Datas Especiais: 55 anos de Cheap Thrills
Por Mairon Machado
Hoje, um dos álbuns mais vendidos na história da música completa cinquenta e cinco anos, o clássico eterno Cheap Thrills. Lançado pelo grupo californiano Big Brother & The Holding Company na data de 12 de agosto de 1968, na sua época foi a consolidação de uma estrela chamada Janis Joplin entre os grandes nomes do rock californiano, e hoje, é tido como um dos discos essenciais para se compreender o som da Califórnia, ao lado de Surrealistic Pillow (Jefferson Airplane) e Moby Grape (Moby Grape).
Para entender o por que de Cheap Thrills ser tão relevante, voltamos no tempo, mais precisamente em 1965, quando o ex-colega de banda de Jerry Garcia, o guitarrista Peter Albin, conheceu outro guitarrista, Sam Andrew. Albin possuía influências do blues e do country, enquanto Andrew vinha de uma formação jazzística, muito influenciada pelo período de dois anos que ele viveu morando em Paris. Porém, a afinidade musical da dupla surgiu de imediato, e logo, como muitos garotos da época, decidiram formar uma banda.
O primeiro a entrar no grupo foi mais um guitarrista, James Gurley. Gurley era o mais velho dos três, tendo como experiência uma passagem pelo grupo Progressive Bluegrass Boys, onde chamou a atenção de uma pessoa que também foi muito importante para o surgimento do Big Brother: Chet Helms. Helms era um famoso produtor da região de San Francisco, e quando descobriu que uma nova banda estava surgindo, foi ele quem sugeriu de apresentar Gurley aos dois garotos.
O encontro foi feito entre o quarteto e mais um jovem baterista, Chuck Jones, e ali, nascia o Big Brother & The Holding Company, com Albin e Andrew se alternando nas vozes e no baixo, tendo o nome inspirado no famoso jogo Banco Imobiliário. O grupo começou a fazer shows pela região da bay area, e em janeiro de 1966, Jones foi substituído pelo baterista David Getz. Getz também vinha de uma carreira ligada ao jazz, e sua habilidade com as baquetas chamou a atenção, principalmente pelo seu estilo irreverente e sempre alegre.
A entrada de Getz deu um novo gás, e logo, o Big Brother & The Holding Company passou a figurar como atração principal na famosa casa de shows Avalon Ballroom. O som do grupo era puramente psicodélico, inspirado bastante em longas improvisações instrumentais. Porém, sob o comando de Helms, o quarteto foi obrigado a escolher um vocalista, com a justificativa de que só assim iriam conseguir um bom contrato. Assim, surge o nome de Janis Joplin.
Janis começou a sua carreira muito cedo. Nascida em Port Arthur (Texas), com apenas 10 anos, já era a cantora principal no coral da Igreja de Cristo, onde passou a ter contato com cantoras como Billie Holliday, Big Mama Thorton e aquela que Janis dizia ser sua maior influência: Bessie Smith. Além diss, Janis tinha uma incrível habilidade com a pintura, chegando a expor alguns quadros em um café de Port Arthur, pouco depois de completar 16 anos. Enquanto cursava o ensino médio na escola Thomas Jefferson, passou a ter contato com o folk, e começou a fazer seus primeiros mini-shows. Logo após concluir o ensino médio, entrou para a Lamar State College Technology, em Beaumont (Texas), passando a transitar por Los Angeles e Venice, ambas na Califórnia. Janis acaba fugindo da escola, e vive um período de experimentações, sobrevivendo graças a um bico de telefonista em Los Angeles. É por lá que começa a ter contato com anfetaminas e drogas mais pesadas, além de, por abuso de álcool, ser internada em um hospital na cidade de Beaumont, para poder fazer uma desintoxicação. Janis viveu na Califórnia até 1961, quando completou 18 anos, e voltou para Port Arthur, onde passou a investir na música, realizando seu primeiro show justamente na virada do ano de 1961 para 1962, no Halfway House, em Beaumont.
