Histórias que o Vinil Conta: O Rock e a Luta pela Independência da Groenlândia

Histórias que o Vinil Conta: O Rock e a Luta pela Independência da Groenlândia

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Por Marco Gaspari

Com 44 mil quilômetros de linha costeira e 2 milhões de quilômetros quadrados de área, a Groenlândia é a maior ilha do planeta. Sua população, porém, é escassa: 58 mil habitantes em 2008, dos quais 88% são inuites (o nome que se dá aos modernos esquimós) ou mestiços de inuites com dinamarqueses. O restante é de europeus, principalmente dinamarqueses. Qualquer cidadezinha do interior de São Paulo tem mais cidadãos do que toda a Groenlândia que, apesar de ser uma nação política e economicamente autônoma, faz parte do Reino da Dinamarca e seus habitantes são súditos da Rainha Margarida II.

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Mas nem sempre foi assim: a Groenlândia foi colônia da Dinamarca até quase 1980 e sua história colonial remonta ao século 18 com a chegada do pastor Hans Egede, que na verdade era norueguês, numa época em que a Noruega fazia parte do reino dinamarquês. Sua estrutura ocupacional sempre esteve baseada e dependente da pesca e da caça de focas e baleias, mas seguindo os passos do progresso da Dinamarca, a própria Goenlândia se desenvolveu rumo a uma sociedade industrial, graças à extração de seus ricos recursos naturais (carvão, zinco, chumbo, ouro, urânio e, mais recentemente, petróleo). E isso aconteceu tão rápido que a população nem teve tempo de absorver e se adaptar às mudanças. Problemas e sonhos contemporâneos se refletem na música que é feita hoje em dia na ilha gelada, cujas letras falam de um progresso que marginalizou o indivíduo.

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No início da década de 70 do século passado, no entanto, o cenário era outro. Desde que o antropólogo e explorador polar Knud Rasmussen, no início do século 20, atravessou a Groenlândia rumo ao Oceano Pacífico viajando de trenó puxado por cães, a cultura dos inuites viveu décadas de restrições. Foi-se o tempo em que Rasmussen ouviu dos esquimós suas histórias através de suas danças de tambor em frente aos seus iglus. Essa tradição quase que desapareceu nas décadas seguintes devidoàs proibições do Cristianismo e de seus missionários. Por meio de uma Constituição, a de 1953, a Dinamarca decidiu que a Groenlândia não seria mais uma colônia, mas uma “parte igual do reino”. Mas o Congresso local pouco agia, pois todas as decisões eram tomadas a milhares de quilômetros de distância, dentro das paredes do parlamento dinamarquês. Decidiu-se, por exemplo, que a língua groenlandesa não tinha valor e que poderia ser removida. Assim, todo o ensino passou a ser em dinamarquês e o uso da língua nativa sofreu grande desaceleração. Várias cidades também foram sendo forçadas a se extinguir, centralizando ainda mais a população em torno do poder de influência dinamarquês.

Pois em 1970, o groenlandês Malik Hoegh, então com 17 anos e estagiário técnico de um laboratório na pequena cidade de Slagelse, na Dinamarca, munido de sua guitarra, foi visitar um amigo na Academia de Soro. Lá conheceu Per Berthelsen, outro groenlandês, então com 20 anos e que também tinha sua guitarra. Daí a tocarem junto e se entrosarem foi um passo. Não demorou muito e essa dupla extraordinariamente musical começou a ganhar fama entre os alunos groenlandeses na Dinamarca. O líder estudantil Aqqaluk Lynge, futuro presidente do Inuit Circumpolar Council (ICC), tratou então de convidar os dois para tocar em eventos para os estudantes em Copenhagen.

