, mais um bom rock, e uma das minhas favoritas, não só do álbum, mas de toda a carreira solo de John; “Que pasa New York” é um refrão inesperado, mas divertido. Nessa música, Lennon não protesta, ele narra sua vida na chegada à cidade que amava. Na sequência, tem-se a “Sunday Bloody Sunday” menos famosa, com uma introdução percussiva (mera coincidência?) e um Lennon agressivo no vocal – a música ficaria melhor sem a participação de Yoko, mas ela é apenas um detalhe menor. “The Luck of the Irish” mantém o foco nos problemas da Irlanda do Norte e apresenta uma das mais belas melodias do álbum, que evoca a tradição musical irlandesa; Lennon e Yoko dividem os vocais e os créditos das músicas, mas a segunda é aquela em que a voz de Yoko ganha mais destaque.
“John Sinclair” critica a prisão do personagem-título, ligado à banda MC5, por porte de drogas, e traz um belo trabalho de slide guitar numa melodia quase folk, creditada somente a John. Uma boa música, que talvez tivesse mais destaque se tivesse sido lançada em outro disco. “Angela” vem a seguir; dedicada à ativista Angela Davis, a mesma que os Stones homenagearam em “Sweet Black Angel”, é outra bela melodia, cantada em dueto, ainda que novamente a voz de Yoko seja mais proeminente. O álbum se encerra com “We’re All Water”, de Yoko, indubitavelmente a pior música do disco de estúdio – se as outras músicas que ela assinou sozinha têm algum charme, esta não tem o que a salve; os músicos parecem ter sido gravados com um único microfone, e os gritos de Yoko só servem para dar mais argumento para quem a detesta.
O disco ao vivo tem lá sua dose de controvérsias. No LP original, o lado A traz duas músicas gravadas num show para a Unicef em 15 de dezembro de 1969, com a participação de George Harrison, Eric Clapton, Delaney & Bonnie, Jim Gordon, Bobby Keys, Alan White, Keith Moon, entre outros. A versão de “Cold Turkey” é muito boa, profundando o desespero da original. “Don’t Worry Kyoko” é um problema; se, por um lado, a jam instrumental é boa, por outro tem-se que aguentar a gritaria de Yoko. Gostaria de ter uma oportunidade de ouvir a música com o vocal dela apagado… De todo modo, ainda acho a parte instrumental aqui mais interessante do que a versão em Live Peace in Toronto. Mas não critico quem não ouvir a música toda.
O lado B original é ainda mais controverso, porque John e Yoko participaram de um show de Frank Zappa, e se “apoderaram” das gravações; as músicas sairiam em discos de John e de Zappa, mas este não foi autorizado a lançá-las. Zappa também se queixou de os vocais de Howard Kaylan e Mark Volman terem sido apagados da mixagem. Essa parte do álbum começa bem, com “Well (Baby Please Don’t Go)”, que remete aos anos 50 que John e Frank tanto gostavam (ainda que, mais uma vez, os gritos de Yoko prejudiquem a música), e depois segue com as jams dos Mothers com o casal: “Jamrag”, embora creditada a John e Yoko, não é outra coisa senão “King Kong”, ainda mais desconjuntada que a original; “Scumbag” é musicalmente mais interessante e inclui Zappa chamando a plateia para cantar.
Por fim, “Aü” é basicamente feedback das guitarras e Yoko fazendo um escarcéu, bem descrita pelo título magnificamente sardônico que Zappa deu a ela no seu álbum Playground Psychotics, de 1992 (em que ele finalmente lançou as gravações com Lennon e Yoko): “A Small Eternity with Yoko Ono”. Em resumo: do disco de estúdio, apenas “We’re All Water” é dispensável, ao passo que do ao vivo somente “Cold Turkey”, “Well (Baby Please
Don’t Go)” e “Scumbag” motivam novas audições. John confessaria que a má recepção do álbum o abalou um bocado; para piorar, o disco teve seu lançamento atrasado na Inglaterra (só saiu em setembro de 72) e alcançou apenas o 48º lugar da parada americana.
O álbum ao vivo tinha sido planejado como um bônus para os fãs, mas no lançamento original acabou recebendo seu próprio número de catálogo, jogando os preços lá em cima. Em seguida, em novembro de 72, Richard Nixon (que detestava John) foi reeleito presidente – e Lennon sabiamente abandonou o ativismo político para não ser expulso do país (o disco inclusive traz uma petição a ser assinada e enviada para defender a permanência do casal nos EUA). Ao longo dos anos, o disco seria uma “ovelha negra” no catálogo de Lennon, e chegou inclusive a ficar de fora num dos muitos relançamentos em CD depois dos anos 80. Para mim, o disco é uma viagem pela mente de John e Yoko e mostra o que eles pensavam e sentiam na época, e nesse sentido só encontra paralelo no John Lennon – Plastic Ono Band – que é a obra-prima dele para mim.
Mas Some Time… é uma viagem melhor do que muita gente acredita.
Track list
- Woman Is the Nigger of the World
- Sisters, O Sisters
- Attica State
- Born in a Prison
- New York City
- Sunday Bloody Sunday
- The Luck of the Irish
- John Sinclair
- Angela
- We’re All Water
- Cold Turkey
- Don’t Worry Kyoko
- Well (Baby Please Don’t Go)
- Jamrag
- Scumbag
- Aü