No ano seguinte, passa a cantar regularmente no Purple Onion, na cidade de Houston, e no já citado Halfway House, apenas com seu violão, até decidir mudar-se para Austin, onde passa a integrar a University of Texas, ganhando a vida como garçonete em um boliche e sendo a cantora de um grupo de blues, batizado de The Waller Creek Boys, ao lado do amigo Powell St. John. É nesse ano que ela gravou suas primeiras canções: um jingle para um banco local, que ficou conhecido como “This Bank Is Your Bank”, e o seu primeiro compacto, o blues “What Good Can Drinkin’ Do”.
Em 63, Janis abandona de vez a universidade, e muda-se para San Francisco, onde conhece o produtor Chet Helms, o qual é responsável por colocá-la no cenário musical da cidade no dia 25 de janeiro de 1963 (seis dias após completar 20 anos), com Janis fazendo sua primeira apresentação no Coffee and Confusion, ao lado do guitarrista Jorma Kaukonen (que depois iria fazer parte de uma das principais formações de outro grupo extremamente relevante de San Francisco, o Jefferson Airplane). A partir de então, Janis peregrinou por botecos e estúdios, criando um círculo de amizades com pessoas como David Crosby, Nick Gravenites, Peter Albin entre outros. São os amigos que fazem de Janis uma das atrações centrais do Monterey Folk Festival daquele ano.
Mas San Francisco era pouco para a jovem Janis, e ela decide mudar-se para Nova Iorque, onde envolve-se com heroína. Na Terra da Maçã, Janis permanece por um ano, até voltar para San Francisco, pesando pouco mais de 40 quilos e consumindo uísque com anfetaminas sem parar. Doente, a solução foi voltar para o Texas, onde fez um tratamento de desintoxicação que durou seis meses, quando surge o convite para integrar a linha de frente do Big Brother & The Holding Company.
Janis saiu do Texas e voltou para San Francisco. No dia 04 de junho de 1966, faz seu primeiro ensaio com o grupo, e seis dias depois, já estava cantando no Avalon. A entrada de Janis acabou mudando o som do Big Brother. Se antes o grupo era levado pelas longas experimentações instrumentais, agora fazia um som mais convencional, bem característico de outros grupos que começavam a surgir, como o já citado Jefferson Airplane, Moby Grape e Quicksilver Messenger Service.
Assim, começa a surgir uma pequena legião de fãs do grupo, e no final de 1966, a gravadora Mainstream, cujos lançamentos eram caracterizados principalmente por pertencerem ao jazz, fechou contrato para o primeiro disco. O Big Brother & The Holding Company tornou-se o primeiro grupo de rock a assinar com a Mainstream, e nos dias 12, 13 e 14 de dezembro, o quinteto vai para Chicago, onde gravam todo o material para ser lançado na estreia. Porém, algumas divergências quanto a produção e mixagem final acabaram atrasando o lançamento do mesmo. Antes, o compacto com “Blind Man” / “All is Loneliness” chegou no mercado em junho de 1967, mesmo mês que o grupo foi uma das principais atrações do Monterey Pop Festival.
Apresentando-se no dia 17 de junho, o grupo foi o segundo a entrar no palco, e colocou o local abaixo. Com uma performance estonteante, e com uma Janis Joplin alucinada, era a apresentação perfeita da banda para o mundo. Naquela tarde, o grupo apresentou as seguintes canções: “Down on Me”, “Combination of the Two”, “Harry”, “Roadblock” e “Ball and Chain”. A apresentação foi muito bem recebida, mas problemas contratuais fizeram com que os membros do grupo não concordassem com a gravação do áudio e do vídeo da mesma. Porém, no dia seguinte, o grupo voltou ao palco para fazer uma curta apresentação, onde tocaram “Combination of the Two” e “Ball and Chain”, e finalmente foram filmados. Ainda hoje, todos os que assistem ao vídeo de “Ball and Chain” arrepiam-se com os gritos encapetados de Janis, que parece estar sozinha no palco, mesmo estando em frente à milhares de pessoas. Era a consagração logo na sua estreia diante de um grande público.
