Shows Inesquecíveis: 10 Anos de Ira! em Porto Alegre
Por Micael Machado
Quando o Ira! chegou a Porto Alegre naquele 16 de agosto de 2014, faziam já sete anos que o grupo estava ausente dos palcos, pois, quando, no final de 2007, o vocalista Nasi se desentendeu com seu irmão, Júnior Valadão (à época empresário do grupo) e com o guitarrista Edgard Scandurra, a banda “implodiu”, como bem definiu este último, e o que se viu em sequência foi um dos mais lamentáveis episódios deste que é um dos maiores nomes do chamado BRock dos anos 1980. Foram acusações pela imprensa, processos judiciais e até uma tentativa de interdição judicial do cantor por parte de seu pai. O processo de reaproximação começou no início de 2013, com Nasi “fazendo as pazes” com o pai e o irmão, e, através deste, retomando o contato com o guitarrista. A participação do vocalista em um show beneficente organizado por Edgard foi o pontapé inicial para a volta do Ira!, concretizada em show na virada cultural de São Paulo, dia 17 de maio de 2014, o que gerou a turnê que chegou à capital dos gaúchos naquele dia!
Em um auditório Araújo Vianna com os ingressos esgotados há semanas, Nasi e Edgard subiram ao palco pouco mais de dez minutos depois da hora marcada acompanhados não por Gaspa (baixista) e André Jung (baterista), os músicos com os quais tocaram no line up mais duradouro do Ira!, mas sim por uma nova formação em quinteto que conta com o filho de Edgard, Daniel Scandurra, no baixo, Evaristo Pádua (baterista da banda solo de Nasi) e Johnny Boy (tecladista e violonista, que tocava com o Ira! desde os anos 1990, como músico de apoio). Iniciando a apresentação com “Longe de Tudo” e “Flerte Fatal”, o grupo teve seu nome entoado em uníssono pelo pessoal logo ao final desta, mostrando que sua ausência por um período tão longo havia sido realmente sentida!
A noite prometia ser de muitos clássicos do repertório dos paulistas, e a sequência que iniciou com “Dias de Luta” e só acabou em “Gritos na Multidão” deixou isso bem claro (embora ali no meio tenha rolado “No Universo dos Seus Olhos”, canção que ainda não chegou a atingir este status), sendo que o pessoal acompanhava em coro pelo menos o refrão de cada uma das músicas apresentadas. Com o público nas mãos e demostrando prazer em estar novamente junta, a dupla principal do Ira! levou o show com facilidade, agradando as mais de três mil pessoas que saíram de casa para lhes assistir sem precisar se esforçar muito. Não que não tenha havido empenho, mas o público parecia disposto a celebrar a volta do então quinteto de qualquer forma, e o repertório escolhido só fez facilitar esta missão!
Na época, muito se comentava sobre a forma física de Nasi (vários quilos acima do “normal”), mas seu carisma e sua voz não foram afetados de forma alguma por isso! Muito comunicativo durante toda a noite, o cantor chegou a afirmar que o Ira! era a banda paulista mais gaúcha que existe, visto a cidade de Porto Alegre ter sido uma das primeiras a “detonar o som do grupo” (como declarou) ao tocar suas músicas nas rádios, especialmente na Ipanema FM, como lembrou o músico, sendo que esta sempre foi a mais importante “rádio rock” da capital gaúcha! Nasi ainda disse que a noite era de muita emoção para a banda, visto o grupo ter tocado no mesmo local trinta anos antes, ainda no início da carreira. Já Edgard é, com razão, considerado um dos melhores (se não “O” melhor) guitarristas de sua geração, e aquela noite serviu para demonstrar isso mais uma vez. Mesmo a música do Ira! não sendo assim tão complicada tecnicamente, cada vez que o sujeito inventava de atacar com um de seus incríveis solos (tocados, vale sempre a pena lembrar, sem o uso de palheta, em uma guitarra para destros usada “ao contrário”, e sem a posição das cordas adaptada para canhotos), ficava claro que não estávamos diante de um músico comum. Daniel (também encarregado de alguns backings, assim como seu pai) e Evaristo seguraram a barra com precisão, e os teclados de Johnny Boy deram um “ganho” nos arranjos de várias composições (como em “Tarde Vazia” e “Flores Em Você”), além das introduções de “Manhãs de Domingo” (que ficou bem próxima do rock progressivo) e “O Bom e Velho Rock and Roll” (esta, soando absurdamente pesada em comparação a sua versão original). Uma canção até então inédita, chamada “ABCD“ (um agitado blues com toques de rockabilly e letra “sacana”), apresentada no meio do show, mostrou que o Ira! ainda teria uma possibilidade de futuro pela frente, algo que parecia impossível alguns anos antes desta apresentação (a música ainda faria parte dos shows do grupo no ano seguinte, mas focaria de fora do repertório do autointitulado disco de “retorno” lançado em 2020)!