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Berthelsen era mais extrovertido enquanto que Hoegh era do tipo fechado e essa foi a química imprevisível por trás da fórmula da banda Sumé (Onde?, em groenlandês), o primeiro grupo de rock a se expressar na língua nativa dos inuites e, ainda por cima, explorando um território improvável: o do rock progressivo. Completavam a banda Erik Hammeken no baixo e Hans Fleischer na bateria. Nas letras de Malik Hoegh, a Dinamarca estava longe de ser um dos países coloniais mais agradáveis do mundo. Muito pelo contrário, não havia nada para se festejar: as letras falavam de privação social, abuso de álcool, o capitalismo e o desrespeito às tradições dos povos indígenas. Desta vez, os caçadores silenciosos do Ártico deixaram seus arpões de lado e partiram para a revolução empunhando guitarras elétricas e amplificando seus gritos de guerra na potência máxima de suas caixas de som. Algo impensável e inédito naqueles 200 anos de colonização.

No começo de 1973 o Sumé lança seu primeiro disco: Sumut (Para Onde?), gravado em cinco dias em Copenhagen (três dias de estúdio e dois de mixagem) e lançado pelo selo independente Demos. Todo o clima dos sulcos era de protesto contra o colonizador dinamarquês da Ilha e serviu ao mesmo tempo para inaugurar um movimento de redescoberta da identidade e cultura inuites, já que todas as letras e as anotações da capa eram na língua esquimó-aleúte. Havia algumas traduções para o dinamarquês na capa, o suficiente para que se entendesse um pouco das intenções do disco, mas não muito. A capa, aliás, era provocação pura: a ilustração clássica de um caçador esquimó desmembrando um intruso dinamarquês. O som do Sumé nesse disco não é muito distante do rock que se fazia nos Estados Unidos ou na Dinamarca da época, porém os vocais no idioma nativo e a presença de violino, saxofone e flauta fazendo o contraponto com a bateria muitas vezes inspirada nas tradicionais danças de tambor dos groenlandeses, fez do som da banda um rock progressivo cativante e cheio de surpresas. O trabalho das guitarras também é um caso à parte: seus riffs elétricos e seus ganchos acústicos transformam o que deveriam ser sisudas canções de protesto em rock potente e contagiante.

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Capa do disco Sumut.

O lançamento de Sumut atingiu a Groenlândia como uma bomba cultural de infindáveis megatons. O som do Sumé e a habilidade de Malik Hoeghem colocar palavras no zeitgeist despertou o habitante da Ilha de seu sono subserviente. O desejo de ser senhor de seu próprio lar, de viver uma vida baseada em sua própria cultura, aflorou em cada um dos então quase 50 mil cidadãos groenlandeses. Tanto que o disco vendeu em tempo recorde 10 mil cópias na Ilha, o que significa que 20% da população comprou o disco, praticamente um exemplar em cada residência da Groenlândia. E o mais importante: Sumut inspirou os músicos locais a gravarem no próprio idioma e a somarem suas vozes no discurso de uma Groenlândia livre.

A manifestação na Praça Kultorvet.

Os músicos do Sumé, no entanto, não queriam que sua mensagem se restringisse apenas aos conterrâneos inuites. Com a ajuda de um jovem poeta dinamarquês, as letras foram traduzidas e isso foi fundamental para a próxima ação da banda, ocorrida em 5 de junho de 1973. Nesse dia um caminhão estacionou em plena Kultorvet, uma praça pública na Cidade Velha de Copenhagen e, ao seu redor, centenas de inuites se reuniram empunhando cartazes e faixas de protesto contra o colonialismo dinamarquês. Os quatro rapazes do Sumé subiram no caminhão e começaram a tocar suas músicas enquanto as letras traduzidas eram distribuídas para a as pessoas que se aglomeravam em volta desse manifesto. O som só era interrompido para dar a vez a jovens políticos e seus discursos fervorosos. E naquela noite, toda a Dinamarca pode assistir boquiaberta a cobertura do movimento passando no noticiário da TV, transformando o sonho de liberdade da Groenlândia em tema de conversa por todo o reino. O Sumé começava aí a escrever sua própria lenda, cuja trilha sonora não era a ladainha da música folclórica, mas sim o poderoso e eloquente rock’n’roll.