O sucesso em Monterey ocorreu semanas antes da Mainstream Records lançar o primeiro álbum, apressando também o segundo compacto, com “Down on Me” / “Call on Me”, que chegou na quadragésima terceira posição, permanecendo entre as cinquenta mais por oito semanas. O problema é que a Columbia Records já havia entrado na jogada.
Em agosto, finalmente a estreia vinílica. Batizado apenas de Big Brother & The Holding Company, o disco já saiu entre os 100 mais vendidos no Estados Unidos, onde permaneceu por 30 semanas. Os destaques do LP ficam por conta de “Bye Bye Baby” (creditada para Janis e Powell St. John), “Light is Faster Than Sound” e “Down On Me”. As guitarras lisérgicas de Andrew e Gurley, a endiabrada cozinha de Getz e Albin, e a voz marcante de Janis, marcaram época, e fizeram com que o LP vende-se relativamente bem na região de San Francisco. Um terceiro compacto chegou a ser lançado, com “Women is Losers” / “Light is Faster Than Sound”, mas que não fez sucesso.
Ao mesmo tempo, um importante passo era dado pela Columbia Records, passo esse que levou ao texto de hoje. Motivada pelo enorme sucesso de Monterey, a gravadora decidiu investir no quinteto, bancando o contrato inicial de cinco anos que a Mainstream tinha, e relançando o álbum de estreia com duas canções novas. Depois, organizou uma extensa turnê de promoção pelo Estados Unidos, com o grupo sendo um dos primeiros do lado oeste a se apresentar no lado leste do país, mais precisamente em Nova Iorque, no dia 17 de fevereiro de 1968. Esse show fez com que a imprensa especializada pagasse pau de vez para Janis. Se antes era mais uma a fazer parte da banda, agora ela era tratada como a estrela soberana, com jornais e rádios enaltecendo suas performances cada vez mais incendiárias, e destruindo a performance dos demais membros do Big Brother & The Holding Company, chamando-os de fracos e incapazes de acompanhar Janis.
Mesmo assim, isso não atingia (a princípio) os integrantes, e eles continuaram firmes com a turnê, voltando novamente para Nova Iorque, onde inauguraram a casa Fillmore East, no dia 08 de março de 1968. Nessa turnê, a Columbia percebeu logo no início que a banda não era preparada para os estúdios, e assim como outro seminal grupo de sua geração, o Grateful Dead, o ponto alto eram os shows. Capturar o que o quinteto fazia em cima dos palcos era fundamental para o vinil, e não levá-los para um ambiente onde não estavam adaptados. Era no palco que o grupo improvisava, Janis soltava a voz e principalmente, as guitarras de Andrew e Gurley fundiam-se em uma massa sonora, apelidada por Gurley de freak rock, e que fazia o diferencial do Big Brother & The Holding Company das demais bandas.
O projeto então foi lançado: gravar um disco ao vivo. Assim, o show no Grande Ballroom de Detroit foi registrado, bem como outros que no geral, tiveram os resultados finais das gravações não agradando nem a banda e nem o produtor John Simon.
O projeto foi cancelado, e então, começou o período de dez dias nos estúdios, que claramente não era o lugar de Janis e cia, onde as canções foram gravadas ao vivo, e depois mixadas com gritos de público e aplausos. Além disso, todos os cinco estavam incomodados com a produção de Simon, alegando divergências musicais. Outro problema surgiu no nome do mesmo. Inicialmente, a ideia era Sex, Dope and Cheap Thrills, mas a Columbia achou o título ofensivo demais.
