Datas Especiais: 50 Anos de Todos os Olhos
Por Mairon Machado
Recentemente aqui no Consultoria do Rock, trouxe a arte de Todos os Olhos como um dos episódios da nossa série Capas Legais. Hoje, venho trazer um pouco mais da históra deste incrível disco. Um dos compositores mais malucos que o nosso Brasil pariu sem sombra de dúvidas é o baiano Antonio José Santana Martins, mais conhecido como Tom Zé. Filho de uma família pobre, que tornou-se rica da noite para o dia após ganharem na loteria, o músico marcou presença na origem do tropicalismo, sendo uma das referências para Caetano Veloso e Gilberto Gil, além de um braço direito nos arranjos e ideias do maestro Rogério Duprat e da formação musical de Gal Costa.
Tom foi um dos idealizadores, na Bahia, do projeto Nós, Por Exemplo n° 2, que revelou Caetano, Gil, Gal e Maria Bethânia com apresentações no famoso Teatro Castro Alves, em Salvador. O projeto fez tanto sucesso que levou-os anos depois para São Paulo, onde encenam Arena Canta Bahia, conhecem Os Mutantes e gravam o aclamado e cultuado Tropicália ou Panis et Circensis, em 1968, mesmo ano em que Tom recebe o primeiro prêmio no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record com “São Paulo, Meu Amor”.
1968 foi O Ano da carreira de Tom Zé. Além de Tropicália ou Panis Et Circensis, e da premiação na TV Record, ocorreu também o lançamento de Grande Liquidação, para muitos, o melhor disco da carreira do baiano, e que foi lançado pelo emblemático selo Rozemblit.
Tão emblemático quanto as histórias da Rozemblit é o quarto disco de Tom Zé, batizado de Todos Os Olhos. Depois de afastar-se dos amigos tropicalistas por questões de divergência cultural, Tom apareceu ligado ao selo Continental em 1972, com o álbum Tom Zé, conhecido posteriormente como Se O Caso É Chorar. A mistura irreverente de estilos chamou a atenção do grande público, que no ano seguinte, chocou-se com Todos Os Olhos.
O ritmo arrastado da curta “Complexo de Épico” nos apresenta um pseudo-samba tropicalista, com uma letra irônica: “Todo compositor brasileiro é um complexado, … ah meu Deus do céu vá ser sério assim no inferno”, saindo em uma viola caipira que faz as notas iniciais de “A Noite do Meu Bem”, uma soturna composição com Tom Zé acompanhado apenas por longos acordes de órgão e as notas de viola como que imitando o som de berimbau, em uma das canções mais obscuras e assustadoras da carreira do músico.
“Cademar” é o representante psicodélico-sertanejo, com notas marcadas, imitando um relógio, e Tom Zé cantando o nome da canção de forma gaguejada em pouco menos de 40 segundos, chegando na faixa-título, mais uma deliciosa ironia advinda da mente do baiano, em um ritmo swingado e um refrão encantador, com diversas vocalizações cantando “Mas eu sou inocente” e “Mas eu não sei de nada” entre outras frases que encerram a canção, que trata da visão de Jesus sobre seus fieis seguidores, querendo descansar no céu, ao invés de atender aos mesmos na Terra.
A engraçada “Dodô e Zezé” é uma brincadeira sertaneja entre Odair Cabeça de Poeta (Dodô) e Tom Zé (Zezé), na qual Dodô faz uma série de perguntas para Zezé responder de forma extremamente irônica, chegando inclusive a Zezé simular que não entende o que está sendo perguntado, e ironizar a si mesmo. Essa canção canta com a participação de Rogério Duprat no cavaquinho, e, conforme indicado no encarte, tocando apenas os acordes G7 e C. O lado A encerra-se com “Quando Eu Era Sem Ninguém”, uma canção alegre, no ritmo nordestino que lembra bastante algumas canções de Novos Baianos. Destaque para a voz de Tom Zé, melodiosa e simples. A participação do grupo Capote, responsável pela parte instrumental do álbum, fica evidente nessa canção.
