Datas Especiais: 50 anos da apresentação do Secos & Molhados no Maracanãzinho
Por Micael Machado
Ontem, há exatos cinquenta anos, 10 de fevereiro de 1974, uma banda nacional se apresentava pela primeira vez como uma atração “solo” (sem o suporte de outras atrações ou de artistas convidados para “ajudar” a “chamar” ao público) no Ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Até então mais utilizado, em termos musicais, para finais de festivais (com diversas atrações diferentes ao longo das noites, e, por vezes, nomes internacionais para atrair mais atenção), uma apresentação única de apenas um artista no local parecia, para a época, algo muito ousado, e, sem dúvidas, um tanto arriscado, tanto financeiramente quanto artisticamente. Financeiramente, a dúvida era: conseguiria uma única atração levar pelo menos trinta mil pessoas para o estádio, capacidade estimada então para o local, e, assim, lotar o mesmo (algo inédito até então para os artistas brasileiros)? Já do lado artístico, a dúvida era em como conseguir, com as condições tecnológicas da época, “entregar” um espetáculo visual e auditivo compatível com as dimensões exageradas da edificação, fazendo com que o público pudesse ver e ouvir à apresentação com, pelo menos, um mínimo de qualidade?
Pois foram estes desafios que o Secos & Molhados, incentivados por seu empresário da época, o jornalista e produtor musical Moracy do Val, toparam enfrentar naquele começo de ano. Este artigo não pretende relatar fielmente o que ocorreu naquela noite (até porque registros em vídeo da apresentação são raros de encontrar, e este escriba sequer tinha nascido na data em que tudo ocorreu), mas sim marcar esta data histórica para a música nacional, afinal, foi a partir deste show que os ginásios de esportes ao longo do país começaram a ser verdadeiramente considerados como “viáveis” para shows individuais de artistas nacionais, e, se hoje temos apresentações de artistas consagrados (tanto nacionais quanto internacionais) em estádio de futebol ou em palcos gigantes como o dos mega festivais, tenho convicção de que muito se deve ao que ocorreu naquela noite e naquele local cinquenta anos atrás.
Segundo o livro Primavera nos Dentes, do escritor Miguel de Almeida, foi Moracy quem deu a ideia da apresentação do grupo no Maracanãzinho. Até então, fazia pouco mais de seis meses que o disco de estreia da banda havia sido lançado no mercado, e já estava “estourado” em todo o país, com o álbum vendendo mais de um milhão de cópias em pouco tempo, “batendo todos os recordes de vendagens de discos e público”, segundo a Wikipedia. O sucesso do disco se refletiu nos shows, cujo número de presentes nas apresentações vinha aumentando gradativamente, saindo das iniciais 50 ou cem pessoas nos shows do começo de carreira para números que ultrapassavam os seis mil pagantes em lugares como Brasília, Recife, Salvador e outras do interior do estado de São Paulo. Foi a presença do grupo nos ginásios esportivos destes municípios (únicos locais com capacidade para suportar a quantidade de gente que queria ver a banda ao vivo na época) que convenceu Moracy de que seria possível lotar o Maracanãzinho apenas com o público do Secos & Molhados, sem precisar de outras atrações. Com a aceitação dos demais membros do grupo (a saber, Ney Matogrosso na voz, João Ricardo na voz, violões e harmônica, e Gérson Conrad na voz e no violões), começou então a empreitada para fazer a coisa “acontecer” de verdade.
João Ricardo e Moracy do Val se reuniram com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então diretor geral da Rede Globo, já à época a emissora mais poderosa do país, e que, meses antes, havia sido peça importante da história da banda ao impulsionar seu nome para todo o Brasil através da exibição dos clipes de “Sangue Latino” e “O Vira” no programa “Fantástico”, em uma marcante noite de domingo de setembro de 1973. Boni duvidou do sucesso da empreitada proposta pelos dois, mas aceitou promover o show em troca da gravação do espetáculo, que, aparentemente, chegou sim a ser filmado, mesmo que poucos registros (ainda com imagens em preto e branco) tenham sobrevivido até hoje, e que eu não tenha conseguido nenhuma evidência de que algum especial tenha sido exibido à época (ou depois) pela Rede Globo. O áudio da apresentação existe, mas falaremos dele mais adiante.
Outro obstáculo para a realização do show foi o medo dos bombeiros cariocas com relação à segurança e integridade do público. A preocupação da corporação exigiu, segundo o já citado livro Primavera nos Dentes, maiores distâncias do que o inicialmente previsto separando palco e plateia, maiores divisões nas arquibancadas, novas posições para grades de proteção, e a criação de mais saídas de emergência. Com tudo isso, a capacidade do local foi reduzida para vinte mil pessoas, ainda assim, um número imenso de presentes perto do que reuniam os shows dos artistas nacionais na época. Todos os ingressos foram vendidos, e estima-se que milhares de não-pagantes ficaram do lado de fora do ginásio (na wikipedia, há a citação de que 90 mil pessoas teriam ficado nas cercanias do local, número que me parece exagerado, mas que não duvido ter sido possível).