Então, em 12 de agosto de 1968, Cheap Thrills chegou às lojas, e chegou chegando. Um álbum sensacional e essencial. Barulhos de guitarra afinando, assim como bateria, trazem a voz de Bill Graham apresentando o grupo, e os aplausos de uma plateia falsa abrem espaço para a percussão e o tema marcado de baixo e guitarra, deixando Gurley solar com sua guitarra ardente e regada de lisergia, chegado ao rápido ritmo da canção, onde as vocalizações de Janis e Albin acompanham a letra cantada por Andrew. O ritmo dançante muda, ganhando o peso dos tons de Getz, e com Janis dando gritos alucinantes, acompanhada pelo tema marcado de guitarras e baixo. Andrew retorna à letra, que homenageia as casas de shows de San Francisco, sempre acompanhado pelas vocalizações de Albin e Janis, levando novamente para o tema dos gritos de Janis, onde podemos perceber a juventude de sua voz exalando em cada poro de seu corpo. A introdução é repetida, para ouvirmos mais um solo de Gurley, com notas muito rápidas, tendo um efeito em seu instrumento que é representativo das doses de LSD que consumiam as mentes hippies do final da década de 60. É uma pequena amostra da evolução técnica que havia ganho desde o primeiro álbum. Destaque também para as importantes linhas de baixo de Albin, e assim, “Combination of the Two” encerra-se com a última estrofe de Andrew, fazendo muitas vocalizações, levando as vocalizações gritadas de Janis, puxando o grupo para cantar com ela, e finalmente, com uma melodia vocal de Andrew, Janis e Albin.
Os aplausos finais de “Combination of the Two” abrem “I Need a Man to Love”, e mais aplausos surgem após o riff de Andrew surgir nas caixas de som, começando seu breve solo introdutório. Janis passa a cantar sobre a levada bluesística da canção, com sua voz rouca e triste na primeira estrofe, e de forma mais aberta na segunda, na qual conta com a parceria vocal de Andrew e Albin. O que Janis faz com a voz, alargando as cordas vocais ao máximo é quase que impossível de acreditar que estamos ouvindo um ser humano. O blues leve e sensual segue, com Andrew fazendo intervenções, e mantendo a mesma linha da primeira parte da canção, apenas adicionando mais vocalizações, influenciados pelo estilo gospel trazido por Janis. O solo de Andrew é bem diferente do estilo de tocar de Gurley, com notas mais claras, sem tantos efeitos e bem mais técnico, voltando então para a estrofe inicial que leva para o final de um grande clássico.
Outro clássico vêm na sequência, com a cover “Summertime” (original dos irmãos Gershwin). O arranjo feito por Andrew para essa canção é fantástico, tornando-a uma depressiva canção desde seu clássico tema inicial feito pela guitarra de Andrew, acompanhado pela leveza do baixo e bateria. As guitarras sobrepostas, entoando temas distintos, apresentam a voz mais que chorosa de Janis. Se o que ela faz em “I Need a Man to Love” é sobre-humano, “Summertime” é ainda absurdamente superior. Janis solta a voz como se fosse um tigre atrás de um prato de comida, e faz de uma alegre (na versão dos irmãos Gershwin) canção, uma das mais corta-pulsos que o mundo já ouviu. Andrew também está tocando muito, justificando a sua escolha para seguir ao lado de Janis, pois nessa época, sem dúvida ele era o mais técnico do quarteto instrumental. Maravilhosa faixa, com uma maravilhosa interpretação, em uma versão definitiva para a mesma.