Alguns “lados B” da discografia do Ira! também marcaram presença neste “panorama da carreira” do grupo (“passando por praticamente todos os álbuns”, segundo Nasi), como “Rubro Zorro” (retirada de um álbum que, como o cantor declarou, foi “conceitualmente, um divisor de águas” na carreira do grupo, o subestimado Psicoacústica, de 1988, e que, nesta turnê (e em algumas das que a seguiram), foi apresentada com o palco totalmente iluminado por luzes em tons vermelhos, fazendo jus ao seu título) ou “15 Anos”; mas a maioria do set list foi formado por canções bastante conhecidas como “Eu Quero Sempre Mais” (surpreendentemente para mim, a que mais levantou o pessoal, que, após a deixa do vocalista, levou sozinho e inteira a parte cantada pela baiana Pitty na versão do Acústico MTV, entoando novamente com força o nome do grupo ao final da canção) ou “Envelheço na Cidade” e “Núcleo Base”, as duas faixas que encerraram a primeira parte do espetáculo, após quase uma hora e vinte minutos que levaram a plateia próxima ao êxtase!
Era certo que o quinteto voltaria para um bis, mas acredito que ninguém esperava o que veio. Recebidos no seu retorno ao palco com o cântico de “ôôô, o Ira! voltou”, como se estivéssemos em um estádio de futebol, e após agradecer ao pessoal da equipe técnica e ao público presente, o quinteto começou a encore com a também conhecida “O Girassol” (com Edgard nos vocais principais, e que o guitarrista dedicou a seu pai, “gaúcho de Bagé”), outra que contou com a participação maciça da galera, seguindo depois com a mais “lado B” “Arrastão” (e um show particular de Edgard na guitarra, especialmente na funkeada parte final), a versão para “Train In Vain”, do The Clash (intitulada “Pra Ficar Comigo”) e a mais intimista “Prisão Nas Ruas” (que contou com um belo jogo de luzes), a qual Nasi lembrou ter tido a “estupenda participação” de Nico Nicolaiewsky, músico gaúcho falecido em fevereiro daquele ano, e para quem o cantor pediu que público “fizesse um barulho” em homenagem. Era a senha para o vocalista lembrar que a banda já havia gravado outros músicos do Rio Grande do Sul como Júpiter Maçã e Frank Jorge, e, subvertendo o roteiro original, interpretar “o grande sucesso gaúcho do Ira!”, “Bebendo Vinho”, de Wander Wildner, outra que, como esperado, levou os presentes ao delírio, e foi emendada a uma acachapante versão de “Foxy Lady”, de Jimi Hendrix (e como vocês acham que soou quando um dos melhores guitarristas do país resolveu interpretar um tema do melhor guitarrista da história? Chamar de sensacional é pouco!). Como o set list previsto já havia ido para o espaço mesmo, o quinteto ainda tocou “Coração” antes de Nasi perguntar se queríamos ouvir mais uma, e, após a resposta positiva dos presentes ao auditório, declarar que a banda “tentaria bater o recorde de Bruce Springsteen de bis mais longo” e, finalmente, encerrar com “Nas Ruas”, em pouco menos de duas horas que serviram como uma espécie de catarse coletiva a quem esteve no Araújo Vianna, e provou definitivamente que o Ira! está de volta, como Nasi declarou ao final!
Como disse no começo do texto, os ingressos se esgotaram várias semanas antes do show. Ainda no início do bis, Nasi disse que muita gente havia ficado de fora, sem ter a oportunidade de presenciar aquela apresentação, e que, por isso, uma nova data para o mesmo local já havia sido agendada para 25 de outubro, dando oportunidade aqueles que não conseguiram ingresso de presenciar uma data deste espetáculo, e, para aqueles que conseguiram estar presentes naquele sábado inesquecível, de viver esta emoção outra vez! Naquele outubro de 2014, eu também estive novamente no Araújo, assim como em várias outras ocasiões onde o grupo esteve em Porto Alegre depois disto. Mas nenhuma foi tão especial quanto aquele sábado de 2014. Afinal, como o pessoal cantou com força naquela noite:
“Ôôô, o Ira! voltou, o Ira! voltou, o Ira! volto-ou”
Set List:
1. Longe de Tudo
2. Flerte Fatal
3. É Assim Que Me Querem
4. Dias de Luta
5. Tarde Vazia
6. No Universo dos Seus Olhos
7. Gritos Na Multidão
8. ABCD
9. Tolices
10. Mudanças de Comportamento
11. Rubro Zorro
12. 15 Anos
13. Eu Quero Sempre Mais
14. Manhãs de Domingo
15. O Bom e Velho Rock and Roll
16. Envelheço na Cidade
17. Núcleo Base
Bis:
18. O Girassol
19. Arrastão
20. Pra Ficar Comigo
21. Prisão Nas Ruas
22. Bebendo Vinho
23. Foxy Lady
24. Coração
25. Nas Ruas