Mesmo com a qualidade do som não sendo lá “essas coisas”, o Secos & Molhados, composto então, ao que consegui averiguar, além dos três membros principais, por Emilio Carrera no piano e no órgão, John Flavin na guitarra, Marcelo Frias na bateria e percussão, Sergio Rosadas na flauta e Willy Verdaguer no baixo, subiu ao palco pouco depois das nove horas da noite, e, também segundo o citado livro, fez uma apresentação de pouco mais de uma hora, com duas músicas no bis: “Mulher Barriguda” e “Sangue Latino”. No início do espetáculo, houve um momento de tensão, quando as pessoas tentaram se aproximar do palco, mas foram contidos por um cordão policial, que começou a empurrar o pessoal de volta para as arquibancadas. Incomodado com a situação, Ney parou de cantar, sendo imediatamente seguido pela banda, que ficou em silêncio até os policiais “aliviarem” e permitirem uma maior liberdade de movimentação do público pelo local, que pôde então se aproximar mais de seus ídolos no palco.
Mesmo com tantos problemas de organização e execução, o show foi considerado um sucesso, sendo até então o recorde absoluto de público para um grupo nacional no país. Seis anos depois, já com o trio principal afastado, a gravadora Continental lançou um registro em vinil com pouco mais de meia hora de áudios gravados naquela noite. Por anos ouvi que este seria “extremamente mal gravado”, “sem boa definição sonora”, e um registro “apenas para colecionadores”. Como o vinil original se tornou uma raridade muito buscada pelos apreciadores dos bolachões (que, para o terem em suas coleções, sempre tiveram de estar dispostos a investir pequenas fortunas na aquisição de uma cópia do mesmo), nunca cheguei a ouvir a edição original (pelo menos, não que me lembre), mas uma reedição do ano passado feita pela Polysom me permitiu adquirir uma cópia do mesmo, e perceber que, pelo menos neste relançamento, o áudio não é tão “desgracento” assim como a lenda dizia (tenho bootlegs de bandas bem maiores gravados em condições muito piores), servindo, ao menos, para que se possa ter uma ideia da sonoridade da banda naquela noite. As nove canções presentes no registro são apenas um aperitivo para os fãs do grupo, mas não são de forma alguma “desprezíveis”, como muitas vezes vi as pessoas se referirem a este álbum (a própria Polysom colocou no encarte da reedição que o registro “apresenta algumas imperfeições técnicas”, mas que “o valor documental e a raridade desta obra justificam esse relançamento”). Minha maior reclamação é a “mutilação” efetuada na faixa final, “O Vira” (da qual apenas uma pequena parte aparece no vinil), e a ausência da versão em espanhol para “Sangue Latino”, presente em um vídeo de oito minutos facilmente encontrável no youtube quando escrevo este texto.
É na contracapa deste disco de 1980 que um texto de Gérson Conrad coloca que a noite teve “tantos detalhes, como gente que gritava emocionada, que chorava, que desmaiava, que agredia, que atirava flores, que xingava… tudo isso era tão forte e mágico que, quando saímos de cena, não acreditávamos ter conseguido”. Pois conseguiram, e realizaram algo tão marcante que, como escrevi antes, mudaria para sempre o cenário musical do país, e possibilitaria que os espetáculos artísticos no Brasil viessem a nos proporcionar emoções múltiplas e variadas nos cinquenta anos que se passaram desde aquela noite, no mínimo, histórica, passada em um Maracanãzinho lotado!
Secos & Molhados representam um fenômeno que (ainda) merece mais textos, documentários, livros e postagens como esta, parabéns pela referência! Somos tão atentos e cuidadosos com inúmeras bandas internacionais que foram, igualmente, fenômenos de um ou dois discos, efêmeros e radiantes como o nosso grupo mágico, que me pergunto se não merecíamos mais atenção com Ney Matogrosso, Gerson Conrad e o mentor João Ricardo.
Obrigado pelas palavras, Marcelo. Concordo plenamente com você, Secos e Molhados é um grupo que ainda merece muito mais “estudos” e atenção do que já recebeu. Muita coisa de sua história ainda merece ser melhor explorada, assim como outras bandas nacionais daquela década! Quem sabe ainda se faça este resgate um dia, não é mesmo?
Que os deuses da música te ouçam!
Quando o Freddie Mercury morreu, comentei com um amigo fanático pelo Queen que o Ney Matogrosso era o único cara capaz de cantar as músicas da banda à altura do Freddie. Ele não acreditou até ouvir os discos do Secos & Molhados e foi obrigado a concordar… Até hoje mantenho essa opinião! Ney não teria condições de substituir Freddie como compositor, mas como cantor ele é o único que chegaria aos pés do mestre.
Penso que os estilos são muito diferentes, mas não conheço tanto assim a carreira do Ney pós-Secos &Molhados para opinar com propriedade! De todo modo, eu assisti ao Queen+Adam Lambert quando vieram ao Brasil, tenho aquele disco ao vivo que eles lançaram, e o sujeito não faz feio não, viu? Inclusive, no quesito “diva”, é muito mais “espalhafatoso” que o saudoso “El Bigodón”! O Queen com Paul Rogers é que confesso achar estranho até hoje, mas, como todo mundo ali é “lenda viva” do rock, melhor não criticar muito, não…