E como não podia ser diferente, o lado A encerra-se com outro grande clássico, “Piece of My Heart”, mais um cover, agora para a canção de Bert Berns e Jerry Ragamov, começando com o belo solo de Andrew sobre a levada agitada de baixo, bateria e guitarra, trazendo as vocalizações de Janis e Albin e virando uma tímida balada sessentista, que aos poucos, levada pela interpretação vocal de Janis, cresce, e como um Tsunami, derruba tudo o que vem pela frente. O refrão, um dos mais fortes da carreira de Janis, grita “take another little piece of my heart baby” com uma dor dilacerante, acompanhado pelas vocalizações muito bem trabalhadas de Albin e Andrew, demonstrando mais uma vez a evolução técnica que o grupo ganhou de um álbum para outro. Mais uma vez, temos a oportunidade de conferir um pouco da técnica de Andrew, apesar de ele engasgar bastante em seu solo, e voltamos para o refrão, com Janis cantando forte a frase citada, encerrando a canção com a repetição da introdução.
O Lado B abre com “Turtle Blues”, a qual conta apenas com a participação de Albin no violão, John Simon no piano e Janis nos vocais. A impressão que essa canção passa é a de ter sido gravada em um boteco qualquer por causa dos samplers de copos quebrando, conversas e barulhos típicos de um bar. O piano de Simon abre a canção, trazendo a voz debochada de Janis em um blues anos 20, onde Albin apenas faz a marcação dos acordes E, A e B, enquanto Simon dedilha o piano, e Janis, obviamente, detona sua garganta. O solo de violão feito por Albin surpreende, pois afinal, o baixista do grupo toca muito bem as seis cordas, deixando Janis concluir a letra de um blues único dentro da lisergia californiana, já que não existe nenhum outro grupo daquele estado que tenha gravado algo tão raiz quanto “Turtle Blues”, em um ritmo entusiasmante, onde o suposto público começa a acompanhar com palmas os vocais de Janis, concluindo com gritos, tosses e alguns aplausos.
Depois, o grupo reaproveitou “Coo-Coo” (que ficou de fora da versão original do álbum de estreia) e transformou-a em “Oh Sweet Mary”, uma das melhores canções do grupo, que também surpreende por trazer Albin na guitarra solo e Gurley no baixo. Uma batida no prato traz o melodioso solo de Albin logo no início, com Getz batendo nos tons, Andrew tocando a guitarra como uma cítara e Gurley destruindo em escalas velozes no baixo. Andrew canta a letra da canção, acompanhado pelo ritmo viajante da canção, e então, um longo grito de Janis muda tudo 180º, virando uma lenta balada regada de vocalizações, para então, voltar à doideira inicial. Albin sola com um conhecimento do instrumento impensável para um baixista, e Gurley participa muito bem com suas velozes escalas no baixo. Lisergia pura, característico do período. Vocalizações permeiam os bends, escalas rápidas e vibratos de Albin, enquanto Getz delira nos tons e pratos, para Andrew voltar à letra, repetindo o longo grito de Janis, com as vocalizações, levando para mais um grande solo de Albin, agora variando acordes com fúria, acompanhando as batidas fortes de Getz, e encerrando com vocalizações em crescendo, acompanhadas por batidas marcadas de guitarra, bateria e baixo.
Cheap Thrills encerra com a melhor canção já gravada pelo Big Brother & The Holding Company, e um dos principais momentos da carreira de Janis Joplin, a clássica “Ball and Chain”. Original de Big Mama Thorton, aqui ela recebeu um arranjo todo especial, com acordes menores que transformaram um alegre jazz em um blues escaldante, sofrido e assustadoramente arrepiante. Em uma longa versão ao vivo, “Ball and Chain” é a única canção realmente gravada em um show. Apesar de constar na capa como sendo uma gravação de um show no Fillmore, na verdade a versão de Cheap Thrills foi registrada no Winterland Ballrom, em 1968, sendo esta a mesma versão que aparece em Live at Winterland ’68, lançado em 1998, porém com um overdub em relação ao solo inicial.