O lado B começa com uma homenagem para “Brigitte Bardot”, um samba-choro, no estilo João Gilberto, lamentando o envelhecimento da atriz, destruindo sonhos de rapazes e homens que a admiraram quando a mesma era bonita, e com uma ironia enorme em toda a letra. “Augusta, Angélica e Consolação” é outro fantástico samba-rock a la Novos Baianos, com talvez a letra mais engraçada da carreira de Tom Zé. A forma como ele lamenta o que seria uma separação das esposas, Augusta e Angélica, e as vocalizações dando a dramaticidade necessária para os lamentos de Tom Zé, certamente irão dar boas risadas com uma letra sensacional. Porém, na verdade a canção é uma homenagem caprichosa a Adoniran Barbosa, mestre do samba paulistano, indicando três avenidas famosas do centro de São Paulo, e tornando-as mulheres com personalidades distintas.
“Botaram Tanta Fumaça” retorna aos ritmos nordestinos, misturando samba e baião, e mandando ver na população brasileira, com a clássica frase: “Tá, tá, tá com a consciência podre”, enquanto “O Riso e a Faca” acalma os ânimos, levada pela viola e por um bonito arranjo de cordas. A curta “Um ‘Oh’ e um ‘Ah’” é um divertido jogo de palavras sobre as vogais que aparecem no nome da canção, além de vocalizações, retornando para uma versão estendida de sete minutos para “Complexo de Épico”, repetindo a letra da canção que abre o álbum e ampliando-a para mais críticas aos compositores brasileiros, deixando a pergunta na mente do ouvinte: “Por que todo compositor brasileiro é um complexado?”.
Com a repressão política da ditadura militar em nosso país, o músico superou barreiras, e ainda, enganou os militares com um disco ousado, criticando a tudo e a todos com uma rispidez áspera. Para complementar, uma capa ainda mais ousada que as irônicas e geniais canções que abrilhantam o LP. A arte foi feita pelo artista Chico Andrade, e foi considerada pela revista Folha de São Paulo como a segunda melhor capa de álbum do século XX, além de fazer parte de uma exposição com as cinquenta melhores capas de todos os tempos, realizada em 2011.
Tom Zé já tinha o nome do álbum quando procurou Décio Pignatari, pedindo por uma capa provocante, mas que ao mesmo tempo enganasse a censura. Décio era sócio de Chico, que logo teve a ideia do famoso “olho do cú”. Então, pensou em colocar uma bola de gude no cú de uma pessoa, ampliar a imagem e tornar irreconhecível o entorno da região.
Envolvendo a participação de diversas pessoas, dentre elas Silvio Vasconcellos (fotografia), Marcos Pedro (edição) e Marco Antonio Rezende (redator), Chico encaminhou o projeto para aprovação de Tom Zé. É nesse momento que surge a pessoa principal da imagem, a dona do “olho”. O nome perdeu-se no tempo, mas segundo o próprio Chico Andrade, em conversas realizadas comigo há alguns anos, a moça era uma garota de programa, que fazia ponto próximo ao Jockey Clube de São Paulo.
A ideia então foi aprovada, e ao mesmo tempo que a prostituta do Jockey era fotografada, Reinaldo Moraes, um fotógrafo profissional, fazia a mesma imagem com outra mulher, que acabou entrando na versão final, e ele acabou levando a fama pela capa, apesar da ideia original ser de Chico.
Voltando ao álbum, cinquenta anos de um disco genial, que ainda está para ser descoberto pelos brasileiros e pelo mundo!
Track list
1. Complexo de Épico
2. A Noite do Meu Bem
3. Cademar
4. Todos os Olhos
5. Dodô e Zezé
6. Quando Eu Era Sem Ninguém
7. Brigitte Bardot
8. Augusta, Angélica e Consolação
9. Botaram Tanta Fumaça
10. O Riso e a Faca
11. Um “Oh” e um “Ah”
12. Complexo de Épico
* As imagens originais da capa de Todos Os Olhos foram gentilmente cedidas pelo proprietário, Chico Andrade