No ano seguinte, a banda lança seu segundo disco, Inuit Nunaat (Países Inuites), que foi tão bem sucedido quanto o primeiro, embora tenha uma sonoridade mais folk. Faz parte desse disco uma das músicas mais emblemáticas de Malik Hoegh e Per Berthelsen: “Qullissat, que mostra toda a revolta da banda com a extinção da cidade do mesmo nome a oeste da Groenlândia, construída em volta de uma mina de carvão que operou por 42 anos antes de seu colapso. A orgulhosa população de 1200 pessoas teve que abandonar seus lares e foi transportadas em barcos de transporte de tropas para Nuuk, a capital da Ilha, onde tristes construções de blocos de concreto a esperava.

Capa do disco Inuit Nunnat
Capa do disco Inuit Nunnat

A próxima aventura do Sumé foi excursionar pela Ilha. A palavra aventura não foi usada em vão, já que para cobrir de cima a baixo a costa oeste da Groenlândia, foi preciso o transporte por barcos de pesca, barcos a motor, aviões, navios e navios de guerra. E faziam parte do staff da banda aqueles jovens políticos que estavam conscientizando a população para a necessidade da independência. A música e a mensagem faziam as vezes de pão e circo para o povo.

A banda também encabeçou festivais populares a céu aberto nas cidades de NarsaqeQeqertarsuaq, com repercussão positiva em todos os países nórdicos, o que levou o Sume a aceitar convites para tocar, em 1975, tanto em Estocolmo quanto na Alemanha Oriental. Os rapazes estavam a um passo da projeção internacional e isso parecia certeza quando o Procol Harum os procurou para que o Sumé abrisse seus shows em uma turnê mundial de seis meses.

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Foi uma oferta inesperada e impressionante. E Per Berthelsen sentiu o golpe. Nervoso e inseguro quanto a alta exposição que os esperava, ele avisou os companheiros da banda que não iria excursionar e que, em vez disso, cumpriria a promessa que fizera a seu pai de se formar professor. Apesar dos protestos dos músicos, Malik Hoegh apoiou o parceiro e o Procol Harum teve de se contentar em procurar um outro grupo. A unidade da banda, no entanto, sofreu um golpe irreparável.

Em 1976 acontece a formatura não só de Per Berthelsen, mas de todos os membros do Sumé. Decididos a gravar aquele que seria seu terceiro disco, Ulo, os músicos, já diplomados, levam suas malas para o estúdio de gravação em Copenhagen e só saem de lá para o aeroporto onde se despedem e cada um segue seu destino, reencontrando-se novamente quase 14 anos depois, em 1989. Nessa reunião resolvem gravar seu quarto e último álbum, com músicas antigas do tempo de faculdade. Eles também tocaram juntos na Groenlândia em algumas ocasiões, sempre com casa cheia.

Sumé – o som de uma revolução.

A independência, sonhada especialmente por Malik Hoegh, ainda não aconteceu, mas em 1978, o parlamento dinamarquês finalmente cedeu às pressões dos groenlandeses e consentiu com a criação de um governo local a partir de 1979. Em 1982 os groenlandeses decidem por meio de votação a separação da União Européia, o que se efetivou em 1985, tornando a Groenlândia, então nação inuite, a única entidade que se separou da União desde a sua criação. A Groenlândia é uma dependência da Dinamarca, mas autônoma desde 1979.

Voltando ao Sumé, em 10 de setembro de 2014, menos de três meses atrás, estreou na Groenlândia o documentário “Sumé – o som de uma revolução”, de Inuk Silis Hoegh, e que mapeou toda a história e importância da banda. O filme também fez sucesso em sua estreia oficial na Dinamarca em 16 de outubro e fez parte do importante festival de cinemaCPH:DOX, realizado de 6 a 16 de novembro.

Nada mal para quatro esquimós.

Ouça o primeiro disco do Sumé, Sumut, aqui.

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