Um tema marcado de guitarra e bateria, e alguns segundos de expectativa, dão espaço para a a insana sequência de notas da guitarra de Gurley, começando um sensacional blues, de arrancar os cabelos tamanha a dramaticidade exalada pelos timbres tenebrosos da Gibson SG de Gurley. O curto solo inicial irá competir com a interpretação vocal de Janis, que surge logo após, cantando baixo, e com um quase inaudível andamento de bateria, baixo e guitarra. Lentamente, Janis vai dando corpo para a canção, aumentando a densa cama sonora junto com os acordes da guitarra, para entoar o famoso refrão “And I say, oh, whoa, whoa, now how Tell me why Why does every single little tiny thing I hold on to go wrong?”, onde as marcações de bateria, baixo e guitarra acompanham os “whoa-whoa” de Janis, que capricha no sentimento.
A primeira estrofe é concluída, voltando então para a repetição da letra, e aqui começa o show particular de Janis. Se em “Summertime” temos uma interpretação vocal absurdamente superior a tudo o que você já ouviu na vida, em “Ball and Chain” a casa cai. Janis bota no chão todas (eu digo todas mesmo) as cantoras de rock, jazz, blues, …, qualquer estilo, como que se sozinha em sua casa, agonizasse os últimos minutos de sua vida, defendendo-se através de um canto. O que a mulher faz não da para descrever em nenhuma palavra.
Baixinho, ela sussurra a letra da canção, junto do leve acompanhamento do quarteto instrumental, chegando no refrão, e sai de baixo. Os “Tell me, tell me” sofridos, seguidos de gritos roucos, agudos, botando o útero para fora, são capazes de fazer uma pedra chorar. É ouvir e gozar de um dos momentos mais sublimes da música popular mundial. Mais gritos levam ao rasgadíssimo solo de Gurley. A inspiração do homem também é sobrenatural. Os longos bends, com a ajuda de uma distorção suja, completam essa obra de arte, voltando então para o refrão, com Janis fazendo aquilo que ela dizia ser “sexo com mil pessoas ao mesmo tempo”, cantando muito, soltando palavras soltas e muito alucinada.
O ritmo diminui para Janis mais uma vez repetir a letra, agora com o volume muito baixo (outra demonstração da evolução técnica do grupo), partindo para o crescendo final, que explode no refrão mais uma vez. Ouvir “this can’t be”, e os “no no no”, fora todos os gritos extraídos sabe lá Deus da onde, deixam o ouvinte arrepiado por dias, e finalmente, o longo grito final de Janis a deixa à capella, em um show só seu, diante de um público que aplaude e ovaciona encantado com a ainda jovem garota, e é possível ouvir a emoção de Janis, chorando ao microfone, quando fala as duas últimas palavras, que são o nome da canção, com o público inteiro aplaudindo muito o que acabou de presenciar. Depois disto tudo, ouvimos uma pequena vinheta, que era a responsável pelo encerramento das apresentações em Winterland.
O relançamento em CD na caixa Box of Pearls veio com mais quatro canções bônus: “Roadblock”, “Flower in the Sun”, “Catch Me Daddy” e “Magic of Love”, as duas últimas gravadas ao vivo no The Grande Ballroom (02/03/1968).
A capa original, assim como o nome, também foi modificada. Pensada primeiramente como uma foto dos membros do grupo totalmente nús em um quarto de hotel, as imagens não agradaram a nenhum dos membros. Então, surgiu a pessoa de R. Crumb, que criou uma das capas mais famosas do rock. A ilustração final, planejada como sendo a contra-capa, acabou virando a capa verdadeira, trazendo diversas caricaturas dos membros do grupo, refletindo momentos da banda fora dos palcos e também no palco, além de citar o nome de todas as canções de alguma forma.
O disco alcançou a oitava posição nas paradas da Billboard dois meses depois de seu lançamento, chegando ao número 1 por oito vezes, mas não consecutivas. O single de “Piece of My Heart” se tornou o mais vendido daquele ano de 1968, e não demorou muito para atingir a surpreendente marca de um milhão de cópias vendidas, conquistando disco de ouro.
