Discografias Comentadas: My Chemical Romance
Hoje trazemos a primeira matéria publicada por Luiz Carlos Freitas (Publicada originalmente em 23 de junho de 2013)
O cenário do rock por vezes se mostra uma grande contradição de si mesmo. Ao estilo, herdeiro do canto de dor dos escravos nas plantações de algodão americanas no início do século passado, coube nascer e “amadurecer” por muito tempo relegado ao caráter marginal. De suas mais variadas vertentes, separadas cronológica e ideológicamente, do “Flower Power” da Psicodelia e da libertação sexual do Glam Rock, ao imediatismo anárquico do Punk, das blasfêmias do Black Metal ou apenas da necessidade de diversão pura e simples do Hard Rock “farofa” oitentista, há um grande ponto comum que é a representação de grupos excluídos. Eles precisavam ser ouvidos e faziam da música a sua voz para transformar a sociedade. Esse é o conceito do Rock desde a sua gênese e, por mais que a arte venha seguindo caminhos cada vez mais mercantilistas, sua essência se mantém.
Todavia, constantemente presenciamos inversões desse conceito, quando oprimidos viram, injustificadamente, opressores. Há uma inexplicável “rivalidade” entre [sub]gêneros, permeada por críticas e ataques que depreciam artistas que, muitas vezes, abordam os mesmos temas apenas de formas diferentes. E, não, isso não é algo novo. Em alguns casos, fala-se de ideologia, como o Black Metal e suas “regras” para ser um “TRUE” (sic) representante do estilo. Noutros, aborda-se técnica (a exemplo das inúmeras tretas entre representantes do Thrash Metal e do Rock Progressivo). Contudo, o que acaba pesando mais como argumento em boa parte dos casos, é o direcionamento comercial que determinado estilo emprega.
O foco no mercado, visto por muitos como um verdadeiro demônio (o que, convenhamos, não faz o menor sentido), é argumento padrão para muitos puristas que procuram reduzir a importância de determinado grupo ou estilo. Muito sofreram com isso, por exemplo, os grupos de Glam/Hair Metal, recebendo a alcunha (utilizada acima) de “rock farofa”. Tudo bem, nessa fase, boa parte do direcionamento musical era determinado pelas gravadoras, muitas vezes exaltando o visual em detrimento à própria música. Entretanto, esse preconceito cria barreiras que apelam a uma generalização preguiçosa, impedindo que se busque conhecer e, filtrando, separar grupos e artistas extremamente relevantes ao cenário musical como um todo.
Um ótimo exemplo dessa carnificina é o Bon Jovi, grupo constituído por músicos virtuosos (muitas bandas aclamadas pela crítica dariam tudo por um Ritchie Sambora), que conseguiu aliar excelentes composições com aceitação ímpar de mercado, fazendo um som comercial e, ao mesmo tempo, se permitindo ser autêntico e, em alguns momentos, até mesmo intimista, e que é largamente tomando como referência de “farofa de baixo nível”. Se há um infeliz fato nisso tudo, é que grande parte dos detratores não chegou a sequer ouvir além das músicas mais conhecidas e, mesmo gostando, se esconde sob o véu do “eu gosto, mas tenho vergonha de admitir” sem mesmo procurar ver alguma lógica nessa vergonha de admitir que gosta (se gosta, deve ter um motivo, não?).
Trazendo, agora, a questão para um cenário atual, dentre os vários exemplos que podem ser citados, talvez o My Chemical Romance seja um dos que tenham mais evidência. O grupo, formado de 2001 pelo vocalista Gerard Way, é dos maiores expoentes do chamado “Emocore”, uma variante do Hardcore Punk, caracterizada pela expressividade de sentimentos contida nas composições e na interpretação por parte dos músicos, em especial o “vocal de choro” (como alguns costumam chamar). Os grupos integrantes do estilo, em geral, são ridicularizados por abordarem temáticas ditas excessivamente sentimentalóides, como as angústias e lamúrias adolescentes, tendo isso reforçado justamente pelo grande sucesso comercial que faz por conta de ter um público de alcance, em sua predominância, extremamente jovem.
Isso, reforçado pelo estigma do “produto comercial”, afasta muitos antes mesmo de uma primeira audição (ou de uma atenção mais profunda além das músicas mais populares). Segue abaixo uma análise da curta discografia da banda que, recentemente, anunciou o encerramento de suas atividades, deixando apenas quatro discos que, ao todo, compõem uma ótima, elaborada e subestimada experiência musical.