Oito canções acabaram ficando de fora do LP, as quais são: “Catch Me Daddy”, “Farewell Song”, “Magic of Love”, “Amazing Grace”, “Hi-Heel Sneakers”, “Harry” (todas lançadas posteriormente no álbum Farewell Song, de 1982), “It’s a Deal” e “Easy Once You Know How”, essas duas lançadas posteriormente na caixa Box of Pearls. Das gravações originais ao vivo, “Down on Me” e “Piece of My Heart” foram lançadas posteriormente em Janis In Concert (1972).
O enorme sucesso de Cheap Thrills fez aumentar os holofotes sobre a figura de Janis Joplin, que no final do verão de 1968, após o grupo se apresentar no Palace of Fine Arts Festival, em San Francisco, anunciou aos demais colegas de grupo que iria sair no final do outono daquele ano, desejando seguir uma carreira solo mais voltada para a soul music.
Em novembro daquele ano, saiu o compacto “Coo Coo” / “The Last Time”, o qual era sobra de estúdio de Big Brother & The Holding Company, e no primeiro dia de dezembro, Janis e Sam Andrew fizeram o último show com o grupo, tocando no Family Dog Benefit, em San Francisco. 20 dias depois, Janis aparecia com a sensacional Kosmic Blues Band, tendo nas guitarras Sam Andrew, e mais poderosíssimo suporte de um fabuloso naipe de metais e vários músicos convidados.
A saída de Janis e Andrew abalou as estruturas do Big Brother & The Holding Company, que chegou a encerrar as atividas, com Getz e Albin passando a integrar outro grande expoente do rock psicodélico californiano, o Country Joe and The Fish, gravando o álbum Here We Go Again (1969) e participando da turnê de divulgação do mesmo.
Porém, a vontade de ter identidade própria era maior do que as loucuras de Joe McDonald e cia, e então, Getz e Albin decidiram retomar com o Big Brother & The Holding Company, ao mesmo tempo que Janis se consagrava (mais uma vez) com o fundamental I Got Dem ‘Ol Kosmic Blues, Again Mama (1969). Mas isso é papo para outra data especial.
Track list
- Combination of the Two
- I Need A Man To Love
- Summertime
- Piece of My Heart
- Turtle Blues
- Oh! Sweet Mary
- Ball and Chain
A Columbia fez Janis sair do Big Brother & The Holding Co. porque a banda era “pouco profissional”. Se for comparar com a Kozmic Blues, realmente os caras não eram o bicho, mas a energia crua deles combinava muito com Janis, e acho que ela nunca mais rendeu tão bem em estúdio quanto neste disco. Só não gosto muito dos backing vocals, acho que nenhum deles era bom o suficiente para acompanhar a grande Janis. Deste disco, “Ball and Chain” é o destaque absoluto, mas cada música realmente vale por si só. Bela recuperação, fez com que eu fosse atrás do disco, que fazia tempo que não ouvia. Pena que não tem uma Legacy Edition como do “Pearl” ou a Woodstock Experience do “I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama!”.
Eu acho que a performance dela no I Got Dem é maior que aqui Marcello. Parece que ela está mais “profissional” (tipo a Elis quando sai das garras do Nelson Motta para ter o amparo do Cesar Mariano). Mas claro, a crueza de James Getz e James Gurley é muito mais combinada de dois (para citar a música) do que a contrastante parede sonora que veio da Kozmic Blues. E quanto a uma “Legacy Edition”, acho que ela é o próprio Farewell Song, ehehhee. O Box of Pearls traz “Roadblock” e “Flower In The Sun” em estúdio, além de “Catch Me Daddy” e “Magic Of Love” ao vivo, mas realmente, é pouco para cobrir esse período tão vasto da BBATHC. Ainda bem que saíram vários outros lançamentos de shows desta época para nós mortais apreciarmos. Abração