I Brought You My Bullets You Brought Me Your Love [2002]
Lançado cerca de um ano após a fundação do grupo, o primeiro trabalho (chamado pelos fãs apenas de “Bullets”) é um álbum conceitual, marcante por mostrar uma linha de composição que seguiria nos trabalhos seguintes, onde cada disco conta uma história que se complementa com a anterior. Nas onze faixas, conhecemos os “Amantes Demolidores”, um casal de criminosos, bem como a trilha de crimes deixada por eles e seus conflitos internos, culminando em um fim trágico. A estória inicia com “Romance”, uma breve faixa com arranjos retirados de uma antiga canção espanhola chamada “Romance de Amor”, dando um aspecto que remete a trilhas ambientais de filmes antigos, criando uma atmosfera serena e, ao mesmo tempo, sombria nesse prelúdio que é cortado abruptamente pelos riffs de “Honey, This Mirror Isn’t Big Enough For The Two Of Us” e a seguinte “Vampires Will Never Hurt You”, as canções apresentação dos conflituosos personagens principais. Indo em frente, talvez “Our Lady of Sorrows” seja, em termos de sonoridade, a que mais sintetize a proposta do disco, apresentando uma bizarra e oportuna combinação de Metal e Punk, com a bateria rápida de Hardcore e o vocal “gritado” de Way embalado pelo som pesado das guitarras. O disco, aliás, é o mais pesado do grupo. Quanto às composições, é notável o empenho de Way em construir uma narrativa coesa e ampla, não só com a trama contada, mas também com o contexto em que se inserem. “Skylines And Turnstiles”, por exemplo, abordam os atentados de 11 de Setembro nos EUA, presenciados por Way que, à ocasião, era cartunista em Nova York. Segundo o mesmo declarou posteriormente, o episódio contribuiu para a elaboração do clima sombrio que o mesmo tentou imprimir à obra. O disco encerra com “Demolition Lovers“, um resumo do trajeto dos dois amantes que, separados, tentam suicidar-se, mas antes morrem num tiroteio em pleno deserto. Ao abordar a trajetória dos dois e versar sobre um amor capaz de vencer a própria, deixa um gancho ao disco seguinte, Three Cheers of Sweet Revenge, um álbum também conceitual que conta a trajetória do rapaz que recebeu uma chance de voltar do purgatório para uma missão na Terra em troca de poder reviver sua amada.
Three Cheers for Sweet Revenge [2004]
Apesar do primeiro trabalho do grupo ter obtido certo êxito, foi com Three Cheers for Sweet Revenge que conseguiram maior visibilidade. Apesar de não abordar uma trama contínua, como o anterior I Brought You My Bullets You Brought Me Your Love, possui em suas letras a temática comum à perda em suas diversas formas, como morte, abandono familiar, fim de relacionamentos e até abuso de drogas. Há quem diga que foram experiências pessoais de Way que inspiraram cada composição, como “The Jetset Life Is Gonna Kill You” (especula-se que ele estava tendo problemas graves com cocaína e álcool já àquela altura da carreira), apesar do mesmo só ter reconhecido que “Helena” (a canção de maior sucesso do grupo) fora escrita para sua falecida avó Elena, além da referência ao cantor Morrissey num trecho de “Thank You for the Venom” (“Sister, I’m not much a poet, but a criminal” – no caso, remetendo à canção “Sister, I’m a Poet” do cantor inglês). Sonoramente, assemelha-se muito aoBullets, apesar do ritmo mais cadenciado em canções como “The Ghost of You“, e de alguns experimentalismos, como a introdução de “Hang ‘Em High”. Apesar de ainda manter o peso em alguns riffs (“Thank You for the Venom” e “It’s Not a Fashion Statement, It’s a Deathwish“), já não soa mais tão Metal quanto seu antecessor. Essa similaridade, talvez, pode ser vista como proposital, uma vez que a faixa que encerra o álbum, “I Never Told You What I Do For a Living”, finda também o ciclo aberto em “Demolition Lovers”, do disco anterior, mostrando como os amantes finalmente morreram e, depois, vingaram seus algozes (ao fim da estória, descobrimos que ele teria de voltar à Terra para matar “mil homens maus” para que a alma dela pudesse ter paz). A partir do disco seguinte, tanto o conceito da trama como o som do grupo mudaria.
The Black Parade [2006]
Lançado dois anos após seu antecessor,The Black Parade foi o maior êxito comercial do My Chemical Romance, tendo vendido (até agora) aproximadamente 6 milhões de cópias, além de ter emplacado os topos das principais paradas musicais pelo mundo. Além disso, é comumente tido como o melhor trabalho do grupo. À parte de números e críticas, é, certamente, o disco mais bem trabalhado em todos os aspectos, das composições à musicalidade em si. Mais uma vez, Way cria uma peça conceitual, dessa vez assumidamente baseada em experiências pessoais. A trama gira em torno do “Paciente”, um personagem sem nome que sofre com um câncer terminal. Novamente, temos questões como a dor da perda, abandono, conflito de gerações e a angústia da proximidade da morte, só que vistas, agora, pelo prisma das recordações. O título do álbum, segundo Way, remete a uma experiência marcante da relação com seu pai, quando ele o levou, ainda bem jovem, para ver um desfile de banda marcial. Ele acredita que a morte se manifesta como sendo a lembrança mais forte e marcante de alguém e, portanto, esse fato serviu como inspiração para o título. Musicalmente, é, como dito acima, o mais elaborado. Sai a mistura Punk e Metal e entra um ar mais Hard Rock (vide “House of Wolves“) e New Metal, ainda com guitarras pesadas, mas sem a velocidade e com alguns solos (como na balada “I Don’t Love You“). O mesmo para as baterias que, com menos velocidade, pouco soam Hardcore como nos anteriores. Há espaço até para uma música onde o vocal de Way é acompanhado apenas pelo piano (“Cancer”). Inclusive, a performance vocal de Gerard se mostra mais contida, com bem menos gritos, sem perder, entretanto, seu timbre melódico (aqui, ainda mais forte). O disco possui um tom operístico desde a sua introdução com “The End” e o soar de aparelhos de UTI, violinos e uma série de arranjos elaborados culminando na pegada Punk de “Dead!”. A faixa título, “Welcome to the Black Parade“, é talvez a melhor música da carreira do grupo, onde, tanto nas letras quanto na orquestra da guitarra, percebe-se a tentativa de montar uma ópera rock. Way declarou que inspirou-se em A Night at the Opera, do Queen, sendo esta a homenagem mais próxima que ele poderia vir a fazer de “Bohemian Rhapsody”. Possui uma faixa ocultada no encarte e no verso do disco, chamada “Blood”. Em “Mama” (música com forte influência Glam), há participação de Liza Minelli). Dentre as edições especiais, há uma tiragem limitada de 2.500 cópias em vinil, que acompanhava um pequeno livreto com curiosidades sobre a produção e algumas análises sobre cada música.
Danger Days: The True Lives of the Fabulous Killjoys [2010]
Aqui, os temas existencialistas tratados de forma sombria e até pesada nos discos anteriores dá lugar a uma nova narrativa conceitual, agora, com uma mensagem ambiental. Versando sobre os quatro “Killjoys”, figuras de uma mitologia particularmente criada para o disco, representados cada um por um membro do grupo, sendo estes: Party Poison (Gerard Way), Jet Star (Ray Toro), Fun Ghoul (Frank Iero) e Kobra Kid (Mikey Way). Eles lutam contra uma corporação maligna chamada “Better Living Industries”, num futuro não muito distante (2019). Os quatro “guerreiros” têm como guia e guru espiritual um DJ de uma rádio pirata chamado de Dr. Death Defying. A sinopse é esta, mesmo. Apesar de ter sido de imediato aclamado por crítica e público, tendo vendido mais de 2 milhões de cópias em menos de três meses do seu lançamento (em alguns países, como o Brasil, chegou a passar semanas esgotado nas lojas tamanha demanda), é o trabalho que menos me agrada. As músicas continuam bem escritas, mas a temática mudou consideravelmente, o que causa certo estranhamento a quem esperava algo na linha dos trabalhos anteriores. A musicalidade, então, está ainda mais distante, com canções mais suaves, carregadas em efeitos de mixagem, e guitarras simplistas típicas do New Metal, chegando a soar até mesmo Pop e Techno, como em “Planetary (GO!)” e “The Only Hope For Me Is You“. Não há nada que lembre muito o clima sombrio de outrora e isso, apesar do estranhamento, não desagradou à maioria dos fãs. Talvez o intervalo maior de produção tenha influenciado (os anteriores foram lançados com menos de dois anos de intervalo, enquanto esse demorou quase cinco). Os singles de destaque são “Na Na Na (Na Na Na Na Na Na Na Na Na)” e a balada “Sing“, ambas bem interessantes e com ótimo desempenho nas paradas. Ademais, não há canções tão marcantes ou que tragam algo de novo.
Em março de 2013, o grupo, por meio de comunicado em seu site oficial, anunciou o encerramento de suas atividades. Não foi apresentada nenhuma justificativa para tal, apenas o pequeno texto que segue transcrito já traduzido abaixo:
“Estar nesta banda nos últimos 12 anos têm sido uma verdadeira benção. Pudemos ir a lugares que nunca pensaríamos ir. Nós fomos capazes de ver e experimentar coisas que nunca imaginávamos ser possíveis. Nós temos compartilhado o palco com pessoas que nós admiramos, pessoas que respeitamos, e acima de tudo, os nossos amigos. E agora, tal como todas as coisas grandes, chegou o tempo para acabar. Muito obrigado pelo apoio e por serem parte da aventura.
My Chemical Romance”
Apesar do fim prematuro (e que, espero, não seja definitivo), o grupo marcou sua breve existência com quatro ótimos discos que têm muito a apresentar além do que muitos dizem. Claro que ninguém tem a obrigação de gostar, mas devem, no mínimo, ouvir antes de qualquer julgamento baseado em preconceitos costumeiros.